Haile Gerima desafia o cinema negro no Brasil
08/10/2018 | às 16h40
Na sua passagem na Bahia, declarou temer que a fome dos realizadores seja cooptada
Por Pedro Caribé*
Na trilha da sua história, o cinema negro no Brasil depara-se com um desafio à sua linguagem e às formas de produção na voz do etíope radicado nos EUA, Haile Gerima. Depois do Rio de Janeiro, onde foi homenageado no 11º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bubul, ele terminou sua passagem em Salvador proferindo uma conferência e exibindo alguns dos seus filmes entre os dias 10 e 11 de setembro.
Foi quando colocou o risco do Brasil cair no círculo entre aqueles que integram o modelo Hollywoodiano ou Europeu de produção, marcado por seletividade, pobreza narrativa e trajetórias de pioneirismo que apagam aqueles que vieram antes: “Não precisamos de cineastas negros para destruir o povo negro, e isso foi o tipo de ambiguidade que senti no Rio. Jovens com muita energia, preparados para se apoderar do mundo, me fazem lacrimejar, e por outro lado, fico com medo deles, como se tivesse medo dos meus próprios filhos e filhas, porque o imperialismo adora pessoas desesperadas e famintas, é assim que tem se sustentado até hoje”.
Gerima é integramente do movimento L.A Rebellion, gestado na Universidade da Califórnia, e responsável por um fazer independente incomum a partir dos anos 1970. Nas suas imagens em movimento têm-se uma luta estética para encontrar um sotaque narrativo lastreado no descontentamento e no abraço aos homens e mulheres negras. Foi assim no começo da carreira quando Child of Resistence (1972) provocou a classe média universitária negra quanto às suas prisões capitalistas e suas projeções de masculinidade, e Bush Mama (1976) foi de encontro a experiência de afeto entre famílias que vivem em situação de cárcere e pobreza constituindo uma ética ainda incompreendida no cinema.
Ele refuta as receitas tanto de mercado, quanto o salvacionismo às pessoas oprimidas, a fim de não cair num empreendimento ancorado no ego a caminho do fascismo, por sinal, presente para ele nas histórias de heróis brancos, reproduzidas nos mesmos moldes por cineastas negros. A sua dialética multidirecional com o público escapa do modelo de narrativa com começo, meio e fim, ao reconstruir o script nas filmagens e fazer o público não perder uma passagem, caso contrário pode o deslocar da compreensão: “Sincronizo a imaginação com a narrativa do cinema. Eu sou uma forma cinematográfica, não algo que se encaixa num roteiro preestabelecido”.
É dessa forma que Teza (2008) reconstrói a sua ausência na Etiópia entre os anos 1970 e 1990 no alter ego de um intelectual que vê no retorno à vila onde nasceu um caminho de reconstrução comunitário. No mesmo filme, ele evidencia a importância da disposição das cores, e como elas expressam sentimentos ou transformações em nossas vidas, nesse caso, por meio do ocre que traduz a relação da sociedade com a terra no meio da instabilidade política que afeta as tradições e ímpetos transformadores de um país na zona colonial, mesmo sem ser jamais dominado oficialmente por europeus.
AutonomiaSaído de Los Angeles, Gerima tornou-se professor da Universidade negra de Howard, e na capital Washigton D.C construiu ao lado da companheira e diretora Shirikiana Aina no espaço cultural Sankofa. Lá é possível comer um sanduíche, assistir filmes e consultar a biblioteca onde seus seis filhos cresceram. É lá que ambos detém o esteio de autonomia para arrecadar fundos às obras por negar-se integrar às associações da burguesia negra dos EUA com Hollywood, ou mesmo elites africanas fascinadas com o Ocidente.
O seu cinema independente reconhece o dignidade do dinheiro público, fruto de taxas pagas por nossos familiares, todavia rejeita ingerência desde roteiro até a edição, chegando até os mecanismos de distribuição. São obras de baixos custos que demoram até 25 anos para serem concluídas, e contam com uma intensa participação dos membros da produção na perspectiva colaborativa que desfaz o poder unilateral do diretor, algo presente desde nascedouro do L.A Rebellion.
A sua obra mais conhecida, Sankofa (1993), foi produzida por Shirikiana, e a sua viabilidade financeira se deu porque a comunidade negra que fez filas e atravessou estradas para assistir nas salas de exibição. Uma narrativa, por sinal, com ares psicodélicos e transtemporal, onde mais uma vez consegue adentrar no olhar da mulher negra. A distribuição feita sem intermediários é a estratégia para evitar o distanciamento das pessoas que se identificam e a quem costumam conversar depois das sessões. Ele e Shirikiana evitam exibir em alguns festivais para agradar pessoas brancas, inclusive no Brasil, onde já rejeitou convites.
Esperança
A vinda à Bahia pela primeira vez foi em 2017, a convite de Ana Flauzina, na estreia do documentário sobre o pensamento de Gerima e do jornalista Edson Cardoso. Nesta segunda vez a ponte foi das amigas Falani Afrika e Urânia Munzanzu, inspiradoras para declarar ser o espaço capaz de “desenvolver uma versão bem sucedida do cinema negro”.
A vinda à Bahia pela primeira vez foi em 2017, a convite de Ana Flauzina, na estreia do documentário sobre o pensamento de Gerima e do jornalista Edson Cardoso. Nesta segunda vez a ponte foi das amigas Falani Afrika e Urânia Munzanzu, inspiradoras para declarar ser o espaço capaz de “desenvolver uma versão bem sucedida do cinema negro”.
Falani é natural de Washigton, foi aluna de Gerima, e passou dez anos para dirigir o documentário “Maestrina da Favela” (2017), Elem de Jesus, uma jovem percussionista que resiste no seio escravizador e libertador do Pelourinho. Já Urânia, nascida no Pelourinho, filmou em África o projeto Merê – ponte entre dois mundos (2017), sobre o encontro entre sacerdotistas das nação jejê da Bahia e do Benin, que ainda vai virar um longa, e tem nas mãos imagens e argumentos arrebatadores, como Primeiro Beijo, sobre mulheres viciadas no crack.
A vinda ao Brasil foi fomentada pelo Encontro de Cinema Negro Zózimo Bubul, e a vinda à Salvador foi efetivada pela Diretoria do Audiovisual (DIMAS), da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), e com apoio da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan). Já a tradução ficou a cargo de Raquel Sousa e Rosana Chagas.
*Pedro Andrade Caribé – jornalista, doutorando em comunicação da UNB, coordenador do Bahia1798.org.
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