6 de out. de 2018

Está havendo uma troca de guarda no quartel?. - Editor - O QUE ESTÁ HAVENDO: É COBRA, DANDO BOTE EM COBRA.

 
05/10/2018 11:56
 
 
Não, não vai ser tudo como antes, no quartel de Abrantes. Pode ser que muitos de nós estejamos perdendo de vista um movimento sutil, quase subterrâneo, mas muito forte, na sociedade e na política brasileiras. Algo que vem se afirmando faz já uns vinte anos, talvez mais. Uma coisa que surgia aqui e ali nas eleições, quando o tal “debate sobre valores” se transformava numa guerra. Nas duas ultimas eleições começou a aparecer com mais clareza a cabeça da cobra. Um sinal, entre outros, foi a eleição para prefeito no Rio. Um candidato pentecostal contra um candidato da esquerda. Detalhe: o pentecostal em questão não é apenas pentecostal, como a maioria dos pentecostais não são pentecostais apenas. Crivela era e é continua sendo parte de uma rede enorme de costura ideológica, de formação de mentes e corações, de televangelistas. E a Globo ficou numa sinuca. Quase apoiando (ou não?) o candidato da esquerda. Amigos meus ficaram eufóricos, dizendo que a política brasileira tinha mudado seu eixo para o Rio, com o nascimento de uma força nacional de esquerda. Não durou uma semana a ilusão. Não podia durar. Era outra coisa que estava surgindo. E o eixo não estava no Rio, porque não tem centro geográfico.

Agora, nesta semana, mais precisamente no dia 4/10/2018, talvez tenhamos presenciado um daqueles momentos de mutação. O derradeiro debate na campanha para presidente. Acontecia na Globo, portavoz da ditadura desde o nascedouro, o diário oficial de todos os governos, com pequenos intervalos, o Pravda Brasileiro. Os soviéticos que recebiam o Pravda (que quer dizer verdade, em russo), sabiam que não recebiam a “verdade”, mas a fantasia que lhes era vendida pelo governo. No Brasil, recebemos a Pravda mas não sabemos que recebemos isso. Pensamos que é a Pravda mesmo. Tomamos como realidade aquela realidade paralela que eles inventam.

Esse debate solene e teatral dos candidatos de fato não decide voto de ninguém ou quase ninguém. Mas já é uma tradição, quase como o show de final de ano com Roberto Carlos. Não porque defina nada – mas porque bate o martelo na afirmação de quem é o organizador da competição. Quem ganha é a banca. Todos os candidatos disputam para ver quem tem a melhor tirada, quem incomoda mais o outro. Um brilhareco aqui ou acolá. Em toda eleição tem o piadista, o provocador que tem seus 15 minutos de fama. Quando algo de relevante sai do debate, no máximo, é algo que vai ocorrer depois, uma edição do debate – no dia seguinte, quando ninguém mais pode contestar coisa alguma, algo assim como “a última palavra”. E a última palavra cabe... à Pravda tupiniquim. Quem ganha é a banca.

Mas algo muda. Pois no dia 4 de outubro percebemos mais um sinal de movimento no subsolo. O candidato que está à frente se ausenta – já houve casos parecidos, vá lá. FHC faltou a vários dos debates, por exemplo. Mas, neste caso, um pequeno detalhe revela cena diferente. No mesmo horário uma TV concorrente põe no ar uma programação alternativa – e não qualquer TV, mas a mesma acima mencionada, a TV do bispo, aquela que já confrontara a Pravda na eleição do Rio. E não é qualquer programação, não é um jogo campeonato. Mais ainda, a programação resulta de um pacto mais fundo, assinado com o candidato favorito, para repartir o condomínio do poder. Com claros sinais – e nenhum incomodo em escondê-los – de que haverá retribuição. As verbas de publicidade oficial, dizem fontes do candidato, seriam alteradas para tirar da Globo e lançar na Record. Assim, sem muita sutileza. Pode ocorrer algo inédito na história dos últimos 60 anos - a Globo deixa de ser o Pravda, a Record assume o papel de portavoz da nova ditadura. Pode não ser tudo isso, mas é algo perto disso.

Sim, talvez estejamos diante de uma mudança de guarda, para usar a metáfora adequada ao novo governo. Uma alteração nos organismos que controlam mentes e corações, cotidianamente. Faz tempo a igreja católica perde espaço para a protestante – e, mais especificamente, para as igrejas pentecostais fundamentalistas, neoconservadoras. Agora vemos um movimento mais claro no terreno das redes de TV e rádio.

Não é novo nem original. Cansei de escrever sobre isso nos últimos anos – não apenas sobre o Brasil, mas sobre o país-modelo dessa operação, Estados Unidos. Disse que cansei de escrever – e agora me dei conta de que cansei mesmo, porque é quase como personificar Cassandra. Dizer aos ventos.

Não é novo nem original. Também não é “espontâneo”. Como dizia um velho russo, o espontâneo é o inconsciente do organizado. Esse pessoal não dá ponto sem nó. A aliança de ruralistas brucutus com evangélicos e policiais é parte da coisa. Juntemos a eles a oficialidade média do exército (pressionando os molengas de cima), os banqueiros e os aparatos de estado capturados pelos neoconservadores (ministério público, judiciário). Um novo bloco de controle das almas – e das armas, claro.

Portanto, enquanto nos distraímos com debates, como se estivéssemos escolhendo o tipo de sapato mais chamativo, os donos do cassino distribuem o botim, disputam os pedaços e combinam o modo pelo qual nos vão esfolar nos próximos anos.

Ainda pode ser que isso tudo vire do avesso, mais uma vez, graças à coragem do povo brasileiro, que derrubou essa corja seguidamente, sem contudo conseguir destroçá-la. Mas... não é com apelos à civilidade, ao humanismo e á vaga democracia dos doutores que conseguiremos tal resultado. Espinoza dizia que as mentes são governadas com duas forças – medo e esperança. O medo está ganhando – inclusive inoculando a “esperança” de sobreviver rastejando, mesmo com muito medo.

*Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Eleicoes/Esta-havendo-uma-troca-de-guarda-no-quartel-/60/41945
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