Corrupção, na pita e com humus.
Para quem acompanha notícias daqui de Israel, o momento está próximo de uma season finale de House of Cards: todas os holofotes estão voltados para o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu e sua esposa Sara.
Para um país que já passou por inumeras guerras e ondas de violência, pode até dizer que este tipo de notícia é pouco relevante. Certamente não é a opinião das multidões que se reuniram e ainda se reunem na frente da residência do Procurador-Geral de Israel, Avichai Mandelblit. Os protestos pedem o indiciamento imediato do Primeiro-Ministro — e sua renúncia. A resposta de Netanyahu e de seus aliados é simples: as denúncias são infundadas, são uma tentativa da esquerda para destituir o primeiro-ministro e parte de uma conspiração orquestrada pela mídia.
Basicamente são duas grandes denúncias que correm contra Bibi: tráfico de influência e corrupção. De acordo com os processos, Netanyahu recebeu propina e presentes de milionários para favorecê-los em questões de Estado. E para ganhar cobertura jornalística favorável do jornal Yediot Acharonot, prometeu ao dono avançar certa legislação que prejudicaria seu maior rival, o periódico Israel Hayom, ferrenhamente pró-governo. O Yediot tradicionalmente se mostrou crítico ao governo, e a negociata entre rivais pareceu ao público muito curiosa. Ao mesmo tempo que atacava o jornal em público, ao fechar das portas estava negociando com seu dono.
Em uma região não exatamente conhecida por uma imprensa livre, além de experiências de vizinhos que em uma década saíram de uma democracia para um governo autoritário, calafrios são o mínimo ao ler tais notícias. Outros casos envolvem o favorecimento ilegal de uma empresa de telecomunicações, assim como a curiosa situação em que associados próximos do PM receberam e deram alguns milhares de shekalim de propina para fazerem parte da negociata dos novos submarinos israelenses. O acordo para comprá-los da Alemanha envolvia 1.5 bilhão de euros.
Os acontecimentos mais recentes apontam para o indiciamento da esposa de Bibi, por falsificar notas fiscais da alimentação da residência oficial. A lei israelense permite que o chefe de governo tenha um chef de cozinha à disposição, mas que no caso de não ter, que a comida comprada fora de casa seja paga pelo Erário. A acusação é que Sara omitiu a existência do chef para gastar mais de 350 mil shekels em refeições feitas em restaurantes luxuosos.
A verdade é que os israelenses já conhecem a corrupção de longa data. Em uma passagem bastante preconceituosa de seu livro Eichmann em Jerusalém, a filósofa Hannah Arendt já dizia que diversos setores do governo e da burocracia israelense viviam de “Vitamina P” ou protektzia. O termo pode parecer sofisticado, mas conhecemos no Brasil como o clássico“quem indica”. Basicamente é ter conexões corretas, no momento correto. Com isso, é possível evitar burocracia, avançar uma reunião importante, etc. Parece um pouco nosso já muito conhecido jeitinho brasileiro.
É de se perguntar: de onde isto surgiu? No início do Estado de Israel, recursos eram escassos. A solução proposta por David Ben Gurion foi simples: tudo seria controlado pelo Estado. Caberia às autoridades fornecer tudo na vida do cidadão, até mesmo decidindo o que ele comeria e onde poderia comprar, em que colégio iria matricular seus filhos. Não somente isto, lealdade no voto ao partido no poder (no caso o Mapai, o Partido dos Trabalhadores da Terra de Israel) trazia benefícios, como acesso mais rápido a imóveis subsidiados e cargos dentro da burocracia. Se sabia que era uma relação problemática, mas que ao mesmo tempo, expandia o acesso da população a serviços. Supostamente, era um preço a se pagar para a construção do Estado. A lógica era simples: poucas vezes um Estado sem recursos naturais tentou criar um Estado de Bem-Estar social ao mesmo tempo que absorvia meio milhão de habitantes. Para tal empreitada, era necessário fazer o que fosse possível.
