QUAL JUSTIÇA
Podemos confiar na Justiça como na política: não de maneira cega
Presidenta da Associação Juízes para a Democracia revela cerceamento à liberdade de expressão de magistrados. E alerta: não existe resistência possível sem a sociedade civil organizada
por Cláudia Motta, da RBA publicado 16/11/2018 18h59, última modificação 16/11/2018 19h28
JAILTON GARCIA/RBA
Assim como a política a Justiça é ótima, mas não significa que não tenha defeitos, vícios, fisiologismos
São Paulo – Juízes e juízas brasileiros têm sofrido restrições à sua liberdade de expressão. Esse processo, embora não seja uma novidade na carreira, se agravou com a edição do provimento 71, no mês de junho, pelo então corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), João Otávio de Noronha. A decisão estabelece recomendações aos magistrados para se manifestar, especialmente em redes sociais.
"Há uma proibição que manifestem sua opinião sobre candidatos, em quem votam, não votam, por que um é bom, outro ruim”, relata a juíza Laura Benda, presidenta da Associação Juízes para a Democracia. Para ela, a medida do corregedor, que não tem exatamente base constitucional, deu base para pedidos de explicações do CNJ para algumas pessoas que se manifestaram ou tiveram atividades no período relativo à eleição. "E agora está em pauta para que seja decidido se essas pessoas vão sofrer algum tipo de processo administrativo ou não.”
Em entrevista à Rede Brasil Atual, a juíza do Trabalho, que está à frente da AJD há um ano e meio, lembra que a Lei Orgânica da Magistratura (Loman) – “uma lei da época de ditadura que tem de ser interpretada à luz da Constituição” – prevê a proibição de que magistrados exerçam atividade político partidária. O que não se confunde, de acordo com ela, com não poder falar o que pensa sobre assuntos políticos em geral, a não ser que seja juiz eleitoral.
“Por esse motivo a gente considera que juízes estão sofrendo restrições à liberdade de expressão que não são aplicáveis a outros cidadãos e que são injustificáveis, não tem base constitucional.”
Laura Benda diz que não ficaram claros os critérios pelos quais algumas pessoas foram escolhidas para dar explicações. “A gente sabe, empiricamente, que milhares de juízes e juízas manifestaram seu posicionamento em alguma medida, e foram escolhidas menos de 10 e de ambos os espectros políticos (direita ou esquerda).”
Justamente por conta desse "contexto de restrição de liberdade de expressão”, a AJD não tem posição oficial sobre a participação do juiz Sérgio Moro no Ministério da Justiça do governo Bolsonaro. “Nós consideramos mais cauteloso não nos pronunciar sobre isso.” O juiz Sérgio Moro não é associado à AJD.
Com histórico de atuação em defesa dos direitos humanos e da democracia desde que, entre 2001 e 2005, cursou Direito na Universidade de São Paulo, a presidenta da AJD considera a Justiça brasileira confiável. "Mas não uma confiança cega", pondera. "Assim como a política: é uma coisa ótima, mas não significa que não tenha uma série de defeitos, de vícios, fisiologismos. A gente não vai resolver tirando a política, a democracia, mas interferindo para que o sistema se fortaleça."
Laura classifica como muito grave o esvaziamento do papel do Ministério do Trabalho, uma das medidas anunciadas por Bolsonaro. “Tem uma discussão mais ou menos no ar também da extinção da Justiça do Trabalho. E tem a reforma trabalhista que acabou de completar um ano. São projetos que estão vindo de diversos atores políticos e econômicos no sentido de enfraquecimento da organização popular, dos direitos humanos.”
Há saída para essa situação? “Precisamos de toda resistência política possível. Muitas entidades e coletivos já estão reunidos em torno disso. Movimentos feminista, movimento negro, estão muito organizados, têm sido protagonistas de uma série de resistências a respeito das lutas democráticas. Não existe nenhuma mudança ou resistência possível que não passe pela sociedade civil organizada nessas diversas facetas.”
Estado democrático de direito precisa ter uma série de características de controle do poder, de funcionamento das instituições, de garantias dos direitos fundamentais de liberdade individual e os sociais, para que tenha concretude. E isso está completamente em crise
O Conselho Nacional de Justiça estaria extrapolando suas funções ao cercear o direito de expressão dos juízes?
Acredito que sim. As questões sobre eventuais restrições têm de ser debatidas legalmente. Pela Constituição, pela legislação, não me parece que o CNJ possa inovar e avançar nisso. Uma vez estabelecido pelo ordenamento jurídico, é lógico que ele vai ser o órgão que vai regulamentar e controlar algumas coisas, mas não inventar regras novas.
