9 de jun. de 2019

A política de esterilização em massa de pastores da IURD

A política de esterilização em massa de pastores da IURD
Por Fábio Pannunzio, no Blog do Pannunzio
Um dos pontos mais importantes do problema das adoções feitas pela cúpula da IURD em Lisboa é estabelecer se a igreja do bispo Edir Macedo tem ou não uma política de esterilização em massa. É fato que os pastores eram orientados a não ter filhos. A questão é esclarecer se eles eram ou não obrigados a fazer vasectomia.
Duas razões centrais são apontadas por ex-missionários da Universal como justificativa para a proibição. A primeira, de natureza egoística, dá conta de que as filhas de Edir Macedo não poderiam engravidar. O ego perverso do patriarca teria decidido que, em função da impossibilidade de suas herdeiras, ninguém em sua igreja poderia conceber.
A outra razão seria de ordem prática. Filhos atrapalhariam a expansão da IURD porque custam mais caro à instituição e muitas vezes impedem o deslocamento de pastores entre um templo e outro. É provável que as duas forças tenham atuado nos eventos relacionados ao Lar de Camarate.
Na série O Segredo dos Deuses, produzida pela TVI de Portugal, há vários depoimentos de ex-religiosos que afirmam ter sido obrigados a fazer vasectomia. Isso seria uma imposição da Universal para todos os pastores e bispos jovens. Antes de se casar, todos seriam obrigados a fazer a cirurgia — ainda que muito novos e sem prole. Quem se recusasse não progrediria na carreira, iria para os piores lugares e terminaria demitido.
Há muitos outros  testemunhos que convergem nesse sentido nas centenas de processos trabalhistas nos quais a instituição é acusada de exigir a vasectomia.
No Brasil, há uma lei específica para regular a esterilização humana. A Lei 9263/96 estabelece, em seu Artigo 10o., que a cirurgia só pode ser feita “em homens e mulheres  maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos”. Todas as esterilizações devem ser compulsoriamente informadas ao Ministério da Saúde. A pena prevista para quem contrariar esse dispositivo chega a oito anos de prisão, mas pode ser acrescida de um terço dependendo de certos agravantes.
O Art. 12 da ‘Lei da Vasectomia’  criminaliza a obrigatoriedade imposta pela IURD. Ele estabelece que “é vedada a indução ou instigamento individual ou coletivo à prática da esterilização cirúrgica”. E o Art. 13 veta “a exigência de atestado de esterilização ou de teste de gravidez para quaisquer fins”, prática pela qual a seita neopentecostal já foi condenada com trânsito em julgado num processo iniciado em Itapevi, na Grande São Paulo.
A IURD foi questionada sobre o assunto, mas não respondeu as perguntas que lhe foram encaminhadas pelo Blog do Pannunzio. Em seu site, a empresa religiosa nega a prática da esterilização em massa. Mas há vários depoimentos, documentos, sentenças e acórdãos judiciais que indicam o contrário.
A implicância dos alto clero da Universal com gravidez e filhos vem de longe. O próprio fundador da seita fez várias manifestações púbicas, em cultos que presidiu e em reuniões com seus subordinados, claramente contrárias à concepção. “Se você tem juízo, não tenha filhos. Só se você tem juízo. Se não tiver, tenha filhos. Porque jogar um filho no mundo é uma irresponsabilidade nos dias atuais”, disse ele em um de seus cultos cujo registro em áudio e vídeo foi resgatado pela TV portuguesa. Do púlpito, em tom de confissão, Edir Macedo disse à clientela de sua igreja que esta era a orientação que adotava dentro de sua própria família: “Quando as minhas filhas casaram eu disse pra eles: eu, se fosse vocês não teria filhos. Eu não traria filhos pra este mundo”.
