As bactérias da sua pança valem bilhões de dólares. Não para você
As indústrias farmacêutica e alimentícia querem lucrar alto com os problemas que ajudaram a criar
As indústrias farmacêutica e alimentícia apostam uma corrida frenética até o último confim de nosso intestino. É lá que se esconde um dos grandes tesouros do século 21: a microbiota.
Cuma? Os pesquisadores de saúde ficarão meio irritados com uma explicação tão simplória: microbiota é aquilo que conhecíamos como flora intestinal. Mas o quadro ficou muito mais complexo nos últimos anos porque as tecnologias de sequenciamento genético nos permitiram mapear o intestino como nunca antes.
Algumas descobertas reforçaram antigas convicções. Outras derrubaram mitos. Abriu-se um campo de estudos que pode revolucionar a ciência e entender de forma detalhadíssima como nossos hábitos de vida têm impacto sobre o corpo.
Provavelmente te ensinaram na escola que as bactérias são malvadinhas. Lave suas mãos incansavelmente, não coma nada que tenha caído no chão, não deixe o cachorro te lamber. Esse é um primeiro aspecto importante: nosso corpo está repleto de bactérias. Na nossa microbiota há trilhões, divididas em várias espécies (esse número ainda é inconclusivo). Muitas delas são benéficas. Nosso corpo só consegue fazer digestão de uma parte dos alimentos. O trabalho pesado fica com os micro-organismos que estão lá dentro vivendo e nos mantendo vivos.
Outras bactérias são isentonas, mas podem se juntar com as malvadas se rolar uma corrente brava de fake news. Em outros termos, aquelas que são neutras podem causar doenças em caso de disbiose, ou seja, de desequilíbrio.
Um dos aspectos mais fascinantes dessa nova onda é a confirmação de que nosso intestino não tem a ver apenas com alimentos. Pesquisadores no mundo todo têm descoberto uma correlação com doenças ou alterações muito variadas. O que mais chama atenção é o eixo cérebro-intesino. Depressão, ansiedade e autismo, por exemplo, estão relacionados a determinados tipos de microbiota.
O mesmo para a obesidade. Mas aí vem uma questão-chave: a pessoa é obesa porque tem uma microbiota pobre ou a microbiota pobre é resultado da obesidade? Há dúvidas sobre a primeira pergunta, mas a segunda é certa. E é aqui que se avista um dos potes de ouro.
Há alguns fatores-chave que explicam o empobrecimento da microbiota nas últimas décadas:
– Consumo de alimentos ultraprocessados
– Uso direto e indireto de antibióticos
– Alta taxa de cesáreas
– Baixo índice de aleitamento materno
Estresse, ansiedade, ambientes excessivamente limpos e vários outros fatores podem entrar na conta. O que há de comum entre eles é o estilo de vida do século 21. E, se olharmos para os quatro vetores centrais, chegaremos à conclusão de que o empobrecimento da microbiota é resultado de mudanças na alimentação e na ingestão de certos produtos químicos.
É consolidada a ideia de que a indústria de fórmulas infantis influenciou pesadamente na percepção sobre o leite materno. Demorou décadas para a ciência se livrar da ideia de que a amamentação é insuficiente, e na sociedade segue a ser comum a percepção de que o leite da mãe é fraco, ralo, escasso. O escândalo foi tamanho que esse setor se converteu no primeiro entre as corporações alimentícias a sofrer uma regulação em nível global.
Logo, se você é fã do aleitamento materno, ganhou mais um belo argumento. Não apenas o leite em si é bom, como a colonização microbiana garantida pelo contato com o seio é importante para uma microbiota saudável.
Aliás, podemos dar um passo atrás. A colonização fornecida pelo parto normal também tem se revelado mais importante a cada nova série de estudos. Alguns cientistas analisam se é possível recriar artificialmente a composição microbiana garantida pelo método natural de nascimento, mas ainda não há respostas definitivas. Então, podendo haver parto normal, tanto melhor.