Como a AJD pretende reagir a essa restrição, ao provimento 71?
O provimento foi anunciado de forma um pouco repentina. Não tinha uma discussão prévia sobre isso inclusive no CJN – lembrando que é um provimento da Corregedoria e não do corpo de conselheiros. Nós já nos manifestamos publicamente, emitindo uma nota pública à época. E agora emitimos outra em relação aos recentes pedidos de explicações aos juízes e juízas. E tenho falado sobre isso sempre que possível.
Inclusive, na semana passada, com a presença da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Brasil houve uma reunião com o relator especial sobre liberdade de expressão, da qual nós participamos. E representando a AJD falei sobre essa questão, sobre nossa preocupação com a restrição à liberdade de expressão de juízes e juízas, especialmente nesse momento. Existem já algumas medidas questionando o provimento no Supremo, que por enquanto ainda não foram bem-sucedidas. E está sendo avaliado, por nós e outros atores, o prosseguimento disso nesse âmbito do Supremo.
A AJD está conseguindo realizar sua função de promoção da conscientização da função dos juízes para atuar na proteção efetiva dos direitos do homem no Estado democrático de direito? (7:00)
Nossa avaliação parte do seguinte diagnóstico: a democracia não é uma coisa absoluta. É um processo cujo sentido é construído historicamente. E aí, portanto, no caso do Brasil, a gente tem um Estado democrático de direito formal, que é estabelecido com a Constituição de 1988, mas que ultimamente, acompanhando inclusive uma crise democrática mundial, é mais uma verdade formal que uma verdade concreta.
O Estado democrático de direito precisa ter uma série de características de controle do poder, de funcionamento das instituições, de garantias dos direitos fundamentais de liberdade individual e os sociais, para que tenha concretude. E isso está completamente em crise. Então, na verdade, a luta de todo mundo que atua no campo da defesa democrático, é que a gente volte a rechear a democracia brasileira desses sentidos.
Qual a relação entre a atuação de Sérgio Moro na Lava Jato e a escolha por uma trajetória pouco democrática para o país nessas eleições? (11h40)
Não posso falar sobre isso especificamente, mas posso falar genericamente sobre o papel do Judiciário nas eleições.
É importante que o Judiciário seja um agente ativo naquilo para o que ele existe, que é a defesa da Constituição e, portanto, dos direitos fundamentais, dos direitos humanos, dos processos democráticos, da lisura do processo eleitoral. Nesse sentido, mesmo que a gente chame de ativismo, é um ativismo garantido constitucionalmente. Qualquer atuação fora disso, que procure exacerbar os poderes que a Constituição dá ao Judiciário é temerário, porque aí a separação dos poderes não fica bem estabelecida e pode haver uma atuação do Judiciário que acabe interferindo no funcionamento do Executivo, no funcionamento do Legislativo.
As pessoas têm miséria, criminalidade, direitos aviltados. Há muito tempo a sociedade brasileira tende a simplificar as respostas para esse problema buscando um salvador. A gente não tem o hábito de participação democrática profunda e concreta. Mas se tem uma coisa que a história demonstra é que não é assim que as coisas funcionam
O Judiciário é o poder com menor (ou nenhum) controle social da República (integrantes do Executivo e do Legislativo têm de se submeter ao voto, por exemplo). O CNJ tem correspondido à atribuição de coibir abusos, arbitrariedades e violações por parte de juízes? (14h10)
A existência do CNJ é muito importante. E foi uma coisa muito positiva da reforma do Judiciário justamente por isso, porque era um poder completamente encastelado, impermeável. Mas desde essa época, a AJD já defendia um modelo de controle que fosse muito além do que acabou sendo o CNJ. Um modelo de controle externo, em que a sociedade civil participasse mais ativamente. Um modelo semelhante às ouvidorias externas, como é a Defensoria Pública. Ainda é uma proposta que a gente defende e quer discutir ao longo dos próximos anos: como tornar o Judiciário mais democrático. Reconhecendo que o CNJ é um avanço, mas limitado, existem casos de controle e até punições que foram importantes para que se tenha um padrão republicano de todos os juízes e juízas, de todos os membros do Poder Judiciário.
É fato que juízes flagrados em situações de abuso de poder, prevaricação ou corrupção são “punidos” com aposentadoria compulsória? (15h30)
A Lei Orgânica da Magistratura tem as penalidades administrativas para os juízes que cometerem faltas. E a pena mais grave é a aposentadoria compulsória. Não quer dizer com isso, entretanto, que ele não vá ter outras penas de natureza civil ou criminal. Ou seja, a perda de vencimento, a prisão, podem existir sim, só que não vão ser aplicadas pelo órgão administrativo, mas no devido processo legal.
