7 de abr. de 2019

Alexandre Pessoa ‘O melhor plano de saneamento é aquele que realmente seja efetivado tendo como estratégia a saúde pública’. - Editor - SANEAMENTO BÁSICO COBRE ÁREAS QUE AS ELITES HABITAM. O RESTO É ESGOTO A CÉU ABERTO, RATOS, VAREJERAS, LIXO E MISÉRIA.

Entrevista: 
Alexandre Pessoa

‘O melhor plano de saneamento é aquele que realmente seja efetivado tendo como estratégia a saúde pública’

A primeira revisão do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), lançado em 2013, quando ainda estava vinculado ao extinto Ministério das Cidades, está sendo submetida à consulta pública, aberta até o dia 22 de abril. O principal instrumento da política pública nacional de saneamento básico do país, cuja referência é a Lei de Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico (nº 11.445/2007), contempla uma abordagem integrada do saneamento, incluindo os componentes de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo das águas pluviais urbanas. Com metas para serem cumpridas até 2033, o Plansab deve ser avaliado anualmente e revisado a cada quatro anos, conforme previsto na lei. A revisão, porém, tem sofrido uma série de críticas por parte de especialistas que consideraram curto o prazo inicial para discussão – anteriormente era até 8 de abril –, bem como avaliam serem equivocados alguns argumentos apresentados pelo Ministério do Desenvolvimento Regional, que hoje abriga a proposta. “O Brasil corre grave risco de ter o agravamento das doenças emergentes e reemergentes, a exemplo das doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado, dentre elas as arboviroses, como dengue, zika e chikungunya”, alerta o engenheiro sanitarista e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Alexandre Pessoa, que, junto com o pesquisador Fernando Carneiro (Fiocruz Ceará), representou a Fiocruz na audiência pública que discutiu as mudanças do Plano, nesta entrevista.

Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 05/04/2019 11h20 - Atualizado em 05/04/2019 13h13

Você estuda o saneamento básico associado às condições de saúde da população. Qual é o atual cenário do saneamento básico no Brasil?

Atualmente o país passa por uma crise econômica e estão em curso políticas de austeridade que impactam a saúde das populações e o próprio Sistema Único de Saúde. Nós estamos acompanhando um aumento do percentual da população em condição abaixo da linha de extrema pobreza no Brasil, que segundo o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] é de 7,4%, o equivalente a 15,2 milhões de pessoas.
Nos últimos anos está havendo uma redução de recursos públicos para o saneamento no Brasil. Isso tudo associado a uma crise hídrica, cujos efeitos e impactos socioambientais o país ainda enfrenta. O Brasil corre grave risco de ter o agravamento das doenças emergentes e reemergentes, a exemplo das doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (DRSAI), dentre elas as arboviroses, como dengue, zika e chikungunya. O que há é o anúncio de uma crise sanitária no país. Nesse sentido, os recursos e a gestão pública para o saneamento básico, em especial aqueles provenientes dos agentes federais, são imprescindíveis para a universalização do saneamento, considerado enquanto direito humano que contribui para a promoção da saúde das populações da cidade, do campo, da floresta e das águas.
Um ano após a morte de Oswaldo Cruz, em 1918, foi fundada no Brasil a Liga Pró-Saneamento. Talvez a conjuntura e a necessidade de avançarmos com o saneamento como uma política pública faça com que seja necessário reeditarmos esse movimento no país.

Plano Nacional de Saneamento Básico, que agora está prestes a ser modificado, foi fruto de uma grande mobilização em 2013. Como isso se deu?

Foi um amplo processo de participação social, com o envolvimento de universidades, no qual ocorreram dez oficinas regionais no território nacional, no sentido de fundamentar os seus princípios, as suas diretrizes, estratégias e os investimentos públicos necessários em cenários de curto, médio e longo prazo. O Plansab é a efetividade da Política Nacional de Saneamento Básico. Então, esse plano engloba três programas: o Programa de Saneamento Básico Integrado, que corresponde à infraestrutura urbana; o Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR), que está em fase de revisão final para publicação; e o Programa Estruturante, que envolve ações de gestão, educação, participação social e controle social.
O objetivo da participação da Fiocruz nesse processo é exatamente o fortalecimento do Plansab, enquanto política pública de Estado.

Neste ano, o Plansab será submetido a sua primeira revisão. Foram realizadas duas audiências públicas e consulta pública. De que forma a Fiocruz vem participando desse processo?