Em outra ponta, a descoberta dos antibióticos foi fundamental para salvar vidas. Mas o uso disseminado não apenas em humanos, como na criação de animais, converteu-se numa preocupação importante do século 21. Esse estrago está apenas se revelando, mas é suficiente para reforçar os argumentos de quem cobra outras maneiras de produção de carne para consumo humano.
Então, não deixa de ser curioso que as indústrias farmacêutica e alimentícia queiram vender a solução para o problema do qual são parte. É difícil prever quanto valerá esse mercado porque os estudos ainda engatinham e o lançamento de produtos dependerá da regulação adotada por cada país. Mas o certo é que o crescimento dos últimos anos é muito acelerado, em especial nos Estados Unidos, morada das principais pesquisas, patentes e empresas (e modismos). Não é por acaso que essa área está cheia de fundos de capital de risco, interessados em lucro rápido e astronômico.
Há duas apostas:
– probióticos são remédios ou alimentos com uma alta concentração de bactérias benéficas. A ideia é aumentar a proporção de micro-organismos que já estão no nosso corpo;
– prebióticos são produtos que concentram fibras já presentes em alimentos in natura.
Há ainda os simbióticos, que são uma soma de pré e probióticos. Quem está à frente nessa história é a Nestlé, que em 2017 registrou 57 patentes, segundo um levantamento publicado pela IP Pragmatics, uma consultoria especializada em propriedade industrial.
Empresários ou cientistas?
A corporação suíça está de olho tanto no mercado de alimentos como no de medicamentos. A Nestlé Health Science é onipresente em eventos científicos. A ideia é convencer médicos e nutricionistas de que, como sempre, há um caminho rápido para resolver qualquer problema. Em vez de encorajar as pessoas a mudar de hábitos, basta incentivá-las a procurar a gôndola do supermercado ou o balcão da farmácia.
“Você não vai fazer investimentos vultosos se não pode fazer essa comunicação e obter o retorno daquilo que investiu”, queixou-se Marcos Pupin, diretor de Assuntos Regulatórios da Nestlé. Ele entende que a Anvisa deve ser menos restritiva e permitir que as empresas coloquem alegações de funcionalidade nas embalagens, ou seja, mensagens de que o produto X serve para o benefício Y. Hoje, para fazê-lo é preciso obter autorização para cada produto. A corporação quer que seja aprovada uma lista prévia de probióticos com benefícios comprovados. “Há uma discrepância muito grande e que eu interpreto como uma rigidez na legislação.”
A queixa foi apresentada durante seminário realizado em novembro de 2016 na tentativa de pressionar a Anvisa a garantir uma mudança nas regras. O encontro foi realizado pelo International Life Sciences Institute (ILSI). Se você quer entender para onde vai o dinheiro na pesquisa científica, é só seguir os passos do ILSI. A organização, criada há 40 anos pela Coca-Cola e hoje mantida por dezenas de corporações, mobiliza a ciência favorável ao setor privado para o diálogo com o agente público. Tudo por cientistas de universidades renomadas.
Entre os pesquisadores brasileiros otimistas com as descobertas sobre a microbiota, um dos que se destacam é Dan Waitzberg, professor da Faculdade de Medicina da USP. Ele integra o Comitê Científico Consultor do ILSI. E é o criador do Ganepão, um evento científico de grande porte no qual as pesquisas sobre microbiota têm forte presença, muitas vezes em simpósios patrocinados pelas corporações.
Em 2011, Waitzberg foi o representante direto da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) num grupo de trabalho da Anvisa que discutia alimentação de pacientes com limitação de ingestão oral.
No ano passado, ele abriu a própria empresa, uma startup chamada Bioma4Me. É a primeira no Brasil a oferecer o serviço de sequenciamento de microbioma. O teste mais barato custa R$ 1.490, e o mais caro chega a R$ 6.325.
