Contra o racismo e pela agroecologia: confira como foi a marcha das mulheres camponesas na Paraíba
Em sua décima edição, Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia reuniu 6 mil pessoas e celebrou legado de Marielle Franco; camponesas do Polo da Borborema debatem racismo e violência
Por Helena Dias e Inês Campelo, em Remígio (PB)
Em parceria com a Marco Zero Conteúdo
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“Quem mandou matar Marielle Franco?”. Estampada em cartazes e gritada em uníssono por cerca de 6 mil mulheres – muitas delas negras, como a vereadora carioca cujo assassinato completou um ano nesta quinta-feira (14) -, a pergunta foi a tônica da décima Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia, realizada em Remígio, no Polo da Borborema, Agreste da Paraíba.

Realizada anualmente no dia 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, o ato teve sua data alterada para homenagear Marielle e reforçar o tema deste ano: o combate ao racismo. Segundo Adriana Galvão, coordenadora da Marcha e assessora técnica da AS-PTA, associação que atua no fortalecimento da agricultura camponesa, o dia 14 foi escolhido por ser uma data simbólica:
– Na marcha passada, fizemos o tema da diversidade e já sabíamos que era importante trabalhar com o tema da identidade racial e do racismo. Eu acho que toda a simbologia que Marielle traz de uma mulher negra, periférica, bissexual que ocupa um espaço de poder com grande destaque, isso, por si só, já era uma inspiração para as mulheres locais e de todo o Brasil. Mas, ao calar essa voz, o tema se fortalece muito mais dentro da marcha, que vem para homenagear todas as mulheres que foram caladas ao ocupar esses espaços.
Além de Marielle Franco, também foi homenageada a sindicalista, agricultora e defensora dos direitos humanos Margarida Maria Alves, assassinada há 50 anos em Alagoa Grande (PB) e que segue inspirando a luta das mulheres camponesas no Polo da Borborema. Em parceria com a Marco Zero Conteúdo, De Olho nos Ruralistas contou algumas dessas histórias: “Margaridas e Marielles: quatro histórias de luta camponesa na Paraíba“.
MARCHA MOBILIZA CIDADE DE REMÍGIO
A mobilização se concentrou durante cerca de três horas no Alto da Colina e cruzou a cidade até o Parque da Lagoa, onde o Grupo de Teatro do Polo da Borborema encenou uma peça sobre racismo e machismo. No palco montado pela organização, as participantes assistiram ao show da cantora Lia de Itamaracá e seguiram para a feira agroecológica Sementes e Sabores.
Durante toda a caminhada, moradores e comerciantes saíram de suas casas e estabelecimentos para ver as mulheres passarem. A aposentada Francisca Miguel de Souza acompanha a mobilização das agricultoras todos os anos: “A marcha está maravilhosa e muito bonita”. Filha de trabalhadores rurais, ela viveu da roça quando era adolescente e hoje completa a aposentadoria vendendo fiteiro. “Moro nesta rua há 40 anos mas não é sempre que vemos algo assim. Por isso, há dez anos eu vi a primeira marcha passar e faço o mesmo hoje”.

A origem camponesa é comum em Remígio. Maria da Paz foi agricultora durante quarenta anos. Hoje aposentada, aos 67 anos, atua no grupo de mulheres do Centro de Referência de Assistência Social do município de Lagoa da Roça. Ela lembra que estava no Rio de Janeiro quando a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes foram assassinados a tiros: “Recebi a notícia como um choque, uma tristeza. Até então, eu não conhecia Marielle, mas me reconheço como mulher negra e estou aqui por todas nós, para combater o racismo e lembrar de dizer não à reforma da previdência de Bolsonaro”.
Há também quem saiu de longe para apreciar a marcha e se juntar à luta das mulheres do campo. Professora de artes do Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Rio de Janeiro, Maria Lúcia Vinholi, de 53 anos, conheceu a marcha há cinco anos quando produziu estandartes para a mobilização, a pedido da AS-PTA. Diz que se encantou com a luta das agricultoras e, principalmente, com a força delas: “Aqui é muito verdadeiro. Há muito envolvimento dos jovens. Eles participam e sabem falar da agroecologia de maneira muito linda, comovente e envolvente. A gente se encanta e tem vontade de compartilhar essa realidade com os jovens de lá [do Rio]”.

