A era dos muros
Artistas desafiam os muros que dividem o mundo globalizado, marcando enclaves ideológicos e territórios da opressão
PUBLICADO EM: 11/07/2017
TAGS: ABU DIS, AMÓS OZ, ANTONI MUNTADAS, ASTRID LINDGREN, BERLIM, BRASÍLIA, BRETT STALBAUM, CANAL CURTA!, CERCAS, CEUTA, CHARLES-PHILIPPE DAVID, CISJORDÂNIA, COLUMBIA UNIVERSITY, COMO CURAR UM FANÁTICO, DONALD TRUMP, EIXO MONUMENTAL, ELECTRONIC DISTURBANCE THEATER, ELISABETH VALLET, ESTADOS UNIDOS, EUA, FBI, FESTIVAL DO RIO DE JANEIRO, GUERRA DOS SEIS DIAS, JERUSALÉM, JOURNAL OF BORDERLANDS STUDIES, LULA BUARQUE DE HOLLANDA, MELILLA, MÉXICO, MIGRAÇÃO, MURO DO IMPEACHMENT, MUROS, O MURO, PALABRAS, PIPPI LONGSTOCKING, RICARDO DOMINGUEZ, RONA YEFMAN, TERRORISMO, THE STRONGEST GIRL IN THE WORLD, UCSD, UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA EM SAN DIEGO

A implantação do “muro do impeachment”, em abril de 2016, em Brasília, foi o estopim do novo documentário do cineasta Lula Buarque de Hollanda, O Muro, que tem produção original do Canal Curta! e estreia prevista para o Festival do Rio de Janeiro, em outubro. A barreira, erguida por presidiários, tinha a finalidade de separar os manifestantes, de esquerda e de direita, contra e a favor do impeachment, dividindo a Esplanada dos Ministérios ao meio. A partilha estava longe de marcar um momento de equilíbrio democrático. Ao contrário, assinalava uma fissura na vida política do País, que tinha sua metáfora na imagem do Eixo Monumental fraturado. O espaço projetado para o encontro era tristemente atualizado como o da total desagregação do consenso político.
“O filme nasceu aí”, contou Buarque de Hollanda em entrevista à seLecT. “Ver Brasília, a capital utópica, aquele lugar específico, imaginado para agregar, com um muro que dividia famílias era a imagem-limite de nossa impossibilidade de conversar. E não existe democracia sem diálogo.” Na tentativa de registrar todas as cores do espectro político que se alinhavam de um lado e do outro, optou por uma linguagem híbrida que cruza o vocabulário visual da videoarte com o do cinema. “Com retratos, planos longos, propondo outro tempo de contemplação, para um tema tão complexo, com a faca nos dentes e o sangue à flor da pele”, explica o diretor, que partiu para uma longa investigação sobre esse fenômeno, documentando Berlim, Estados Unidos/México e Jerusalém/Cisjordânia, sempre sob a perspectiva da presença do muro.