Considerando que o Plansab é estratégico para a saúde pública e para a melhoria das condições de vida da população brasileira, a sua atualização e o seu fortalecimento, com a participação social dos especialistas, dos agentes públicos das diversas áreas relacionadas ao saneamento e da população geral são fundamentais.
Eu, pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, e o Fernando Carneiro, da Fiocruz Ceará, apresentamos um oficio subscrito pela Presidência da Fundação, requerendo a prorrogação do prazo de encerramento da consulta pública para mais um mês, encerrando assim, em 8 de maio, com a realização de uma nova audiência pública. Este requerimento foi reafirmado por diversas falas durante a audiência pública realizado em Brasília, no dia 29 de março. No dia 3 de abril, o Ministério do Desenvolvimento Regional prorrogou o prazo até 22 de abril. Conseguimos a prorrogação, mas ainda precisamos de uma nova audiência pública para termos uma grande participação social.
Cabe ao plano estabelecer e atualizar, a partir do Programa Nacional de Saneamento Rural [PNSR], os recursos destinados para as populações do campo, da floresta e das águas, bem como avaliar em que medida o Programa Estruturante e o Programa de Saneamento Básico Integrado avançaram ou não. Para que esses investimentos públicos sejam efetivados, é necessário investimento na gestão pública, na educação, na participação, e principalmente, no controle social. A revisão do Plansab propõe reduzir as macrodiretrizes de 41 para 15, e as estratégias, de 137 para 87. Numa perspectiva de análise crítica, pode ser necessária alguma redução, mas ela requer uma análise cuidadosa a ser feita pelas instituições de pesquisa, universidades e, em especial os setores de saneamento e saúde, de forma a fortalecer o Plano. Daí a nossa insistência para sua prorrogação, pois o grande desafio está no fato de que o melhor plano de saneamento é aquele que realmente seja efetivado tendo como estratégia a saúde pública.
O objetivo da participação da Fiocruz nesse processo é exatamente o fortalecimento do Plansab, enquanto política pública de Estado.  Na audiência pública do dia 29 de março, protocolei também o livro ‘Saneamento e Saúde’ da ‘Série Fiocruz - Documentos Institucionais’, publicado em 2018, visando dar subsídios e argumentos à defesa da nossa concepção de saneamento,  uma das ações estratégicas da Fundação. A publicação, coordenada por Léo Heller, relator especial das Nações Unidas para o direito humano à água e ao esgotamento sanitário e pesquisador da Fiocruz Minas Gerais, foi escrita por diversos especialistas na área.

Existe relação direta entre saneamento e saúde?

Os investimentos em saneamento se traduzem na redução de custos para a saúde, uma vez que previnem doenças e diminuem os casos de atendimento nas unidades básicas de saúde, bem como as internações hospitalares. Além disso, o saneamento tem capacidade de promover geração de renda, desenvolvimento local e o enfrentamento da pobreza no país. Cabe reforçar no Plano uma vez que já está citada, a importância do saneamento enquanto direito humano, que vem em consonância com a legislação internacional, inclusive com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), a partir da Agenda 2030. Nós entendemos que o saneamento, enquanto direito humano, deve inclusive avançar no documento enquanto um dos princípios. E que deveria, a partir daí, atravessar toda a concepção do Plano. Isso significa, por exemplo, que os investimentos do Plano devem priorizar as populações de maior vulnerabilidade socioambiental.  

Quais suas principais críticas em relação à revisão do Plansab que está em consulta pública?

Em relação aos investimentos provenientes da União, a primeira versão do Plansab indicava que 60% do orçamento seria proveniente da União e 40% dos municípios. A atual revisão inverteu esses percentuais, colocando os municípios com a maior parcela orçamentária, de 60%, reduzindo o papel da União no esforço de universalização do saneamento. Uma das justificativas apontadas pela equipe técnica da revisão é que o maior percentual destinado aos municípios poderia ser viabilizado pela privatização do saneamento. Isso é um retrocesso, pois sabemos que a atuação do setor privado ocorre, basicamente, nas áreas de maior rentabilidade para as empresas de saneamento, ficando as populações dos municípios mais pobres com maior vulnerabilidade socioambiental.
A revisão propõe que a coleta dos resíduos sólidos urbanos seja considerada atendimento adequado para a coleta direta e indireta com destinação final adequada. A indireta realizada em pontos específicos da comunidade e não de porta em porta como é feito atualmente. Além disso, a revisão propõe que essa coleta possa ser feita com a frequência de apenas uma vez por semana. Isso se traduz, na prática, principalmente nas cidades onde existe uma maior densidade habitacional, no risco  de formação de verdadeiros lixões, o que implica o aumento da presença de vetores transmissores de doenças, como as arboviroses.

Além da questão orçamentária, o que está em jogo com a revisão do Plansab?

É bom destacar que o debate do Plano tem relação com o cotidiano das pessoas, não é apenas uma questão orçamentária sobre quem tem a maior responsabilidade. A título de exemplo, nós temos uma proposta no texto da revisão com relação a resíduos sólidos, que modifica os conceitos básicos da categoria denominada ‘atendimento adequado’. A revisão propõe que a coleta dos resíduos sólidos urbanos seja considerada atendimento adequado para a coleta direta e indireta com destinação final adequada. A indireta realizada em pontos específicos da comunidade e não de porta em porta como é feito atualmente. Além disso, a revisão propõe que essa coleta possa ser feita com a frequência de apenas uma vez por semana. Isso se traduz, na prática, principalmente nas cidades onde existe uma maior densidade habitacional, no risco  de formação de verdadeiros lixões, o que implica o aumento da presença de vetores transmissores de doenças, como as arboviroses. Sendo aprovado, isso acarretaria uma condição de insalubridade, o que deve ser enquadrado pelo Plano, como ‘atendimento precário’, não como adequado. O documento cita a Medida Provisória 868, de 2018, que caminha para o processo de privatização do saneamento e desconfigura a política nacional de saneamento básico. Como a MP ainda não foi aprovada pelo Congresso, esse é um instrumento frágil que não deveria ser mencionado no Plano.
Outros participantes da audiência pública também acrescentaram propostas relevantes, tais como o aprimoramento dos critérios da tarifa social e a necessidade de se considerar os serviços de saneamento básico em núcleos urbanos informais e também para a população de rua.