APOSTA NA AGROECOLOGIA, CONTRA MONOCULTURA
Enquanto a marcha seguia pelas ruas de Remígio, a agricultora Josefa Miranda dos Santos, de 58 anos, montava sua barraca de frutas agroecológicas no Parque da Lagoa, onde começava a feira Sementes e Sabores, reunindo produtores da região. Ao mesmo tempo que vendia seus produtos, Josefa respondia à reportagem: “Me aposentei há quatro anos, mas continuo como agricultora. Participo da marcha desde a primeira, mas só nesta fiquei na feira”.
Formado por quinze municípios, o Polo da Borborema possui treze sindicatos rurais e cerca de 150 associações comunitárias, além de uma organização regional de agricultores que trabalham sob os princípios da agroecologia. Iniciado há 25 anos, através da capacitação e da assessoria técnica realizadas pela AS-PTA, o processo de transição agroecológica transformou a região em um dos poucos locais no Brasil a conter a entrada da monocultura, que avança no restante da Paraíba, com a cana de açúcar no litoral e a fruticultura irrigada no Sertão.

Em 2009, uma articulação de movimentos sociais se reuniu sob o Fórum do Território da Borborema para evitar que a Souza Cruz, maior produtora de tabaco do Brasil, expandisse suas plantações de fumo na região. Mas a vitória na queda de braço contra a multinacional não foi a única.
No ano seguinte, em 2010, os camponeses atuaram contra a distribuição de agrotóxicos pelo governo estadual, como medida de combate à chegada da mosca-negra-do-citrus (Aleurocanthus woglumi Ashby), praga que vinha devastando plantações inteiras no Nordeste. Junto a pesquisadores da Universidade Federal da Paraíba, os agricultores e agricultoras do Polo demonstraram a maior eficácia do controle biológico, um dos princípios da agroecologia, evitando que a praga se propagasse pela região.
Segundo Adriana Galvão, da AS-PTA, os camponeses têm conseguido manter a Borborema como um polo e região agroecológica, mas observam com cautela o recente processo de reconcentração fundiária que vem ocorrendo em alguns municípios, pelas mãos do poder local:
– Com a expulsão do campo, as famílias vão para as periferias das cidades. Em muitos casos, as mulheres vão trabalhar como domésticas e os jovens perdem o vínculo da sucessão com a terra. Sem o direito de opção [de ficar ou sair do campo], são afetados pela violência urbana. É a destruição do tecido social.
COMBATE AO RACISMO FOI TEMA CENTRAL DA MARCHA

Além de música e gastronomia, a 10ª Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia também teve teatro e uma necessária reflexão sobre os impactos do racismo na região. Secretaria do sindicato de trabalhadores rurais de Água Seca (PB), Marcia Araújo dos Santos também integra o Grupo de Teatro do Polo da Borborema. Na peça encenada ontem, ela interpretou a personagem Zefinha, uma jovem negra que sonha em concluir os estudos, mas tem de trabalhar como empregada doméstica para contribuir no sustento da família.
A história evidencia como o racismo e o machismo se manifestam no ambiente doméstico e também na relação entre patrões e funcionárias. “Minha mãe trabalhou em casa de família e essa peça que apresentamos hoje é muito parecida”, conta. “Ela tinha que dormir num quarto separado da casa dos patrões e só podia almoçar depois que eles almoçassem. Muitas mulheres se identificam com essa realidade. Eu me orgulho de ser negra e agricultora”.
Depois de cinco horas de passeata pelas ruas de Remígio, as camponesas encerraram a marcha em uma ciranda comandada por Lia de Itamaracá. São delas as mãos que ilustram a foto principal desta reportagem.
https://deolhonosruralistas.com.br/2019/03/15/contra-o-racismo-e-pela-agroecologia-confira-como-foi-a-marcha-das-mulheres-camponesas-na-paraiba/
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Os dedos foram se entrelaçando a partir de um sonho antigo: ter a vida narrada em palavras. Cada um chegou com um pouco e de repente, de mão em mão, mais uma ciranda se formou em torno de Lia para transformar ideia em realidade. Para reverenciar a história de luta e perseverança de Maria Madalena Correa do Nascimento, a mulher negra da Ilha de Itamaracá por trás do título de patrimônio vivo da cultura pernambucana. Prestes a completar mais um aniversário, Lia virou prosa de memórias e fatos inéditos de sua trajetória, no livro Lia de Itamaracá: 75 anos cirandando com resistência, sorrisos e simplicidade, que será lançado nesta sexta-feira (11), no Bairro do Recife.
