18 de abr. de 2019

Sobre museus, doações… e elites, no Brasil e na França, por Sérgio Guedes Reis. - Editor - AS CHAMADAS ELITES,SÃO "ESCRAVAS" DO COLONIALISMO CULTURAL, TENDO HORROR A TUDO QUE É "BRASILEIRO", POIS TEM ASCO DO "PRIMITIVISMO INDÍGENA" E HORROR DO SUOR DE ESCRAVAS E ESCRAVOS.


Sobre museus, doações… e elites, no Brasil e na França, por Sérgio Guedes Reis

Uma forma de compreender, portanto, como as elites em um dado país atuam em sua função dirigente em sentido amplo é ver como elas lidam com os museus.

Sobre museus, doações… e elites, no Brasil e na França

por Sérgio Guedes Reis

Os museus exercem uma função no mínimo ambígua nas sociedades modernas. Eles representam, por um lado, a consagração da “invenção das tradições”, como na expressão do historiador Eric Hobsbawm: eles aglutinam produções culturais e lhes validam como elementos capazes de formar identidades – obras que simbolizam nações, ou projetos de civilização, ou conceitos fundamentais e valores, ou modalidades de expressão artística. Por vezes, museus abrigam inclusive pilhagens, bens surrupiados em guerras ou contrabandeados por mercadores em tempos (nem tão) imemoriais. Mas museus são, também, fontes essenciais de conhecimento e de resistência. São ferramentas poderosas que podemos ter ou usar para nos lembrarmos do que é (intencionalmente ou não) esquecido ou apagado da memória popular. Museus são tecnologias em disputa.
Mas uma característica essencial de muitos museus, notadamente os chamados Museus Nacionais, é o de encapsular narrativas cuidadosamente produzidas pelas elites locais para justificar as razões de sua própria existência e os porquês de sua dominação. Ou seja, esses museus funcionam como estratégias consolidadas de transmissão intergeracional de certos valores – aqueles que fundam a própria ideia de nação e, portanto, legitimam a estrutura social e as práticas culturais tais como ocorrem. Portanto, museus são estruturas institucionais essenciais para o chamado state-making (o processo de fundação das bases organizacionais a partir das quais o poder é exercido). E o state-making é função precípua dos setores dirigentes – aqui genericamente tratados como elites. Por isso é que mundo afora, mesmo em contextos de flagrante escassez material, observamos museus nacionais relativamente bem conservados e configurados como grandes centros de recepção – de turistas, cidadãos, crianças. E as construções narrativas são envolventes, já que o que está em jogo é, digamos, o “melhor” de um país.
Uma forma de compreender, portanto, como as elites em um dado país atuam em sua função dirigente em sentido amplo é ver como elas lidam com os museus. Vivemos recentemente no Brasil a terrível tragédia do incêndio do Museu Nacional, o qual destruiu milhares de obras de imensurável valor, bem como o prédio bicentenário onde se localizava. O número de visitantes anuais ao museu, contudo, tinha sido consistentemente baixo nos últimos anos: 120 mil pessoas em 2016, 192 mil pessoas em 2017. No Louvre, em Paris, o 3º país estrangeiro com a maior quantidade de turistas visitantes em 2017 foi … o Brasil: 289 mil pessoas. Em quaisquer dos últimos 10 anos, os brasileiros estiveram entre os mais ativos visitantes ao museu francês (em 2012, por exemplo, só perdemos para os EUA).
Há quem possa argumentar que o Louvre é um museu com pretensões globais, dotado de incomensuráveis recursos e coleções prestigiadas. É verdade. Mas é verdade também que a quantidade de dinheiro despendida para a manutenção de museus constitui não um evento fortuito da natureza, mas sim uma decisão racional de tomadores de decisão. E talvez esses tomadores de decisão não queiram eles mesmos desfrutar de seu principal museu – uma decisão, como os dados indicam, não seguida, por exemplo, pela elite francesa (pois salões, teatros e vernissages sempre foram espaços históricos de congregação e socialização de classes dirigentes). Poderiam essas elites, então, querer que os demais cidadãos frequentem esses museus, sendo essa uma condição importante para a consolidação de uma identidade nacional. Não, nada feito no caso brasileiro. Ao que parece, nossas elites trabalham a sua visibilidade no estrangeiro.