A sociedade civil tem de cobrar critérios objetivos, republicanos, igualdade no tratamento de quem quer que seja. Não só dos políticos, mas ricos e pobres etc.
Como a sociedade pode fazer isso? (21:05)
A resposta a isso é mais ou menos assim: como vamos resolver a democracia no Estado brasileiro. E como isso vai acontecer? De várias maneiras que estão todas prejudicadas nesse momento: imprensa livre, fortalecimento de organizações de classe, de sindicatos, de movimentos sociais. O fortalecimento da política em sentido amplo. Não existe outro jeito de resolver.
Estamos no limite em que tudo que a senhora citou vai ser enfraquecido?
Estamos vivendo um momento terrível. Evidente que tem um monte de forças políticas que estão procurando eliminar qualquer traço que a gente tenha de Estado democrático de direito. A resposta é tentar resistir e evitar isso de todas as formas possíveis. E a cada medida nesse sentido, venha de onde for, tem de haver resistência e combate.
Nossa sociedade é muito conflituosa e como as instituições democráticas não são muito fortes, para tudo se recorre ao Judiciário, de briga de vizinho a um dano horroroso. Enquanto a sociedade for desigual, conflituosa desse jeito, vai ser muito litigiosa. Não tem muito jeito, o Judiciário também é um reflexo das nossas outras mazelas.
A eleição de Bolsonaro tem a ver um pouco com a sensação de que a Justiça não se faz, não se dá? (31:20)
Acho que sim, acho que as pessoas têm essa sensação. A democracia formal no Brasil é muito recente. E ela de fato não se concretizou inteiramente. A maioria das pessoas não vive a democracia plena porque não tem direitos sociais básicos. E numa situação assim é normal que os valores democráticos sejam frágeis porque o Estado não está inteiramente atendendo seus cidadãos e é mais fácil que se busquem respostas simplificadas para essa angústias e deficiências que são reais.
As pessoas não estão bem nem no país nem no mundo. As pessoas têm miséria, criminalidade exacerbada, direitos aviltados ou que nunca foram conquistados. Há muito tempo a sociedade brasileira tende a simplificar as respostas para esse problema buscando um salvador, por exemplo. A gente não tem o hábito de participação democrática profunda e concreta. Experiências como o orçamento participativo foram incipientes. É aí então é normal que figuras fortes surjam de tempos em tempos para resolver o problema. Mas se tem uma coisa que a história demonstra é que não é assim que as coisas funcionam.
Está havendo uma simplificação de respostas, de escolher um certo conjunto de valores e propostas como se isso fosse eliminar nossos conflitos, nossos problemas. É um processo que não estamos vendo só aqui. Tem a ver com a crise democrática do mundo. Se a democracia, que parece uma coisa distante para uma pessoa comum, não trouxe benefícios para ela – muitas vezes os benefícios que as pessoas têm vêm de uma natureza assistencial –, não há uma compreensão da associação disso com a disputa política. E é por isso também que é uma resposta simplificada que vai estar associada a valores moralistas: o estabelecimento de um modelo de vida, de país, de política que é fácil, simples, exato, não tem conflitos, mas é claro que isso não é possível.
Nesse quadro, o brasileiro ainda pode confiar na Justiça? (37:10)
Pode, mas não uma confiança cega. Como pode confiar na política, mas não uma confiança cega. Não existe uma resposta sim ou não pra isso. Pode confiar porque é uma instituição do Estado democrático de direito, baseada nos valores constitucionais. Mas é uma confiança crítica na compreensão de que precisa de controle e acompanhamento, e eventualmente de mudanças. Assim como a política: é uma coisa ótima, mas não significa que não tenha uma série de defeitos, de vícios, fisiologismos. A gente não vai resolver tirando a política, a democracia, mas interferindo para que o sistema se fortaleça.
A Justiça brasileira é mais lenta que a de outros países? (38)
Sem dúvida nenhuma é uma das mais sobrecarregadas do mundo e tem muito pouca estrutura. Normalmente se anuncia quanto custa. Mas custa muito porque é um país com muitas demandas e a estrutura é insuficiente. Nossa sociedade é muito conflituosa e como as instituições democráticas não são muito fortes, para tudo se recorre ao Judiciário, de briga de vizinho a um dano horroroso. O Judiciário precisa de mais estrutura e enquanto a sociedade for desigual desse jeito, conflituosa desse jeito, ela vai ser muito litigiosa. Não tem muito jeito, o Judiciário também é um reflexo das nossas outras mazelas.
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