A rainha da ciranda, conhecida como diva da música negra e celebrada mundo afora por promover encontros de roda ritmados e harmônicos assumiu o papel de se deixar envolver e viu nascer um levante de agradecimento em torno dos seus 75 anos. Para isso, desvelou um lado pouco conhecido. O dos esforços que fez para levar a música adiante numa família de 18 irmãos na sua maioria sem vocação artística, do tempo que passou trabalhando como merendeira em uma escola, do calote que levou no início da carreira pelo primeiro empresário, da vida a dois ao lado do marido Toinho, da época em que teve a casa incendiada e da relação com o produtor Beto Hees. “O que eu mais queria era ver a minha vida escrita. Já fui até ao médico conferir o coração. Ele está preparado”, conta, abrindo o riso.
A obra a ser lançada reúne textos extraídos do livro-reportagem “O mito, a mulher, a ciranda”, trabalho de conclusão do mestrado em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) do jornalista pernambucano Marcelo Henrique Andrade, e mais de 100 imagens de mais de 15 fotógrafos. “Passamos 30 meses nos encontrando na casa dela e acompanhamos shows no estado e fora dele para narrar a Lia pouco conhecida e também o reino dela, a forte relação com as pessoas de Itamaracá, mostrar que ela é uma ilustre popular num reino onde o poder público ainda não entende o patrimônio que tem”, afirmou Marcelo. Todo o material foi cedido de forma colaborativa para a obra.
Colaboração, na realidade, é a tônica de um projeto que tem o livro como pontapé de uma programação extensa, que pela primeira vez realizará a celebração do aniversário de Lia de Itamaracá também no Recife. “Já existia um interesse de fazer uma atividade com Lia no Recife, decorrente de uma conexão nossa que começou em 2014, e uma programação que estava sendo planejada para comemorar o aniversário em Itamaracá. E acabamos encontrando esse formato, juntado pessoas que não se conheciam, para provocar as pessoas a viverem a experiência de conhecer um pouco mais do universo dela”, afirma a criadora do Sinspire Hub e curadora do livro, Maria Luciana Nunes.
Esse encontro ocasional de um livro que já estava pronto e da conexão do Sinspire com Lia tomou forma por meio do projeto da Jeep de se conectar à cultura da Zona da Mata Norte, onde a empresa está inserida há quase quatro anos. “Temos como tradição se conectar com as manifestações culturais e sociais do entorno das fábricas. Já tínhamos feito uma aproximação para conhecer a obra de Lia e estávamos querendo produzir algo juntos”, explica o gerente de comunicação da Fiat Chrysler Automobiles, Roberto Baraldi.
O lançamento do livro, que ocorrerá hoje no Sinspire, na Praça do Arsenal, a partir das 17h30, tem como meta arrecadar fundos para a finalização das obras do Centro Cultural Estrela de Lia, espaço de promoção da cultura popular e educacional que a artista mantém na Ilha de Itamaracá e está fechado há quatro anos. Serão disponibilizadas inicialmente 700 cópias da edição, com 80 páginas.
O evento também abre uma sequência de programação que durará todo o fim de semana. No Sinspire, haverá uma exposição gratuita até o carnaval, com mostra fotográfica de Alfeu Tavares, objetos pessoais da cirandeira (vestidos usados nos shows, fotografias da família, objetos carregados de afeto e a boneca gigante do carnaval) e sessões de cinema – curtas-metragens serão exibidos todos os dias, entre as 10h30 e as 11h da manhã e das 14h30 às 18h, até o fim da exposição.
A noite de lançamento terminará com um show tributo com Daúde, Mestre Galo Preto, Mestra Joana Cavalcante, Karynna Spinelli, Romero Ferro, Nego Henrique, Claudionor e Nonô Germano, André Rio, Nádia Maia, Ed Carlos, Roger e a Rural, entre outros. Além de uma ciranda ao redor da Praça do Arsenal. A festa continuará em Itamaracá, ao longo do sábado e do domingo. No sábado, o Galo da Madrugada e o Homem da Meia-noite, que homenagearão Lia neste carnaval, farão um cortejo, a partir das 16h, em direção ao Centro Cultural. Serão 24 horas de atividades, com um luau durante a madrugada e também shows, palestras e ações de conscientização ambiental.