Já falamos sobre o empresário e pesquisador Waitzberg por aqui. Assistimos a algumas palestras dele e do pessoal do ILSI a respeito da microbiota. Numa delas, o professor sugeria o uso de probióticos desde já para uma série de situações, e alertava que esses produtos têm “nome e sobrenome”, ou seja, deve-se usar o produto desenvolvido pela empresa que patrocinou o simpósio. Em outra, demonstrou impaciência com a posição da Anvisa, mais restritiva em relação à aprovação de probióticos.
O grupo do ILSI que cuida desse assunto chama-se Força-Tarefa Funcionais, e foi criado em 1999, mesmo ano em que a Anvisa abriu uma comissão de especialistas para abordar o tema. Curiosamente, essa força-tarefa é presidida por Franco Lajolo, professor aposentado da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. Ele também integrou o colegiado da agência reguladora. Como mostramos aqui no Joio, essa comissão era composta majoritariamente por cientistas ligados ao ILSI.
Lajolo, hoje presidente do Conselho Científico do ILSI, é dono de duas patentes de alimentos funcionais, uma delas em parceria com a Sadia. Em 2016, entre as atividades da força-tarefa coordenada pelo professor esteve a formação de um grupo, com Danone, Nestlé, DuPont e Yakult, para reunir evidências científicas sobre probióticos e enviá-las à Anvisa.
O co-coordenador da Força-Tarefa Funcionais do ILSI é Marcos Pupin, que vem tentando fazer com que a Anvisa mude as regras atuais. Então, como sempre, fica difícil entender se o ILSI está levando à agência evidências científicas ou as evidências científicas que favorecem os anseios de empresas como a Nestlé.
No exterior, pesquisadores têm testado o transplante fecal. Essa técnica pode ser usada em casos de infecção grave, na tentativa de trocar uma microbiota doente por uma saudável. Mas há também quem esteja tentando inserir a massa fecal de uma pessoa magra em uma pessoa obesa. O problema é que uma pessoa magra também pode ter uma série de doenças. Ainda não há um padrão sobre os testes exigidos antes dessa operação.
Riscos existem, e há de se perguntar quando valem a pena para lidar com obesidade. Um grupo de pesquisadores fez uma revisão das evidências científicas sobre efeitos adversos em casos de transplante fecal. Entre 50 artigos analisados, doze registraram internação ou morte por infecção. A incidência de problemas severos se deu em 2,5% dos casos. Entre 1.089 pacientes, três morreram por problemas relacionados diretamente ao transplante.
“Ainda que o transplante fecal seja válido como estratégia terapêutica benéfica, deveríamos prestar atenção aos efeitos adversos”, anotam os pesquisadores. “De maneira a prevenir ou tratar efeitos adversos durante ou depois do transplante fecal, mais testes clínicos e pesquisas fundamentais são necessários para elucidar o exato mecanismo pelo qual o transplante fecal causa efeitos adversos.”
Duplo padrão
Quando o Estado quer impor medidas que podem acarretar perdas ao setor privado, alguns cientistas consideram que as evidências científicas são sempre insuficientes. São os casos de impostos sobre bebidas açucaradas e da adoção de alertas nos rótulos para o excesso de sal, açúcar e gordura.
Quando se trata de aumentar o lucro das empresas, porém, a cautela fica de lado. As pesquisas sobre microbiota estão apenas no começo. Há mais dúvidas que certezas. Se há algo que é seguro dizer é que nossa composição microbiana é única, ou seja, é impossível que um mesmo produto sirva para todos. Mesmo que houvesse uma ampla gama de probióticos disponíveis no mercado brasileiro, você teria de ir por tentativa e erro para ver qual funciona – e é possível que nenhum funcione.
Empresas e pesquisadores se valem disso para dizer que chegamos à era da nutrição individual. Cada pessoa teria produtos e uma dieta únicos para suas necessidades. É aí que o cólon vira tesouro. Os testes para saber a composição da microbiota são caros, e feitos por startups que surgem de monte nos Estados Unidos. Há startups também no passo seguinte da cadeia, desenvolvendo produtos.
