7 de set. de 2018

Agentes e pacientes topicalizados, por Letícia Sallorenzo - a Madrasta do Texto Ruim

Agentes e pacientes topicalizados, por Letícia Sallorenzo - a Madrasta do Texto Ruim

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Reprodução Youtube
Agentes e pacientes topicalizados
por Letícia Sallorenzo - a Madrasta do Texto Ruim
Sexta-feira, 7 de setembro de 2018
Hoje os jornais publicaram um total de 51 manchetes eleitorais – o maior número de notícias eleitorais desde que comecei minha análise. Até ontem, o número de manchetes oscilava de 27 a 37.
Antes de chegar às manchetes, vamos pensar no fato que gerou as manchetes de hoje:
- Homem esfaqueia Bolsonaro.
A frase tem uma estrutura SVO (Sujeito + Verbo + Objeto). O verbo esfaquear é agentivo e só pode ser acionado por sujeitos humanos (o cachorro não esfaqueia o gato; o poste não esfaqueia o muro). Ele transita seu significado do sujeito/agente homem até o objeto direto (por isso é chamado de transitivo direto) e altera o estado final do objeto direto Bolsonaro, que desempenha o papel semântico de paciente. Bolsonaro começou a frase inteira, terminou a frase em estado grave (há muitos indícios de que o fato realmente ocorreu, então não vou tratar a notícia como fake. Apenas acompanhem o raciocínio gramatical, por favor). E você entende direitinho quem é o agente e quem é o paciente na história.
Você raciocina isso tudo daí de cima sem nem perceber, e vai mais além. Quando você ouve ou lê Homem esfaqueia Bolsonaro, você pensa, entende e conclui que
  • o agente (homem, no exemplo) tem como objetivo a mudança (física) de estado do paciente (Bolsonaro, no exemplo);
  • o agente tem um plano para chegar a seu objetivo;
  • o plano demanda o uso de algum sistema motor (movimento);
  • o agente é primariamente responsável pela execução do plano;
  • o agente é a fonte de energia, e o paciente o objetivo dessa energia;
  • o agente toca o paciente com seu corpo ou um instrumento;
  • o agente executa o plano com sucesso;
  • a mudança no estado do paciente é perceptível;
  • o agente monitora a mudança no estado do paciente a partir de percepção sensorial.
A isso George Lakoff chama de inconsciente cognitivo. O raciocínio inconsciente é reflexo, automático e não controlado. Comparável à mexida no joelho quando o médico dá aquela marteladinha pra testar seus reflexos. Já o raciocínio consciente é reflexivo, comparável a se olhar no espelho – você quer se olhar no espelho e sabe que está diante de sua imagem refletida.

Mas não foi assim que a manchete apareceu nos jornais de hoje. O agente foi mocozado da frase, e desta vez não foi para mocozar sua responsabilidade, mas para obedecer aos preceitos dos valores-notícia do jornalismo: o assunto é Jair Bolsonaro. O autor do atentado foi tema de reportagens específicas, então, no contexto de uma edição completa de jornal impresso, não dá pra falar em ocultar o agente da frase com má-fé (nem sempre a maldade rege as construções gramaticais).
Como proceder, então? Quem respondeu “voz passiva” acertou:

  1. Bolsonaro é esfaqueado, passa por cirurgia e está na UTI (Estadão, capa)
  2. Bolsonaro é esfaqueado durante ato de campanha (Estadão, interna)

  1. Bolsonaro é esfaqueado em Minas; adversários repudiam atentado (Folha, capa)
  2. Bolsonaro sofre atentado a faca e deve ficar de 3 a 4 semanas fora da campanha (Folha, interna)

  1. Bolsonaro sofre atentado a faca; presidenciáveis repudiam violência (Globo, capa)
  2. Bolsonaro esfaqueado (Globo, interna)

As manchetes são muito parecidas. Isso ocorre quando temos uma notícia 100% factual – um fato ocorreu, temos quem fez o quê contra quem, não dá pra fugir dessa estrutura. Observe que o verbo sofrer, usado nas manchetes de Folha e Globo, por seu significado transforma o sujeito que o aciona em paciente da ação.
Outra coisa: na voz passiva, a manchete se torna intransitiva. Isso fica claro na manchete 1; nas manchetes 2 a 5, temos adjuntos adverbiais dispensáveis para a compreensão da frase de tempo (2), lugar (3) e instrumento (4 e 5).
A manchete 6 é maravilhosa para nos mostrar outra coisa: na voz passiva, o particípio passado assume uma classificação dúbia: trata-se de uma ação concluída, com jeitão de adjetivo. Esfaqueado é adjetivo usado para qualificar Bolsonaro.
ttps://jornalggn.com.br/noticia/agentes-e-pacientes-topicalizados-por-leticia-sallorenzo-a-madrasta-do-texto-ruim
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