Entrevista // Lia de ItamaracáLia de Itamaracá não para e nem quer parar. Sempre com um sorriso no rosto, arrasta as dificuldades, que não são poucas, para debaixo do tapete e toca para frente a carreira reconhecida no Brasil e no exterior. Preparando-se para embarcar para mais uma turnê internacional – a quinta – e em produção para o lançamento de um CD e DVD, em parceria com a Natura Musical, o quarto dessa história, ela conta em entrevista ao Diario detalhes da emoção de realizar o sonho de lançar um livro e das dificuldades que enfrenta para continuar entrelaçando mãos e formando cirandas dentro de Pernambuco.Por que abrir essas memórias em um livro e revelar um lado pouco conhecido da Lia?Pelo meu dom, o dom de ser Lia, o dom que Deus me deu, o meu sonho de um dia ser cantora, reconhecida mundialmente e ser feliz pelo trabalho que faço, como eu faço. Venho de uma família que não canta, não dança, não sabe nem para aonde vai. Somos 18 irmãos, mas só eu me interessei pela música, com 13 anos de idade. Com 19, assumi a responsabilidade de me apresentar em Itamaracá e no Recife.
E como começou essa história com a música?Eu queria cantar música, então me dirigia à praia, me sentava, escrevia as letras da música na areia, a onda vinha e apagava. Aí eu escrevia de novo. Era um jogo de cintura, a onda teimando comigo. Num era num caderno, não. Era uma pedaço de pau na areia. É mole? Escrevi cinco músicas. Cozinhava no meio da semana, trabalhei como merendeira e na secretaria de turismo. Aí no fim de semana ia fazer ciranda.
Quais os planos que você ainda tem?Meu sonho agora é ser mais feliz do que sou. Enricar a gente não enrica, mas ser feliz é a melhor riqueza. Ser leve, ter peito aberto, dizer o que você sente, o que você quer, isso é muito importante. É ter uma felicidade tranquila.
E o que falta para atingi-lo? No ano passado, você se recusou a cantar durante o carnaval do estado por falta de pagamento. Essa questão do apoio ainda é uma dificuldade?Sou patrimônio vivo, mas eles só me tombaram e não tombaram a ciranda. É por isso que o espaço cultura de Lia em Itamaracá está do jeito que está (o centro está fechado há quatro anos, depois que desabou em função de chuvas que atingiram a Região Metropolitana do Recife). Se a ciranda também fosse reconhecida, eu tinha metido a cara e tinha feito o centro já. Mas o dinheiro que dão para Lia só é suficiente para pagar consultas de médico e comprar medicamento. Quem tem diabetes, gastrite, o dinheiro só dá para isso. Me seguro com o dinheiro de aposentada da escola, para afzer o orçamento e os afazeres de casa, comprar uma calcinha, um sutiã.
O que falta para terminar o centro?Falta camarim, banheiros, palco, sala, piso, cozinha e a área utilizada para fazer os cursos.
Você é muito ligada a Itamaracá, inclusive pela sua vontade de levar o centro para frente é possível perceber isso. O que a Ilha significa para você?A comunidade me arrodeia. Sou filha de Itamaracá, já diz tudo. Tenho tudo de lá e a ilha tem tudo de mim. Mas falta apoio. A gestão não ajuda, não chega perto. Como a pessoa tem uma artista local, não é que eu queira ser a rainha da cocada preta, não. Mas se existe uma artista local e não há apoio, interesse? Meu trabalho fora é mais valorizado. Vou lá para fora e parece que já moro ali há muito tempo. Vou de peito aberto, peito erguido. Levanto a minha cabeça, Beto me coloca debaixo do braço e diz: vamos simbora! Faço meus showzinhos e depois volto. Coçando o bolsinho, Lia corre de novo, ganha um pouco e depois volta para casa.
