Conversas em Gondwana
Ampliando a imaginação política através da colaboração entre países do Sul
Conversas em Gondwana é um projeto iniciado pelas curadoras brasileiras Juliana Gontijo e Juliana Caffé com o objetivo de conectar duplas de artistas do Sul Global. A primeira edição inclui artistas do Brasil e da África do Sul, como Aline Xavier e Haroon Gunn-Salie; Ana Hupe e Gabrielle Goliath; Clara Ianni e Mikhael Subotzky; Daniel Lima e Ismail Farouk; Paulo Nimer Pjota e Siwa Mgoboza. Nesta entrevista, Will Furtado conversa com as curadoras sobre a ampliação de nossa imaginação política, a ruptura da geopolítica dominante do sistema mundial colonial-capitalista e os trabalhos realizados pelas duplas de artistas.
Seg 1 Abr, 2019
C&: Como começou o projeto Conversas em Gondwana?
Juliana Gontijo: Conversas em Gondwana começou com o deslocamento de Juliana Caffé para a Cidade do Cabo, na África do Sul, para realizar uma pesquisa de um ano na Universidade da Cidade do Cabo (UCT). Na nossa condição de curadoras independentes e mulheres, queríamos fortalecer a rede que nos conecta e também alavancar outras. Não tínhamos recursos nem respaldo institucional. Daí veio a ideia de propor correspondências virtuais entre duplas de artistas e criar uma plataforma online para abrigar suas trocas.
Juliana Caffé: Nosso desejo era aproximar as duas cenas artísticas e intensificar o fluxo de práticas e pesquisas entre artistas, curadores e pesquisadores de países do Sul Global. Desenvolvemos, então, o conceito do projeto em torno do termo Gondwana, utilizado para se referir ao supercontinente que há cerca de 200 milhões de anos reunia as massas continentais que hoje chamamos de América do Sul, África, Antártica, Austrália e Índia. O projeto evoca essa genealogia comum para fomentar a emergência de outras geografias no cenário internacional num momento global da arte contemporânea.
Marcelo Moscheta, Espaço Lugar, 2017. Foto: Lucas Barreto.
C&: Qual é a importância de conectar estes territórios?
JG: Entendemos como necessário e urgente, no contexto político em que vivemos, buscar outras rotas e estratégias para aproximar as comunidades artísticas de duas regiões que perderam uma antiga conexão geográfica, uma história explicitamente interligada e contextos que se aproximam no presente.
JC: Acreditamos, ainda, que a troca proporcionada pelo projeto tem o potencial de propor modelos alternativos de colaboração transnacional em arte contemporânea como uma forma de estreitar laços e também ampliar nossa imaginação política. Uma inspiração para nós foi o “pensamento crítico de fronteira” de Walter Mignolo, que parte das epistemologias subalternas e irrompe a geopolítica dominante do sistema mundial colonial e capitalista para deslocar fronteiras, horizontalizar diálogos e diversificar conhecimentos. O modo de comunicação do projeto, aliado à intervenção estética, fortalece esse diálogo.
C&: Quais foram as esperanças e preocupações antes de começar este projeto?
JG: O projeto é experimental e portanto o resultado era imprevisível. A colaboração entre artistas dependia do uso das mídias digitais e de uma sintonia de comunicação de ambos lados: duas duplas tiveram dificuldade de se comunicar e isso impediu a colaboração. Foi desafiador, também, enquanto curadoras, lidar com trabalhos que seriam finalizados apenas alguns dias antes da abertura [da exposição que apresenta a primeira edição de Conversas em Gondwana, no Centro Cultural São Paulo, no mês passado], após a chegada dos artistas sul-africanos em São Paulo, além de contar com um orçamento extremamente limitado para um projeto que demanda deslocamento e produção de obras novas. Esses dois aspectos – cronograma e recursos – demandaram uma colaboração flexível entre artistas e equipe curatorial, que nem sempre foi alcançada. Sentimos na pele as dificuldades de sermos duas curadoras mulheres, jovens e latino-americanas, sem respaldo institucional, num ambiente artístico profundamente marcado por desigualdades e imposições de gênero.
JC: Além dessa interação entre os artistas funcionar, uma grande preocupação era conseguir apresentar essa edição [numa exposição], e para isso deveríamos conseguir recursos financeiros. O trabalho só foi possível devido à cooperação e ao interesse dos artistas na proposta, e também ao apoio de parceiros como o Centro Cultural São Paulo, a Residência Fonte, a Casa do Povo, o Videobrasil e ao prêmio do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo – ProAC SP.
Clara Ianni e Mikhael Subotzky, Triangular (Detalhe), 2019. Foto: Lucas Barreto.
C&: Poderiam falar sobre a seleção de artistas, as devidas duplas e os trabalhos criados por elas?
JC: Para a seleção dos artistas fizemos um exercício interessante de tentar imaginar que duplas teriam uma conversa intrigante. O processo envolveu muita pesquisa e discussão. Gostamos de falar que a concepção do projeto partiu de uma conversa entre as curadoras. Para a pesquisa, partimos de temas comuns de interesse entre os dois países, e que também fossem capaz de levantar questões que ocupam as respectivas cenas. Na África do Sul, por exemplo, o discurso decolonial é muito presente, os colóquios, protestos e discussões em torno do movimento estudantil Rhodes Must Fall nos chamou muita atenção, queríamos poder compartilhar isso no Brasil.
