2 de jan. de 2019

Corrupção, na pita e com humus.


Corrupção, na pita e com humus.

Para quem acompanha notícias daqui de Israel, o momento está próximo de uma season finale de House of Cards: todas os holofotes estão voltados para o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu e sua esposa Sara.
O casal.
Para um país que já passou por inumeras guerras e ondas de violência, pode até dizer que este tipo de notícia é pouco relevante. Certamente não é a opinião das multidões que se reuniram e ainda se reunem na frente da residência do Procurador-Geral de Israel, Avichai Mandelblit. Os protestos pedem o indiciamento imediato do Primeiro-Ministro — e sua renúncia. A resposta de Netanyahu e de seus aliados é simples: as denúncias são infundadas, são uma tentativa da esquerda para destituir o primeiro-ministro e parte de uma conspiração orquestrada pela mídia.
Basicamente são duas grandes denúncias que correm contra Bibi: tráfico de influência e corrupção. De acordo com os processos, Netanyahu recebeu propina e presentes de milionários para favorecê-los em questões de Estado. E para ganhar cobertura jornalística favorável do jornal Yediot Acharonot, prometeu ao dono avançar certa legislação que prejudicaria seu maior rival, o periódico Israel Hayom, ferrenhamente pró-governo. O Yediot tradicionalmente se mostrou crítico ao governo, e a negociata entre rivais pareceu ao público muito curiosa. Ao mesmo tempo que atacava o jornal em público, ao fechar das portas estava negociando com seu dono.
Os acontecimentos mais recentes apontam para o indiciamento da esposa de Bibi, por falsificar notas fiscais da alimentação da residência oficial. A lei israelense permite que o chefe de governo tenha um chef de cozinha à disposição, mas que no caso de não ter, que a comida comprada fora de casa seja paga pelo Erário. A acusação é que Sara omitiu a existência do chef para gastar mais de 350 mil shekels em refeições feitas em restaurantes luxuosos.
Sara Netanyahu.
A verdade é que os israelenses já conhecem a corrupção de longa data. Em uma passagem bastante preconceituosa de seu livro Eichmann em Jerusalém, a filósofa Hannah Arendt já dizia que diversos setores do governo e da burocracia israelense viviam de “Vitamina P” ou protektzia. O termo pode parecer sofisticado, mas conhecemos no Brasil como o clássico“quem indica”. Basicamente é ter conexões corretas, no momento correto. Com isso, é possível evitar burocracia, avançar uma reunião importante, etc. Parece um pouco nosso já muito conhecido jeitinho brasileiro.
É de se perguntar: de onde isto surgiu? No início do Estado de Israel, recursos eram escassos. A solução proposta por David Ben Gurion foi simples: tudo seria controlado pelo Estado. Caberia às autoridades fornecer tudo na vida do cidadão, até mesmo decidindo o que ele comeria e onde poderia comprar, em que colégio iria matricular seus filhos. Não somente isto, lealdade no voto ao partido no poder (no caso o Mapai, o Partido dos Trabalhadores da Terra de Israel) trazia benefícios, como acesso mais rápido a imóveis subsidiados e cargos dentro da burocracia. Se sabia que era uma relação problemática, mas que ao mesmo tempo, expandia o acesso da população a serviços. Supostamente, era um preço a se pagar para a construção do Estado. A lógica era simples: poucas vezes um Estado sem recursos naturais tentou criar um Estado de Bem-Estar social ao mesmo tempo que absorvia meio milhão de habitantes. Para tal empreitada, era necessário fazer o que fosse possível.
É claro que tal sistema não tinha como se sustentar para sempre. Pequenos burocratas acabaram por serem donos de pequenos feudos de poder. Suas preferências frequentemente criavam insatisfação e ressentimento entre os que não eram beneficiados. Quase sempre judeus orientais eram deixados de fora: um cidadão com nome “Buzaglo” — tipicamente iraquiano- nunca iria se tornar dirigiente local do Mapai, era o que se dizia nas esquinas das cidades periféricas de Israel. Ou seja, o bolo até podia estar sendo compartilhado e todos ganhavam sua fatia. Porém inegavelmente, os pedaços melhores iam para um certo grupo.