Como é romper essas barreiras de falta de apoio?Eu não trabalho sozinha, trabalho com uma equipe. É uma responsabilidade grande, com músico, transporte, alimentação. Tem músico da Paraíba, do Recife. Ao todo, é uma equipe de 11 pessoas. A gente busca, faz bonito e depois do pirão feito, a pessoa come e deixa o prato limpo? É triste. E quando a gente bota queixão, ainda acham ruim. É isso que baixa o astral da pessoa. A gente quer cantar, receber e receber muito bem por isso, pois é nosso trabalho.
E como é ser mulher, negra, de Itamaracá, levando o nome e a música daqui para o mundo?É maravilhoso, como pobre e negra, chegar lá. Graças a Deus. O que eu quero é cantar e canto. É uma beleza. Lia está no mundo, com as músicas dela. A lia vai chamando o povo para dançar e ele vem.
Neste ano, você será homenageada pelo Homem da Meia-noite e também pelo Galo da Madrugada. Como está a expectativa para viver esse reconhecimento?Para mim, são mil maravilhas. É uma das maiores homenagens que me aconteceram. Eu nunca esperei na minha vida e chegou. Em Itamaracá, já fizeram umas coisas ligeiras, mas rigorosamente essa é a primeira. Já recebi muita homenagem, muito prêmio, mas igual a esse não tem. Já estou preparada, com o coração superbom. Deus já me deu poder, força e talento. Deus me disse: faz por ti que eu te ajudo. Eu faço, entrego e ele resolve.
Serviço:Livro Lia de Itamaracá: 75 anos cirandando com resistência, sorrisos e simplicidade, de Marcelo Henrique Andrade e fotógrafos
Curadoria: Maria Luciana Nunes/Sinspire
Local: Sinspire Hub – Rua da Guia, 234, Recife Antigo
Quando: Sexta-feira, 11/01 às 17h30
Preço: R$ 15 (show + exposição) ou R$ 70 (livro show exposição)
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2019/01/11/interna_vidaurbana,773434/lia-de-itamaraca-a-historia-da-mulher-negra-por-tras-do-titulo-de-pat.shtml
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Lia de Itamaracá: história da mulher por trás do título de patrimônio vivo da cultura pernambucana é contada em livroA obra 'Lia de Itamaracá: 75 anos cirandando com resistência, sorrisos e simplicidade' será lançada nesta sexta-feira (11), no Bairro do Recife
Por: Alice de Souza - Diario de Pernambuco
Publicado em: 11/01/2019 09:00 Atualizado em: 11/01/2019 14:43
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A artista está se preparando para embarcar para mais uma turnê internacional e em produção para o lançamento de um CD e DVD. Foto: Camila Pifano/Esp.DP. |
A rainha da ciranda, conhecida como diva da música negra e celebrada mundo afora por promover encontros de roda ritmados e harmônicos assumiu o papel de se deixar envolver e viu nascer um levante de agradecimento em torno dos seus 75 anos. Para isso, desvelou um lado pouco conhecido. O dos esforços que fez para levar a música adiante numa família de 18 irmãos na sua maioria sem vocação artística, do tempo que passou trabalhando como merendeira em uma escola, do calote que levou no início da carreira pelo primeiro empresário, da vida a dois ao lado do marido Toinho, da época em que teve a casa incendiada e da relação com o produtor Beto Hees. “O que eu mais queria era ver a minha vida escrita. Já fui até ao médico conferir o coração. Ele está preparado”, conta, abrindo o riso.
A obra a ser lançada reúne textos extraídos do livro-reportagem “O mito, a mulher, a ciranda”, trabalho de conclusão do mestrado em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) do jornalista pernambucano Marcelo Henrique Andrade, e mais de 100 imagens de mais de 15 fotógrafos. “Passamos 30 meses nos encontrando na casa dela e acompanhamos shows no estado e fora dele para narrar a Lia pouco conhecida e também o reino dela, a forte relação com as pessoas de Itamaracá, mostrar que ela é uma ilustre popular num reino onde o poder público ainda não entende o patrimônio que tem”, afirmou Marcelo. Todo o material foi cedido de forma colaborativa para a obra.
Colaboração, na realidade, é a tônica de um projeto que tem o livro como pontapé de uma programação extensa, que pela primeira vez realizará a celebração do aniversário de Lia de Itamaracá também no Recife. “Já existia um interesse de fazer uma atividade com Lia no Recife, decorrente de uma conexão nossa que começou em 2014, e uma programação que estava sendo planejada para comemorar o aniversário em Itamaracá. E acabamos encontrando esse formato, juntado pessoas que não se conheciam, para provocar as pessoas a viverem a experiência de conhecer um pouco mais do universo dela”, afirma a criadora do Sinspire Hub e curadora do livro, Maria Luciana Nunes.
