O ABATE DE ANIMAIS NAS RELIGIÕES DOS POVOS TRADICIONAIS DE MATRIZ AFRICANA E O JULGAMENTO DA LEI 494.601 NO STF
Por Irivan de Assis*
Os Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana são grupos que se organizam a partir dos valores civilizatórios e da cosmovisão trazidos para o país por africanos para cá transladados durante o sistema escravista, o que possibilitou um continuo civilizatório africano no Brasil, constituindo territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária, pelo acolhimento e pela prestação de serviços à comunidade. (I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, SEPPIR, 2013).
Nesta concepção, as comunidades tradicionais de matriz africana, espaços de prática das religiões de matriz africana, estão incluídas entre os povos e comunidades tradicionais do país, mas não se constituem apenas como locais de culto religioso. São também instrumentos de preservação das tradições ancestrais africanas, de luta contra o preconceito e de combate à desigualdade social, visto que desenvolvem ações sociais no seu entorno, dentre as quais, atividades relacionadas à segurança alimentar e nutricional da comunidade geograficamente constituída. São, portanto, espaços de acolhimento e prestação de serviços sociais a grupos e pessoas que vivenciam situações de vulnerabilidade, visto que tais comunidades, em sua maioria, estão localizadas em áreas de vulnerabilidade social.
É nesse contexto que no próximo dia 09 de agosto de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) realiza em Brasília o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 494601. Datado de 29 de setembro de 2006 e com relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, o RE foi apresentado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul contra a decisão do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS), que validou a constitucionalidade por meio de uma lei o abate de animais em rituais religiosos. Ou seja, o julgamento no Supremo Tribunal Federal – STF, sobre abate religioso de animais, nasceu de uma vitória das religiões de matriz africana obtida em 2004 no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Inconformado com esta vitória, o Ministério Público gaúcho ingressou com recurso no STF, que será julgado no próximo mês.
Desta forma, diversas entidades do Brasil têm acompanhado de forma permanente esse processo que diz respeito à resistência cultural e liberdade de culto de um povo. E desde o ano passado representantes da Comissão dos Terreiros Tombados da Bahia, entidades e lideranças religiosas e da sociedade civil de todo Brasil se reuniu com a Presidente do STF, Carmem Lúcia. Na oportunidade foi entregue a Ministra do STF, um parecer e um memorial com informações históricas, legais e culturais no mundo inteiro relacionado ao abate de animais.
Nessa caminhada que vem desde 2004 o Dr. Hédio Silva Júnior vem atuando neste processo e, mais recentemente, também passaram atuar os advogados Dr. Antônio Basílio Filho e Dr. Jáder Freire de Macedo Júnior. Nas audiências no STF foram apresentados os argumentos jurídicos que embasaram as vitórias das religiões afro-brasileiras no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e também no Judiciário paulista, que recentemente julgou inconstitucional uma lei do município de Cotia que punia o abate religioso de animais. Além disso, foi elaborado um parecer jurídico subscrito pelos advogados, contendo legislação brasileira, legislação europeia, jurisprudência da Suprema Corte norte americana e de tribunais europeus, todos sobre o abate religioso de animais.
É importante salientar que a proibição do abate de animais para fins religiosos trata-se de um ataque a Constituição da República do Brasil o que se configura como preconceito e racismo religioso contra um segmento étnico da sociedade brasileira. Assim o abate de animais dentro dos cultos de matriz africana não fere a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Além disso, diversas religiões praticam o procedimento de abate religioso de animais, e, no entanto não são alvos de perseguições legais.
Destacamos aqui que os terreiros são focos de congregação e rearticulação de uma vasta gama de saberes científicos, tecnológicos, artísticos, artesanais, políticos, econômicos e espirituais dos povos africanos escravizados no Brasil. Sempre dentro de uma perspectiva universalista, inclusiva, agregadora e aberta, os terreiros combinam para sua preservação tradições religiosas afro brasileiras, os saberes tradicionais africanos, os saberes tradicionais indígenas e europeus, gerando ao longo dos tempos, um modo de vida em que há lugar, abrigo, comida, ocupação, trabalho e respeitos para todos e todas. Simplesmente por que todos serem humanos têm um Ori (cabeça) e todo Orí tem seus Orixás de guia. Todos e todas têm Orixá, ou Vodum, ou Inquice, ou qualquer outro tipo de entidade. Todas as entidades devem ser reverenciadas e todas as entidades exigem oferendas e demandam símbolos e objetos que sejam suporte do contato humano com elas.
Para estabelecer a ordem cósmica e fortalecer o Ori é indispensável os alimentos – frutas, doces, pratos preparados, pratos frios, pratos quentes, pratos cozidos, pratos crus, condimentos, é preciso roupas, vestes especiais, esteiras, braceletes, panos de cabeça, enfeites que não se compram, mas que são feitos a mão. Para fortalecer e celebrar os Orixás e seus equivalentes, é preciso tudo que o Ori exige mais sangue vivo de animais sádios, em uma tipologia extremamente variada que não pode ser atendida pela pecuária de grande escala, porém que depende de um circuito de produtores de pequena escala, é preciso também uma variedade ainda maior de comida, conformando um dos saberes mais complexos do país.