Parece essa uma crítica exagerada? Pensemos por um momento no lamentável incêndio que acometeu a Catedral de Notre Dame, um dos grandes símbolos da identidade francesa – e depositária de várias relíquias que compõem o imaginário cristão. Em coluna no Globo, Ancelmo Góis comenta que, em 24 horas, o Louvre já conseguiu captar aproximadamente 2,6 bilhões de dólares em doações, dinheiro a ser utilizado na recuperação do edifício. Em 7 meses, o Museu Nacional captou… 1,1 milhão de reais. Em um dia, o valor recolhido na França correspondeu a cerca de 60 mil vezes o obtido no Brasil ao longo de mais de 200 dias – por dia, a arrecadação no Brasil foi de 5200 reais. Os dados são de uma eloquência olímpica, mas talvez alguns questionem a respeito da nacionalidade dos doadores à catedral francesa. Uma matéria da CNN nos esclarece que os três franceses mais ricos foram, sozinhos, responsáveis pela entrega de 700 milhões de dólares para a recuperação da Notre Dame. Lily Safra, uma das pessoas mais ricas do Brasil, também doou… para Notre-Dame: 88 milhões de reais, como aponta uma reportagem do UOL. Reportagem da Folha de São Paulo nos informa que, no caso do Museu Nacional, apenas 15 mil reais vieram de pessoas jurídicas; 142 mil reais vieram de pessoas físicas e 950 mil reais de outros governos (Alemanha e Inglaterra).
Há, ainda, quem possa eventualmente argumentar que, bem, “as elites francesas são em média bem mais ricas do que as brasileiras”. Ledo engano. Considerando dados para 2014 (comparação mais recente disponível entre Brasil e França), Piketty e Morgan (tabela abaixo) mostram que o 1% com rendas mais altas no Brasil (cerca de 1,4 milhão de pessoas) auferiu em média 420 mil euros. O mesmo grupo, na França, acumulou 350 mil euros. E quanto mais subirmos na pirâmide social, maiores serão as diferenças: considerando apenas o 0,001% com rendas mais altas (cerca de 1400 indivíduos), o total acumulado no ano no Brasil foi de, em média, quase 42 milhões de euros; na França, não chegou a 13 milhões de euros (estudo mais recente, de 2016, sugere que nossas elites ganharam ainda mais: 53 milhões de euros). Ou seja, a elite da elite no Brasil faz pelo menos quatro vezes mais dinheiro ao ano (!) do que os seus pares na França. É importante ressaltar: estamos falando de renda, e não de riqueza. Ou seja, de “salários”, “lucros”, “dividendos”, etc. O que chama ainda mais atenção é que a França é uma potência industrial e de serviços (como o próprio turismo). Ou seja, há acúmulo de capital o qual, de alguma forma, pode explicar rendas elevadas. No Brasil, ao que parece, esse dinheiro vem de outras fontes…
Nada do que é dito aqui tem a pretensão de exaltar as elites francesas, mas sim o de indicar que as nossas, muito claramente, sequer cumprem o seu papel mais trivial. De costas para o próprio Brasil, nossas elites parecem preferir uma espécie de inserção subordinada e individualizada no circuito global. Longe de atuarem na função de representante nacional no exterior – algo que serviria aos seus próprios interesses em âmbito local –, os setores dirigentes aparecem frente aos demais sequer como fração de classe. Comportam-se como um lumpesinato que amealhou muitos bens, mas que deu “azar” de ter nascido nessa terra. Se a qualidade das elites for um pré-requisito para a construção do Estado (e de seu aparelho), então estamos em péssimos lençóis. Se não pudermos prescindir de elites mesmo no longo prazo, precisamos de uma capaz de exprimir o Brasil na sua constituição: menos branca, menos masculina, menos cis, menos (ultra) cristã, menos conservadora, menos provinciana, menos autoritária, e menos rentista. Sem essa constatação no horizonte como questão prioritária (o que implica repensar, por exemplo, todo o processo de ingresso em cargos públicos e eletivos), nenhum projeto minimamente avançado em termos sociais será sustentável.
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