Os documentos disponibilizados na consulta pública possibilitam uma análise crítica sobre o tema?

A revisão não apresenta uma análise crítica da primeira etapa do Plano, que corresponde aos quatro primeiros anos, considerados como curto prazo, em relação ao que estava previsto e ao que de fato ocorreu. Essa análise deveria constar no Plano, inclusive identificando os obstáculos ao seu cumprimento. Para isso, solicitamos que fossem colocados, no link da consulta pública, os relatórios anuais de avaliação do Plano. Já foram inseridas as avaliações de 2014, 2015 e 2016. Mas precisaríamos também dos relatórios de avaliação de 2017 e 2018, porque é exatamente o período em que houve um maior contingenciamento de recursos para o setor. O Ministério do Desenvolvimento Regional ainda pode disponibilizar essas avaliações em um novo capítulo, no próprio Plano, para a análise da efetividade do curto prazo, para a previsão em termos de ampliação e melhoria do sistema por meio de investimentos para médio e longo prazo.
Na audiência, fiz uma crítica ao fato de que os dados que o Ministério apresentou eram por meio de gráficos de barras que compreendiam a dinâmica dos componentes de saneamento em 2010 e 2017. Essa não é a melhor forma de apresentação, porque é necessário que esses dados sejam apresentados na sua série histórica, ou seja, a evolução dos componentes de saneamento em cada ano para avaliarmos cruzando as informações com os investimentos onerosos e não onerosos que são apresentados no Plano por meio de gráfico de curvas. Precisamos comparar os dados de investimentos com os dados de ampliação do sistema ano a ano e não somente no período de 2010 e 2017. Até porque o sistema pode ter avanços e declínios ao longo desse período.
Outro aspecto importante é que, na análise situacional do déficit de saneamento, foram excluídos os gráficos da primeira versão, que desagregavam os dados de acesso ao saneamento, segundo os indicadores socioeconômicos: renda, escolaridade e cor da pele. A revisão atual propõe que essas informações deverão ser apresentadas somente na revisão do Plano em 2022 porque aí já teriam os dados do censo do IBGE. Entendo que é necessário não só apresentar esses indicadores para o abastecimento de água, como para todos os componentes do saneamento que poderiam ser explicitados já nesse Plano, por meio das pesquisas elaboradas pelo IBGE, através da PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios]. Isso daria mais subsídios para avaliar, à luz da epidemiologia, os impactos diferenciados que se dão para essas populações mais vulneráveis diante da necessidade da expansão do saneamento no Brasil.

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Houve um tempo, lá pela década de 1990, em que se falava abertamente em privatização. Com o avanço das políticas sociais tocadas com forte condução governamental nos anos 2000, parecia fora de moda a ideia de um Estado mínimo, que entrega à iniciativa privada o mastro do desenvolvimento econômico. No momento da atual crise política brasileira, o governo interino de Michel Temer parece recuperar o discurso (e a prática) da privatização, de forma ainda mais ampliada, atingindo diretamente as políticas sociais. A bola da vez é a política de saneamento básico, que deve integrar um pacote de concessões proposto pela União como parte do Programa de Parcerias de Investimento (PPI) — o novo nome, mais palatável, que a privatização ganhou no governo interino. Depois de anunciar no seu programa antecipado de governo, o ‘Ponte para o futuro’, que promoveria amplas “concessões” e “parcerias” com a iniciativa privada para “complementar a oferta de serviços públicos”, a imprensa começou a noticiar, aqui e ali, o ‘potencial’ dessa área para o ‘avanço’ do setor privado e o consequente desenvolvimento econômico do país. O passo mais concreto foi dado no último dia 15 de agosto, quando o governo interino propôs que o governo do Rio de Janeiro inaugurasse a privatização do sistema de saneamento no país. Nesta entrevista, Luiz Roberto Moraes, professor da Universidade Federal da Bahia e um dos maiores especialistas da área no país, desmente os números apresentados pelas empresas privadas que já atuam no setor, mostra exemplos bem sucedidos de políticas estatais nessa área e defende que uma necessidade social, como é o caso do tratamento de água e esgoto, não pode ficar a cargo de grupos cujo objetivo é aumentar a sua própria lucratividade.
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http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/o-melhor-plano-de-saneamento-e-aquele-que-realmente-seja-efetivado-tendo-como?fbclid=IwAR1yzqzToDX_FYb4jXVbSGs8HO-GmPfbUP7LnSM_dO0HGMiZgm-Dgg_cKHE
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