É por demais significativos relatar que o abate de animais é inerente ao direito fundamental à alimentação desses povos e, portanto, só o fato do STF acatar uma adin dessa magnitude e colocar em julgamento nos leva a acreditar que vivemos um Estado de Exceção e é um ataque ao Estado Democrático de Direito, por entendermos que essa matéria é pacificada nos diverso marcos legais do nosso país e confirmada e consolidada em tratados internacionais pelo Brasil. Sendo assim, a posição do Supremo Tribunal Federal em levar adiante esse julgamento sobre o abate de animais é uma afronta aos Pactos Internacionais feitos pelo Estado Brasileiro, o que só reforça o quanto os direitos dos povos de matriz africana são violados pelo Estado Brasileiro.
Para entender melhor o que chamamos de racismo religioso cujo Estado Brasileiro se cala ou é participe dessa atrocidade contra os Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e de Terreiros podemos afirmar que os Judeus, os Mulçumanos e as Religiões de Matriz Africana realizam o abate de animais da mesma forma e com o mesmo objetivo é tornar o alimento sagrado para consumo dos seus adeptos, de acordo com suas liturgias. No entanto, o que observamos no julgamento da Adin é de criminalizar apenas o abate realizado nos Terreiros. Isso caracteriza preconceito e intolerância religiosa aos cultos afro brasileiro e uma violação ao direito humano a alimentação adequada que está prevista no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Segundo Rodrigues, analisando os inúmeros documentos que desaprovam o abate de animais nos terreiros – sim, eles são muitos e pululam na internet! Não é difícil identificar o aparato racista e de ódio religioso que os estruturam. Mais ainda, é possível identificar que os argumentos dos que condenam as práticas alimentares nos terreiros estão pautados pelo fundamentalismo cristão – que, aliás, tem desgraçado grande parte dos nossos direitos e emburrecido uma parte considerável da sociedade.
Continua Rodrigues, um dos maiores exportadores e consumidores de carne no mundo que proibir o abate? O Brasil é o segundo produtor mundial de carne bovina com 211,764 milhões de cabeças em 2013 e a exportação de 1.565.308 toneladas em 2014 (Gonçalves e Salotti-Souza, 2017). Segundo a Informa Economics (FNP), em reportagem publicada pela Folha de São Paulo, o consumo per capta do brasileiro, em 2010, chegou a 94 quilos de carne – considerando as carnes bovina, suína e a de frango.
Nesse contexto, dar-se a entender que estamos tratando exclusivamente da liberdade religiosa, mas essa matéria vai além da luta por liberdade religiosa, ela se fundamenta no desrespeito e no racismo que tem a clara intenção de criminalizar uma prática cultural e ancestral proveniente dos povos negros escravizados no Brasil. Com isso, afirmamos que esse debate não se limita a religiosidade étnica, mas sim a história da cultura e da cosmovisão de mundo de um Povo, que ao longo de 500 anos de escravidão tem sua cultura vilipendiada, criminalizada, demonizada e discriminada. Para os Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e de Terreiros esse debate supera a ideia de um simples sacrifício de animal, e sim se constitui numa forma tradicional e cultural desses povos se alimentarem, como garante todas as legislações internacionais das quais o Brasil é signatário.
“Não vamos debater sob a luz de nossas convicções religiosas… Para fora do debate religioso, trata-se de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana. Religião é de confissão pessoal, de foro íntimo. Quem não pertence a tal não tem o direito de querer discutir sobre, pois desconhece/ignora a fundamentação conceitual de tais atos. Só cabe o respeito à diversidade cultural e religiosa, garantido na Constituição Federal”.
A expansão do capitalismo no Brasil tem afetado o desenvolvimento de diversos povos e tem homogeneizado as suas diversas culturas. Isso tem reflexo em uma eterna luta de classes desse país, de um lado um sistema opressor, segregacionista, consumista e individualista, que tem no seu horizonte a manutenção de uma indústria do comércio de alimentos e seus grandes produtores vendendo carne com veneno. Do outro um povo descendente de África vitima do racismo e das desigualdades, com sua visão de mundo trazida pela travessia do atlântico na condição de escravizados que hoje oferece ao povo brasileiro uma esperança para a crise que se abate sobre a sociedade apresentando uma organização comunitária e coletiva através da sabedoria ancestral, a utilização equilibrada dos recursos naturais, de respeito aos mais velhos, do compromisso com os mais novos, de uma alimentação adequada e compartilhada com o sagrado, com o respeito a todo ser vivo e inanimado e que compreende este sagrado como tudo que existe.
Portanto, o Fórum Sergipano das Religiões de Matriz Africana se soma a todos os Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e de Terreiros do Brasil em nossa luta pelo reconhecimento legal de nossos ritos sagrados. Os povos de terreiro apresentam um forte envolvimento com a natureza e com a preservação do meio ambiente. A proibição do sacrifício tem sim sido mais usada como manifestação de intolerância religiosa e racismo, perseguindo-se as crenças de matriz africana, do que como uma preocupação real com os animais.
Muito Axé e Paz
*Irivan de Assis é Pejigan, Graduado em Pedagogia e Pós Graduando em História
Referência:
Alimento: Direito Sagrado – Brasília/2011
www.google: esclarecimento do Dr. Hédio Silva
www.google: Proibir a alimentação nos Terreiros é crime: Rosiane Rodrigues
Texto de Andréa Basílio Fonsanpotma de Rio Grande.
http://expressaosergipana.com.br/o-abate-de-animais-nas-religioes-dos-povos-e-tradicionais-de-matriz-africana-e-o-julgamento-da-lei-494-601-no-stf/
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