De fato, a partir do fim dos anos 80, a objeção a filhos se transformou em ordem expressa, que foi retransmitida ao clero pelos bispos. “Por ordem do senhor bispo Macedo, a partir de hoje o pastor , ele só vai gerar filhos no espírito. A partir desta data não é mais pra pastor ter filhos, vocês entenderam ?”. A determinação foi repassada pelo bispo Luis André durante um concílio com os pastores angolanos a ele subordinados.
Em outra ocasião, o próprio sumo-sacerdote da IURD admoestou publicamente pastores que decidiram ter filhos, admitindo que a igreja pegava as cirurgias que agora nega de maneira tão enfática: “Eu falei pra não ter filho, não falei ? Nós até pagávamos pra fazer vasectomia. Mas tem filhos, problema é seu. Se vira! Vai embora daqui, não quero saber de você não! Não quero saber de problema seu não. A igreja não é uma instituição social”.
Avalanche de processos
Apesar dos mais de 30 anos da prática que a IURD adotou, o assunto ficou sempre longe da imprensa brasileira. Apenas uma menção ao problema foi feita em agosto de 2016, quando a jornalista Mônica Bérgamo, da Folha de são Paulo, noticiou que a Igreja Universal do Reino de Deus vinha sendo investigada pela suposta prática de esterilização em massa. Nada mais se falou em nenhum veículo de comunicação. O silêncio sobre a esterilização em tudo se assemelha ao silêncio que se ouviu quando a TVI veiculou O Segredo dos Deuses. A imprensa do Brasil definitivamente não tem disposição (ou coragem) para veicular denúncias contra a IURD.
A investigação mencionada pelo jornal paulistano redundou na primeira condenação com trânsito em julgado contra a IURD. A empresa religiosa foi condenada a pagar uma indenização de R$ 100 mil reais ao ex-pastor Nilton Vieira Borges. Ele trabalhou para a IURD por seis anos em duas oportunidades. Em 2004, foi-lhe oferecida a chance de se tornar bispo e ser enviado em missão ao continente africano. Mas para que isso se cumprisse, teria que fazer a vasectomia.
O jovem pastor havia acabado de se casar com uma obreira de apenas 21 anos de idade que queria ter filhos. Apesar da oposição da  esposa, Nilton Vieira se submeteu à cirurgia, que foi custeada pela Igreja Universal. A despeito disso, a promoção a bispo não aconteceu, como lhe fora prometido. Para piorar, a esterilização frustou a mulher dele a tal ponto que o casamento entrou em crise e logo sobreveio o divórcio.
O ex-pastor Nilton Vieira foi representado pela advogada Márcia Cajaíba. Em função da atuação dela em casos semelhantes, Cajaíba acabou se transformando numa especialista em processar a IURD. Hoje, somente em seu escritório, há 84 reclamações trabalhistas de ex-presbíteros da IURD. Todas elas contam histórias parecidas com a de Nilton e sua ex-mulher. São pastores muito jovens, com baixo nível de instrução formal que foram contratados pela igreja sem nenhum direito. E todos relatam terem sido igualmente obrigados à esterilização, apesar da pouca idade e do fato de não terem filhos.

O acórdão que condenou a IURD: “Conduta altamente lesiva ao trabalhador”.
Ao decidir o último recurso, a Desembargadora Ivani Contini Bramante, do TRT da Segunda Região, classificou a exigência de esterilização como “altamente reprovável e lesiva ao trabalhador/obreiro, e a mera exigência de vasectomia, que por si só acarreta o direito ao dano moral.”.
O TRT de São Paulo estabeleceu que a vasectomia  foi a causa de “danos na esfera familiar do trabalhador e imprimiu-lhe a perda da chance de ter filhos”. E ordenou que a igreja indenizasse o ex-pastor em R$ 100 mil por dano moral.
Em seu voto, a desembargadora ainda tomou uma providência que deve custar muito caro à igreja de Edir Macedo: mandou oficiar ao Ministério Público do Trabalho, que já estava às voltas com outro processo — uma ação civil pública que se encontrava tramitando na Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro.