É claro que tal sistema não tinha como se sustentar para sempre. Pequenos burocratas acabaram por serem donos de pequenos feudos de poder. Suas preferências frequentemente criavam insatisfação e ressentimento entre os que não eram beneficiados. Quase sempre judeus orientais eram deixados de fora: um cidadão com nome “Buzaglo” — tipicamente iraquiano- nunca iria se tornar dirigiente local do Mapai, era o que se dizia nas esquinas das cidades periféricas de Israel. Ou seja, o bolo até podia estar sendo compartilhado e todos ganhavam sua fatia. Porém inegavelmente, os pedaços melhores iam para um certo grupo.
É claro que o sistema não garantia uma vida nababesca aos beneficiários: um apartamento, algum emprego melhor. No compto geral, os beneficiários não se tornavam milionários ou muito mais ricos do que a média da população. A tolerância para com demonstrações de ostentação foi sempre baixa. Ben-Gurion morou por boa parte de sua vida em uma casa no deserto e o modo de vida da população era no geral, austero. Não existiam canais de televisão para entretenimento, somente os canais educacionais do Estado. No início do país, a escassez de comida era tanta que para substituir o arroz, se vendia massa de macarrão enrolada. Em 1977, o Primeiro-Ministro Yitzhak Rabin renunciou ao cargo por ter uma conta de banco nos EUA sem autorização da burocracia estatal. O saldo era de U$ 10.000 (a cara dos israelenses quando conto das malas de Geddel Vieira é impagável).
A oposição via em tais ações um claro aparelhamento do Estado, algo que tomou como bandeira nas eleições de 1977. A hegemonia de 29 anos de governos de esquerda foi quebrada e deu lugar ao Likud, na época uma aliança entre os “Liberalim” e o Herut, o partido de Begin. Na agenda estavam: conservadorismo social, livre-mercado e o desmantelamento da cultura criada pelos judeus ashkenazim, para dar lugar a um país mais receptivo à manifestações culturais de judeus orientais e mais religião na esfera pública.
O governo do Likud trouxe o início de uma abertura para os mercados estrangeiros que mudou a face de Israel. Começou a surgir a tal da “start-up nation” e uma vida menos austera, representada claramente na Tel Aviv hedonista, com roupas da última moda nos seus calçadões, nas propostas milionárias para a compra de start-ups iniciadas em alguma garagem dos subúrbios. Dinheiro parou de ser um bem quase que imaginário para se tornar o motor da vida de parte da sociedade, que trabalhava dia e noite conectada com os mercados globais.
O descolamento maior entre políticos e a população se intensificou com o assassinato de Yitzhak Rabin, em 1994. Netanyahu, criado nos Estados Unidos e aluno do Massachussets Institute of Technology, é de um perfil completamente diferente das antigas lideranças do país. A austeridade dos governantes se tornou menos e menos relevante e os passeios de Netanyahu pela elite não incomodavam mais ninguém. A existência de “muito dinheiro” deixou de ser algo reprovável para ser até desejável. O país se tornou mais de classe média e repleto de novos-ricos.
O combate contra a corrupção é pesado em Israel, mesmo assim. Quase todos os primeiros-ministros foram investigados em algum momento de suas carreiras. Um ex-rabino chefe do país está na cadeia por receber mais de dois milhões de dólares em propinas. O atual ministro do Interior, Aryeh Deri, foi condenado e preso por receber U$ 155.000 em propinas.
A fonte da corrupção, obviamente, não é algo simples de evidenciar. Tem um pouco de tudo, algo de cultural, algo de estrutural. Alguns israelenses vêem esta tendência a burlar o sistema de maneira positiva, pois ajuda a suportar uma burocracia que muitas vezes é profundamente insuportável.
No caso de Netanyahu é especialmente curioso. É comum ver pessoas dizendo que não vale a pena derrubar o governo por algumas garrafas de champagne e charutos dados de presente. Outros dizem que mesmo com Netanyahu culpado, não há alternativa para o cargo. Para grande parte da população, a vida segue entrando mês após mês no minus, reclamando do preço do leite na fila do mercado, da impossibilidade de comprar um apartamento próprio…
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