É claro que o sistema não garantia uma vida nababesca aos beneficiários: um apartamento, algum emprego melhor. No compto geral, os beneficiários não se tornavam milionários ou muito mais ricos do que a média da população. A tolerância para com demonstrações de ostentação foi sempre baixa. Ben-Gurion morou por boa parte de sua vida em uma casa no deserto e o modo de vida da população era no geral, austero. Não existiam canais de televisão para entretenimento, somente os canais educacionais do Estado. No início do país, a escassez de comida era tanta que para substituir o arroz, se vendia massa de macarrão enrolada. Em 1977, o Primeiro-Ministro Yitzhak Rabin renunciou ao cargo por ter uma conta de banco nos EUA sem autorização da burocracia estatal. O saldo era de U$ 10.000 (a cara dos israelenses quando conto das malas de Geddel Vieira é impagável).
Yitzhak Rabin e sua esposa, Leah.
A oposição via em tais ações um claro aparelhamento do Estado, algo que tomou como bandeira nas eleições de 1977. A hegemonia de 29 anos de governos de esquerda foi quebrada e deu lugar ao Likud, na época uma aliança entre os “Liberalim” e o Herut, o partido de Begin. Na agenda estavam: conservadorismo social, livre-mercado e o desmantelamento da cultura criada pelos judeus ashkenazim, para dar lugar a um país mais receptivo à manifestações culturais de judeus orientais e mais religião na esfera pública.
Menachem Begin
O governo do Likud trouxe o início de uma abertura para os mercados estrangeiros que mudou a face de Israel. Começou a surgir a tal da “start-up nation” e uma vida menos austera, representada claramente na Tel Aviv hedonista, com roupas da última moda nos seus calçadões, nas propostas milionárias para a compra de start-ups iniciadas em alguma garagem dos subúrbios. Dinheiro parou de ser um bem quase que imaginário para se tornar o motor da vida de parte da sociedade, que trabalhava dia e noite conectada com os mercados globais.
O descolamento maior entre políticos e a população se intensificou com o assassinato de Yitzhak Rabin, em 1994. Netanyahu, criado nos Estados Unidos e aluno do Massachussets Institute of Technology, é de um perfil completamente diferente das antigas lideranças do país. A austeridade dos governantes se tornou menos e menos relevante e os passeios de Netanyahu pela elite não incomodavam mais ninguém. A existência de “muito dinheiro” deixou de ser algo reprovável para ser até desejável. O país se tornou mais de classe média e repleto de novos-ricos.
O combate contra a corrupção é pesado em Israel, mesmo assim. Quase todos os primeiros-ministros foram investigados em algum momento de suas carreiras. Um ex-rabino chefe do país está na cadeia por receber mais de dois milhões de dólares em propinas. O atual ministro do Interior, Aryeh Deri, foi condenado e preso por receber U$ 155.000 em propinas.
A fonte da corrupção, obviamente, não é algo simples de evidenciar. Tem um pouco de tudo, algo de cultural, algo de estrutural. Alguns israelenses vêem esta tendência a burlar o sistema de maneira positiva, pois ajuda a suportar uma burocracia que muitas vezes é profundamente insuportável.
No caso de Netanyahu é especialmente curioso. É comum ver pessoas dizendo que não vale a pena derrubar o governo por algumas garrafas de champagne e charutos dados de presente. Outros dizem que mesmo com Netanyahu culpado, não há alternativa para o cargo. Para grande parte da população, a vida segue entrando mês após mês no minus, reclamando do preço do leite na fila do mercado, da impossibilidade de comprar um apartamento próprio…
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