A multa de R$ 100 milhões
Há menos de dois anos, a Procuradora Valdenice Amália Furtado, do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, percebeu que havia um número estranhamente alto de ações trabalhistas movidas por ex-pastores da IURD com reclamações muito semelhantes. Eles relatavam ter sido forçados a fazer vasectomia como condição para permanecer na igreja ou receber promoções. A IURD também se negava a registrar a carteira de trabalho deles, a despeito dos claros vínculos de subordinação, da imposição de jornadas desumanas e da obrigação de arrecadar, que ocupava papel central no escopo de atividades dos pastores. A evangelização e as atividades de natureza estritamente religiosa ficavam sempre em segundo  plano.
A procuradora federal fez um levantamento da ocorrência de processos da mesma natureza em todo o País. Descobriu que a IURD é contumaz nesses tipos de prática. Centenas  de ações foram encontradas  tramitando em todas as instâncias judiciais.
Em face dessas descobertas, a representante do Ministério Público decidiu propor uma ação civil pública ao TRT da Primeira Região“A verossimilhança das alegações do Parquet Laboral e a relevância do fundamento da demanda estão fartamente comprovadas pela robustez das provas carreadas aos autos”, justificou ela na petição inicial. Para Valdenice Furtado, os elementos disponíveis nessas ações “demonstram, de forma inequívoca, a existência de lesão ao direito dos trabalhadores que prestam, prestaram ou prestarão serviços à Ré na qualidade de pastores e de obreiros”.
Um dos casos dessa enorme coleção de processos diz respeito a um pastor de Volta Redonda, RJ,  que não conseguiu cumprir a meta de arrecadação estabelecida pela IURD e recebeu uma punição vexatória. O Bispo Darlan, responsável à época pelos templos do estado do Rio de Janeiro.  lhe comunicou que “ficaria de castigo, passando a exercer serviços gerais, faxinando o templo, e sem remuneração“, situação que perdurou de novembro de 2010 a fevereiro do ano seguinte.
Para coibir as práticas deletérias da IURD, o Ministério Público do Trabalho pediu que a igreja do bispo Edir Macedo fosse condenada exemplarmente. A principal punição é o pagamento de uma multa de R$ 100 milhões, o equivalente a 25 milhões de euros, dinheiro que deverá ser recolhido ao Fundo de Amparo ao Trabalhador. Além disso, a IURD terá que registrar a carteira de todos os seus pastores e bispos, pagar direitos trabalhistas e recolher impostos e contribuições previstos na CLT. Também deverá  se abster de exigir a vasectomia ou exames que a comprovem e a afixar um comunicado dessa proibição  em todos os seus templos.
A ação civil pública ainda não foi julgada. O processo sofreu um revés na primeira instância, que não tardou a ser corrigido na segunda quando o MPT recorreu contra a sentença do juiz da 43a. Vara Trabalhista do Rio de janeiro, que não reconheceu legitimidade no Ministério Público para propor ação civil pública. A decisão, no entanto, foi reformada pelo Tribunal Regional do Trabalho da Primeira Região, e aguarda agora o julgamento.
“Parecia um matadouro”
Para a consumação das vasectomias, os pastores relatam que a IURD se valia de uma rede de clínicas que faziam as cirurgias sem notificar o Ministério da Saúde. E não apenas no Brasil. O esquema se repetia em países em que a IURD se instalou e crescia rapidamente. Entre elas, destacam-se, pelo número de citações objetivas, as seguistes: Clínica Santo Espírito, em Vitória, ES; Clínica do Dr. José Osmar Cardoso, em São Bernardo do Campos, SP; Hospital Cruz Azul, em Manágua, Nicarágua; e Sanatório Dupuytren, em Buenos Aires, Argentina.
Mas a malha da rede de esterilizações pode sr ainda muito maior. Há informações sobre clínicas no interior do Paraná e de Santa Catarina. O Blog do Pannunzio tentou contato com o médico e as clínicas que ficam no Brasil, mas não obteve retorno.