Algumas delas têm realizado pequenos estudos, com poucos pacientes, para tentar comprovar a eficácia do que criaram. A confusão no mundo alimentar, que já é enorme, só piora. Assim como se agrava a brecha que separa ricos e pobres. Como falar de nutrição personalizada num mundo em que há um bilhão de famintos? Uma pessoa em situação de rua receberá um sopão da noite com o composto microbiano adequado? Pode ser que no futuro testes e produtos se tornem baratos, mas há uma solução bem mais democrática: comida de verdade. Verduras, legumes e grãos estão repletos de pré e probióticos.
“Atualmente, nossa compreensão sobre a microbiota não é suficiente para prever quais efeitos específicos um probiótico particular poderia ter na microbiota de um indivíduo”, anotam os pesquisadores Justin Sonnenburg, Erica Sonnenburg e Andrew Weil, autores de The Good Gut [O bom intestino]. É um livro interessante para quem quer se informar sobre o assunto sem cair em pegadinhas. “Por essa razão, entendemos que alimentos fermentados, que contêm uma amostra diversa de micro-organismos, oferecem a melhor chance de encontrar um micróbio que tenha um efeito positivo.”
Se te interessar, esse livro e várias páginas na internet oferecem listas de alimentos ricos em fibras benéficas ao intestino, e até mesmo sugestões de cardápio. Mas, como sempre, o mais fácil caso você não seja especialista é adotar a regra de ouro do Guia Alimentar para a População Brasileira: faça de alimentos in natura e minimamente processados a base de sua dieta, limite a ingestão de processados e evite ultraprocessados.
Essa é a má notícia para as indústrias alimentícia e farmacêutica. O que as descobertas sobre a microbiota têm feito é reforçar a certeza de que os melhores padrões alimentares são aqueles que não se afastaram dos alimentos de verdade. E que a comida-tranqueira tem efeitos negativos que podem acarretar em doenças. Há cada vez mais pesquisas mostrando que povos tradicionais têm uma microbiota mais diversa que a nossa, e a incidência de enfermidades associadas à má alimentação é consequentemente menor. Um fator central para isso é a ingestão de fibras em proporções bem maiores.
A boa notícia para nós é que mudanças na dieta surtem efeito rápido na recuperação da diversidade microbiana. Pode ser que em casos específicos seja preciso fazer uso de um probiótico, e é fenomenal imaginar que problemas antigos podem ser finalmente resolvidos ou atenuados. Mas, no geral, a solução é baratíssima.
Grupos de cientistas estão usando as descobertas sobre a microbiota para reforçar a necessidade de atuação do Estado. “Alguns pesquisadores questionaram a extensão à qual a narrativa biomédica do microbioma mascara os fatores psicossociais e ecológicos de angústia, problemas mentais e precariedade que contribuem para a disbiose”, assinala um grupo de pesquisadores da Austrália e dos Estados Unidos.
Eles entendem ser impossível falar de humanos saudáveis num mundo doente, e avaliam que os achados sobre a microbiota reforçam a necessidade de olhar para o corpo como um todo. Ao olhar para os fatores causadores do problema, esses pesquisadores chamam atenção para questões sociais, ou seja, a mudança não virá pela gôndola do supermercado, mas pela superação de obstáculos enormes.
Em outro artigo, eles recordam que a microbiota de pessoas de baixa renda nos Estados Unidos é notavelmente mais pobre, o que pode ser um fator de redução de expectativa de vida. Por isso, cobram políticas públicas que estimulem a alimentação adequada e estilos de vida saudáveis, além de uma redução nos incentivos ao consumo de fast-food, inclusive com limites ao adensamento de lanchonetes em determinados bairros.
Em resumo, as maravilhosas descobertas sobre nossa vida intestinal reproduzem a clássica divisão do mundo da ciência entre quem acredita que o mercado resolverá todos os problemas de forma individual e quem acredita que estamos diante da necessidade de pensar em soluções coletivas.
0 comentários:
Postar um comentário