Desagregação e falta de diálogo marcam o Muro (2017), de Lula Buarque de Hollanda, com imagens do “muro do impeachment”, construído em Brasília, das barreiras de Berlim, Gaza e Palestina, e da marcha das mulheres contra Trump, em Washington (Fotos: Cortesia do artista, Sommer Contemporary)
Os muros que interessaram a Lula Buarque são os muros ideológicos, fruto da incapacidade de convivência e dos estabelecimentos de nexos comuns. “Em Berlim, o muro é uma memória da cidade. As novas gerações nem sequer o viram. Mas são herdeiras dessa história”, continua ele. “A Alemanha é um país extremamente marcado pelo trauma. Sua Constituição proíbe negar o Holocausto, proíbe o nazismo.
Se legalizassem, os nazistas teriam 10% dos votos. Não dá para negar esse lado pit bull da humanidade. Por outro lado, por terem essa consciência, paradoxalmente, poderíamos dizer que a Alemanha é a última esperança da humanidade.” Jerusalém, hoje, é o extremo dessa cultura da fragmentação e da disputa. Para Lula Buarque de Hollanda, “ali, o muro é o marco absoluto da inviabilidade do diálogo”. Como no Brasil e na Alemanha, também em Israel e na Palestina ele procurou documentar todos os lados do conflito. Enclave de uma situação iniciada há 15 anos, o muro da Cisjordânia é o desdobramento da ocupação desse território na Guerra dos Seis Dias (1967), e um dos símbolos mais fortes das tensões geopolíticas atuais.
Sua fonte de inspiração e referência para o documentário foi o escritor israelense Amós Oz e sua obra Como Curar Um Fanático (2004). Nela, Oz, internacionalmente reconhecido não só pela literatura, mas por sua militância pacifista, diz: “O fanático não tem senso de humor, não consegue rir de si mesmo”.
E é justamente pela chave do humor, que beira a perplexidade diante da assimetria das relações de poder e opressão, que a artista israelense Rona Yefman abordou a questão. Em Pippi Longstocking, The Strongest Girl in the World (2006-2008), Yefman usa a personagem criada pela sueca Astrid Lindgren como seu alter ego. “Porque ela é um personagem rebelde, com suas próprias ideias subversivas”, explicou Yefman em uma entrevista para a Columbia University.
“Usando a própria noção de Pippi de que ela é ‘a garota mais forte do mundo’ e que ela não acredita em fronteiras artificiais, documentamos sua tentativa de mover o enorme muro de concreto que separa Israel da Cisjordânia em Abu Dis”, diz a artista. A ação e a atitude de Pippi Longstocking refletem o desejo de tantos indivíduos que buscam mudar a realidade política e pessoal que os confina no mundo todo. E ela também representa a heroína feminina máxima, porque sonha com a mudança positiva e sugere transformações que podem promover a paz e a unidade”, escreve Rona Yefman na sinopse do seu vídeo.
Política de construção de barreiras
Esses discursos, apesar de localizados em situações específicas e divulgados com certa recorrência nos meios de comunicação internacionais, não são exceções do mundo globalizado. De acordo com um estudo dos Professores Elisabeth Vallet e Charles-Philippe David, publicado no Journal of Borderlands Studies (2012), com o fim da Guerra Fria, o número de muros no mundo caiu de 15 para 13. Entre 1991 e 2001, apenas sete foram construídos e anunciava-se uma tendência que parecia irreversível com a globalização. Contudo, depois de 11 de setembro de 2001, nota-se uma crescente retomada da política de criação de barreiras, com a construção de 28 muros, chegando em 2010 com cerca de 50. Não só os números cresceram muito, como também o perfil desses muros do século 21 mudou. Não se trata mais de barreiras que marcam fronteiras. A maior parte delas tem como função converter a linha de frente em uma fronteira real. Os muros de hoje, explicam os professores, “têm como foco duas ameaças: migrantes e terroristas (os dois muitas vezes se superpõem, ou são combinados, no discurso pró-muro). Nesse sentido, os muros servem a um duplo propósito – proteger contra o exterior e funcionar como um invólucro para o interior”.
Esses discursos, apesar de localizados em situações específicas e divulgados com certa recorrência nos meios de comunicação internacionais, não são exceções do mundo globalizado. De acordo com um estudo dos Professores Elisabeth Vallet e Charles-Philippe David, publicado no Journal of Borderlands Studies (2012), com o fim da Guerra Fria, o número de muros no mundo caiu de 15 para 13. Entre 1991 e 2001, apenas sete foram construídos e anunciava-se uma tendência que parecia irreversível com a globalização. Contudo, depois de 11 de setembro de 2001, nota-se uma crescente retomada da política de criação de barreiras, com a construção de 28 muros, chegando em 2010 com cerca de 50. Não só os números cresceram muito, como também o perfil desses muros do século 21 mudou. Não se trata mais de barreiras que marcam fronteiras. A maior parte delas tem como função converter a linha de frente em uma fronteira real. Os muros de hoje, explicam os professores, “têm como foco duas ameaças: migrantes e terroristas (os dois muitas vezes se superpõem, ou são combinados, no discurso pró-muro). Nesse sentido, os muros servem a um duplo propósito – proteger contra o exterior e funcionar como um invólucro para o interior”.

(Fotos: Cortesia do artista, Sommer Contemporary)
Um levantamento de 2015 aponta a existência de barreiras e muros em 65 países. O que chama atenção, frisam Vallet e David, além do ritmo de crescimento desses números, é que a construção de muros, depois de 2001, passou a tornar-se uma realização de governos democráticos, como as cercas colocadas pela Espanha em Ceuta e Melilla, o muro da Cisjordânia, construído pelo governo israelense (hoje com 800 quilômetros) e a extensão para 930 quilômetros da barreira entre os Estados Unidos e o México.
Esse último muro, aliás, foi um dos destaques da campanha de Donald Trump. Segundo o presidente dos EUA, a sua construção é “mais que necessária” para frear a imigração. De acordo com ele, serão os próprios mexicanos os responsáveis pelo seu pagamento (estimado em US$ 20 milhões). O tema, que afetou as relações diplomáticas entre os dois países desde a primeira semana de sua posse, não é inédito, haja vista que a barreira existe desde 1994. A tensa situação na área foi objeto do coletivo ativista Electronic Disturbance Theater, liderado por Ricardo Dominguez e Brett Stalbaum. Professores da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), eles desenvolveram, em 2007, um aplicativo para celular, o Transborder Immigrant Tool, que visava aumentar a segurança dos imigrantes ilegais na fronteira México-EUA. O aplicativo funcionava como uma bússola para localização de água no deserto e disparava poemas em espanhol que funcionavam como um oráculo conselheiro para enfrentar os perigos da viagem.
Transborder Immigrant Tool rendeu a Dominguez um processo de investigação, em 2010, que envolveu deputados republicanos, o FBI e membros do board da UCSD, e gerou, na época, protestos das comunidades artística e acadêmica internacionais. No clímax da polêmica, evidenciava a força da conversão de sistemas de posicionamento global (GPS) em sistemas de posicionamento poético. Uma força que os muros tentam conter e que, ao vingar, suprimem o diálogo para impor a voz do Estado autoritário.

Palabras, Palabras… (2017), de Antoni Muntadas, composto de uma pasta com dez impressões digitais originais (Fotos: Cortesia do artista)
Em Palabras, Palabras… (2017), múltiplo de Antoni Muntadas, artista catalão radicado nos EUA, esse movimento é enunciado em dez pranchas, em preto e branco, na seguinte ordem: Democracia, Ideologia, Debate, Transparência, Vanguarda, Retórica, Política, Medo, Demagogia e Governo. Nas cinco primeiras, as palavras começam nítidas e desaparecem, consumidas, rapidamente no ruído gráfico da página. Aos poucos, a retórica se impõe, toma conta da política e o ruído cede espaço para o medo, a demagogia e o governo. Estamos já presos na mordaça dos muros.
https://www.select.art.br/era-dos-muros/
0 comentários:
Postar um comentário