JG: Paulo Nimer Pjota e Siwa Mgoboza trabalham questões referentes à identidade, iconografia e representação em seus trabalhos. Durante Gondwana, trocaram fotografias tiradas na Bahia (Brasil) e na Cidade do Cabo (África do Sul) que finalmente compuseram, na exposição, em uma grande colagem na parede. Aline Xavier e Haroon Gunn-Salie reagiram ao crime ambiental ocorrido alguns dias antes da abertura da exposição em Brumadinho (Minas Gerais, Brasil), propondo uma nova versão de um projeto já iniciado, chamado Agridoce. Já Daniel Lima e Ismail Farouk fizeram uma performance que discutiu as relações entre comida, raça e gênero, pensando a modernidade colonial e a natureza regulatória que marcam as culturas culinárias. Clara Ianni e Mikhael Subotzky trabalharam com a triangulação do conceito de Gondwana, uma teoria sobre o Sul elaborada na Inglaterra, e fizeram uma obra colaborativa, construída in loco. Nela, os poucos elementos utilizados – um prumo partido, referências iconográficas de teorias geológicas e raciais – comentam o equilíbrio frágil de uma visão de mundo que flutua entre a construção e a desconstrução, entre a ficção teórica e a materialidade dos tempos geológicos. Por sua vez, Ana Hupe e Gabrielle Goliath realizaram conjuntamente em São Paulo um trabalho colaborativo envolvendo serigrafia que fala sobre o silêncio e o trauma causados pelas violências coloniais e patriarcais.
Cinthia Marcelle e Jean Meeran, Capa Morada, 2003. Foto: Lucas Barreto.
JC: Na plataforma online, criamos uma sessão denominada Arquipélago, onde postamos sobre o trabalho de artistas que estabelecem relações de proximidade com os conceitos trabalhados pelas duplas. Para a exposição, trouxemos alguns desses trabalhos, como por exemplo o vídeo Todas as Terras da brasileira Renata de Bonis, que revela conexões geológicas entre a África e a América do Sul; os vídeos Homeless Song 5 e The Master is Drowning dos artistas sul-africanos Kemang Wa Lehulere e Penny Siopis respectivamente, que fazem reflexões sobre o apartheid; e Capa Morada e Gym Politics, realizados em colaboração pela brasileira Cinthia Marcelle e o sul-africano Jean Meeran há quinze anos atrás. Também convidamos os brasileiros Marcelo Moscheta e Thiago Rocha Pitta, que apresentam obras que dialogam com outros trabalhos da exposição.
C&: Quais foram as conclusões principais das sinergias que ocorreram em São Paulo?
Gontijo: Convidados a viajar a São Paulo por aproximadamente dez dias, cinco artistas sul-africanos ficaram hospedados em ateliês de artistas e residências de arte parceiras. Optamos por essa forma de hospedagem solidária pois, além de contribuir com nosso orçamento limitado, aproxima os artistas sul-africanos da cena local.
Vista da instalação Conversas em Gondwana no Centro Cultural São Paulo, 2019. Foto: Lucas Barreto.
Caffé: A exposição foi inaugurada há duas semanas, mas é interessante notar a ressonância dos trabalhos de alguns sul-africanos que expõem pela primeira vez no Brasil. Algumas das duplas têm planos para projetos futuros como Ana Hupe e Gabrielle Goliath, Haroon Gunn-Salie e Aline Xavier, Daniel Lima e Ismail Farouk. O público tem se mostrado curioso sobre as conexões entre Brasil e África do Sul e sobre as próximas ações do projeto.
C&: Depois do Brasil e da África do Sul, qual será a próxima conexão?
JC: O projeto foi selecionado para uma residência de pesquisa no Espacio de Arte Contemporâneo – EAC, em Montevidéu, no Uruguai. Este ano devemos nos deslocar para lá e iniciar uma próxima ação.
JG: Nós também queremos avançar a conexão do Sul e pensar além da nacionalidade. Nesse sentido, nos interessa seguir alguns fios perdidos da história, a fim de perceber conexões insuspeitas e atravessar as denominações nacionais impostas pelos processos de colonização.
Conversas em Gondwana está em exibição no Centro Cultural São Paulo, Brasil, até dia 7 de abril de 2019.
Juliana Gontijo é pesquisadora, docente e curadora independente. Atualmente finaliza seu doutorado em História e Teoria da Arte na Universidade de Buenos Aires. É especialista em Linguagens Artísticas Combinadas pela Universidade Nacional das Artes (Buenos Aires), graduada em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris) e em História da Arte e Arqueologia pela Universidade Le Mirail (Toulouse, França).
Juliana Caffé é curadora independente, editora e pesquisadora de arte contemporânea. Possui especialização em Curadoria pela Universidade da Cidade do Cabo – UCT (África do Sul), em Arte: História, Crítica e Curadoria, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUCSP (Brasil) e Bacharelado em Direito pela mesma instituição.
Entrevista por Will Furtado.
http://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/conversations-in-gondwana/
http://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/conversations-in-gondwana/
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