Esse encontro ocasional de um livro que já estava pronto e da conexão do Sinspire com Lia tomou forma por meio do projeto da Jeep de se conectar à cultura da Zona da Mata Norte, onde a empresa está inserida há quase quatro anos. “Temos como tradição se conectar com as manifestações culturais e sociais do entorno das fábricas. Já tínhamos feito uma aproximação para conhecer a obra de Lia e estávamos querendo produzir algo juntos”, explica o gerente de comunicação da Fiat Chrysler Automobiles, Roberto Baraldi.
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Textos foram extraídos de livro-reportagem do jornalista Marcelo Henrique Andrade. Foto: Camila Pifano/Esp.DP |
O lançamento do livro, que ocorrerá hoje no Sinspire, na Praça do Arsenal, a partir das 17h30, tem como meta arrecadar fundos para a finalização das obras do Centro Cultural Estrela de Lia, espaço de promoção da cultura popular e educacional que a artista mantém na Ilha de Itamaracá e está fechado há quatro anos. Serão disponibilizadas inicialmente 700 cópias da edição, com 80 páginas.
O evento também abre uma sequência de programação que durará todo o fim de semana. No Sinspire, haverá uma exposição gratuita até o carnaval, com mostra fotográfica de Alfeu Tavares, objetos pessoais da cirandeira (vestidos usados nos shows, fotografias da família, objetos carregados de afeto e a boneca gigante do carnaval) e sessões de cinema – curtas-metragens serão exibidos todos os dias, entre as 10h30 e as 11h da manhã e das 14h30 às 18h, até o fim da exposição.
A noite de lançamento terminará com um show tributo com Daúde, Mestre Galo Preto, Mestra Joana Cavalcante, Karynna Spinelli, Romero Ferro, Nego Henrique, Claudionor e Nonô Germano, André Rio, Nádia Maia, Ed Carlos, Roger e a Rural, entre outros. Além de uma ciranda ao redor da Praça do Arsenal. A festa continuará em Itamaracá, ao longo do sábado e do domingo. No sábado, o Galo da Madrugada e o Homem da Meia-noite, que homenagearão Lia neste carnaval, farão um cortejo, a partir das 16h, em direção ao Centro Cultural. Serão 24 horas de atividades, com um luau durante a madrugada e também shows, palestras e ações de conscientização ambiental.
Entrevista // Lia de ItamaracáLia de Itamaracá não para e nem quer parar. Sempre com um sorriso no rosto, arrasta as dificuldades, que não são poucas, para debaixo do tapete e toca para frente a carreira reconhecida no Brasil e no exterior. Preparando-se para embarcar para mais uma turnê internacional – a quinta – e em produção para o lançamento de um CD e DVD, em parceria com a Natura Musical, o quarto dessa história, ela conta em entrevista ao Diario detalhes da emoção de realizar o sonho de lançar um livro e das dificuldades que enfrenta para continuar entrelaçando mãos e formando cirandas dentro de Pernambuco.Por que abrir essas memórias em um livro e revelar um lado pouco conhecido da Lia?Pelo meu dom, o dom de ser Lia, o dom que Deus me deu, o meu sonho de um dia ser cantora, reconhecida mundialmente e ser feliz pelo trabalho que faço, como eu faço. Venho de uma família que não canta, não dança, não sabe nem para aonde vai. Somos 18 irmãos, mas só eu me interessei pela música, com 13 anos de idade. Com 19, assumi a responsabilidade de me apresentar em Itamaracá e no Recife.
E como começou essa história com a música?Eu queria cantar música, então me dirigia à praia, me sentava, escrevia as letras da música na areia, a onda vinha e apagava. Aí eu escrevia de novo. Era um jogo de cintura, a onda teimando comigo. Num era num caderno, não. Era uma pedaço de pau na areia. É mole? Escrevi cinco músicas. Cozinhava no meio da semana, trabalhei como merendeira e na secretaria de turismo. Aí no fim de semana ia fazer ciranda.