Em Portugal, país onde residem alguns dos maiores desafetos do bispo Edir Macedo na atualidade, também haveria ao menos uma clínica para atender a demanda da IURD. O ex-pastor Lucas Paulo, filho adotivo do ex-bispo Alfredo Paulo, contou à TVI como é que funcionava o esquema. Segundo ele, ” pastores faziam filas em clínicas pra fazer vasectomia. Parecia um matadouroO pastor entrava, saia, entrava mais um.  Depois um ficava esperando o outro com gelo e iam para a igreja“, revelou ele na série O Segredo dos Deuses.
Em Angola, as denúncias ganham corpo no canal do Youtube do ex-pastor da IURD Tavares Armando, que utiliza a internet para tornar públicas as más práticas da seita a que serviu por cinco anos. Segundo ele, o bispo João Leite, responsável pelo negócios da IURD em seu país, obrigava o clero local a fazer a esterilização para conseguir uma casa em um condomínio ou a “consagração”, termo que a seita utiliza para designar a promoção de seus presbíteros a pastor regional.
Diante da contundência dos relatos, da repetição de denúncias, da contumácia das ações, é muito difícil aceitar que um desmentido de dois parágrafos no site da IURD seja suficiente para esclarecer o assunto. Até porque já não se trata apenas de aceitar uma justificativa inespecífica, e sim de tomar em consideração aquilo que várias instâncias judiciais já estabeleceram como verdade fática.
A IURD argumenta com um dado estatístico impreciso. Diz que a maior prova de que não obriga ninguém a fazer vasectomia é o fato de que muitos pastores têm filhos. Mas o argumento perde consistência porque a instituição se nega a dizer quantos são os que foram submetidos à esterilização e quantos não foram.
Ressalte-se que, como foi dito no início deste texto, a IURD nao nega sua implicância com filhos. Mas a palavra dos responsáveis por essa gigantesca empresa da fé ecoa clara nos cultos, na internet e nas centenas de ações trabalhistas que correm em todo o Brasil. Destaque para a manifestação soberba e arrogante  bispo Edir Macedo, construída com palavras cristalinas quanto ao que significam:  “Eu falei pra não ter filho, não falei ? Nós até pagávamos pra fazer vasectomia. Mas tem filhos, problema é seu. Se vira! Vai embora daqui, não quero saber de você não! Não quero saber de problema seu não. A igreja não é uma instituição social”. Essa  declaração foi recuperada pelas repórteres Alexandra Borges e Judite França. O áudio pode ser ouvido no fim deste post.De fato, a IURD não é, como diz seu líder máximo e fundador, uma instituição  social. Ela se assemelha cada vez mais a uma gigantesca corporação empresarial com fins lucrativos que cresce como um polvo amoral, sem se importar com o sofrimento que provoca no afã de auferir dízimos, ofertas e doações cada vez  maiores.
A empresa de orações feitas por jovens esterilizados não tem o costume de prestar contas de seus  atos. A estratégia que adota é a da intimidação. Sempre que alguém descobre seus desvãos, o que ela faz é ameaçar com processos em série. No caso desta reportagem, ela deixou deliberadamente de responder a uma extensa série de perguntas após acusar o autor de ter falhado com o dever ético ao não  ouvir o outro lado, o que constitui uma inverdade absoluta.
Links para os documentos citados neste post:

Neste clip, uma colagem de falas do próprio Edir Macedo sobre o direito de  ter filhos.
http://www.universaltruth.info/2018/02/09/a-politica-de-esterilizacao-em-massa-de-pastores-da-iurd/
Acórdão  do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região condenando definitivamente a IURD por obrigar pastores a fazer vasectomia:
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Petição inicial da ação civil pública – MPT da Primeira Região (Rio de Janeiro)
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Lei 9263/96:
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