Quais os planos que você ainda tem?Meu sonho agora é ser mais feliz do que sou. Enricar a gente não enrica, mas ser feliz é a melhor riqueza. Ser leve, ter peito aberto, dizer o que você sente, o que você quer, isso é muito importante. É ter uma felicidade tranquila.
E o que falta para atingi-lo? No ano passado, você se recusou a cantar durante o carnaval do estado por falta de pagamento. Essa questão do apoio ainda é uma dificuldade?Sou patrimônio vivo, mas eles só me tombaram e não tombaram a ciranda. É por isso que o espaço cultura de Lia em Itamaracá está do jeito que está (o centro está fechado há quatro anos, depois que desabou em função de chuvas que atingiram a Região Metropolitana do Recife). Se a ciranda também fosse reconhecida, eu tinha metido a cara e tinha feito o centro já. Mas o dinheiro que dão para Lia só é suficiente para pagar consultas de médico e comprar medicamento. Quem tem diabetes, gastrite, o dinheiro só dá para isso. Me seguro com o dinheiro de aposentada da escola, para afzer o orçamento e os afazeres de casa, comprar uma calcinha, um sutiã.
O que falta para terminar o centro?Falta camarim, banheiros, palco, sala, piso, cozinha e a área utilizada para fazer os cursos.
Você é muito ligada a Itamaracá, inclusive pela sua vontade de levar o centro para frente é possível perceber isso. O que a Ilha significa para você?A comunidade me arrodeia. Sou filha de Itamaracá, já diz tudo. Tenho tudo de lá e a ilha tem tudo de mim. Mas falta apoio. A gestão não ajuda, não chega perto. Como a pessoa tem uma artista local, não é que eu queira ser a rainha da cocada preta, não. Mas se existe uma artista local e não há apoio, interesse? Meu trabalho fora é mais valorizado. Vou lá para fora e parece que já moro ali há muito tempo. Vou de peito aberto, peito erguido. Levanto a minha cabeça, Beto me coloca debaixo do braço e diz: vamos simbora! Faço meus showzinhos e depois volto. Coçando o bolsinho, Lia corre de novo, ganha um pouco e depois volta para casa.
Como é romper essas barreiras de falta de apoio?Eu não trabalho sozinha, trabalho com uma equipe. É uma responsabilidade grande, com músico, transporte, alimentação. Tem músico da Paraíba, do Recife. Ao todo, é uma equipe de 11 pessoas. A gente busca, faz bonito e depois do pirão feito, a pessoa come e deixa o prato limpo? É triste. E quando a gente bota queixão, ainda acham ruim. É isso que baixa o astral da pessoa. A gente quer cantar, receber e receber muito bem por isso, pois é nosso trabalho.
E como é ser mulher, negra, de Itamaracá, levando o nome e a música daqui para o mundo?É maravilhoso, como pobre e negra, chegar lá. Graças a Deus. O que eu quero é cantar e canto. É uma beleza. Lia está no mundo, com as músicas dela. A lia vai chamando o povo para dançar e ele vem.
Neste ano, você será homenageada pelo Homem da Meia-noite e também pelo Galo da Madrugada. Como está a expectativa para viver esse reconhecimento?Para mim, são mil maravilhas. É uma das maiores homenagens que me aconteceram. Eu nunca esperei na minha vida e chegou. Em Itamaracá, já fizeram umas coisas ligeiras, mas rigorosamente essa é a primeira. Já recebi muita homenagem, muito prêmio, mas igual a esse não tem. Já estou preparada, com o coração superbom. Deus já me deu poder, força e talento. Deus me disse: faz por ti que eu te ajudo. Eu faço, entrego e ele resolve.
Serviço:Livro Lia de Itamaracá: 75 anos cirandando com resistência, sorrisos e simplicidade, de Marcelo Henrique Andrade e fotógrafos
Curadoria: Maria Luciana Nunes/Sinspire
Local: Sinspire Hub – Rua da Guia, 234, Recife Antigo
Quando: Sexta-feira, 11/01 às 17h30
Preço: R$ 15 (show + exposição) ou R$ 70 (livro show exposição)
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/vida-urbana/2019/01/11/interna_vidaurbana,773434/lia-de-itamaraca-a-historia-da-mulher-negra-por-tras-do-titulo-de-pat.shtml
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