Farmacêuticas: é hora de abrir a caixa preta
Corporações promovem guerra suja para quebrar indústrias nacionais de medicamentos e perpetuar patentes, fortalecendo oligopólio. Pesquisador questiona: governos terão a coragem de exigir transparência da Big Pharma?
OUTRASPALAVRAS
Publicado 03/06/2019 às 20:00 - Atualizado 03/06/2019 às 20:13
Por Maíra Mathias, para Outra Saúde
Na terça (28), a Assembleia Mundial da Saúde aprovou uma resolução inédita que propõe mais transparência no mercado de medicamentos, vacinas e produtos de saúde. O sinal verde foi dado depois de uma longa batalha diplomática que se iniciou em fevereiro, de forma inesperada, quando o governo de extrema-direita do primeiro ministro italiano Matteo Salvini apresentou a proposta. Ao lado da Itália, constavam como apoiadores da resolução dois outros países europeus – Portugal e Espanha – e isso, na opinião de muitos analistas, fez a diferença. Durante muito tempo, as dificuldades no acesso a medicamentos foram tratadas como assunto de países pobres. Um problema do Sul global. Mas as políticas de austeridade, por um lado, e os custos cada vez mais proibitivos cobrados pela indústria farmacêutica, de outro, transformaram a questão em um problema de todos. Ou quase todos.
A resolução enfrentou grande resistência dos países que sediam as principais multinacionais da Big Pharma. Nações como Alemanha, França, Reino Unido e Suíça fizeram de tudo para mudar o sentido original do texto. À certa altura das negociações, o documento apresentava mais de 200 mudanças e circulou nas redes a denúncia de que esses países estariam tentando “matar” a resolução com “200 colchetes” – que é a forma como as propostas de edição apareciam nos rascunhos.
Uma das alterações, feita pelo Reino Unido, tirava a menção a “preços altos”. Já a desculpa da Alemanha para tentar adiar a discussão por mais um ano foi a forma como o documento foi apresentado, fora do trâmite normal da Organização Mundial da Saúde. No fim, mesmo depois de ter atuado durante toda a negociação, os governos britânico e alemão (e também a Hungria de Viktor Orbán) simplesmente se recusaram a assinar a resolução, se “dissociando” do texto final, um movimento bastante raro na diplomacia. Os Estados Unidos surpreendeu e não fez oposição. Já países que inicialmente não foram protagonistas no processo, ao longo dele se associaram à Itália e defenderam o texto – caso do Brasil.
Depois de tantas idas e vindas, o conteúdo da resolução ficou menos ambicioso. A versão consensual “perdeu os dentes”, como muitos falam. Uma dentada que não poderá ser dada, ao menos por hora, é a determinação de que a transparência de custos em toda a cadeia produtiva seja requisito prévio para que uma empresa obtenha o registro de um medicamento. Mas o texto aborda a necessidade de que os países troquem entre si os preços que pagam, assim como as informações sobre as patentes que concedem.
Nessa entrevista concedida no calor dos acontecimentos, diretamente de Genebra, Vitor Ido, oficial do programa de desenvolvimento, inovação e propriedade intelectual do South Centre, vai além da resolução para explicar seu pano de fundo e a geopolítica por trás do problema.
Qual é a importância da resolução?
A resolução é um marco na luta por acesso a medicamentos por reconhecer que é necessário transparência para diminuir os custos de medicamentos e produtos de saúde. Alguns dos pontos centrais são o reconhecimento de que esse é um desafio que envolve toda a cadeia de produção, não apenas o produtor final, o reconhecimento formal de que muitos desses produtos de saúde não são acessíveis e a abordagem de uma série de medidas públicas possíveis para contornar o problema.
Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que depois de todas as mudanças, o texto não contém muito conteúdo obrigatório. Ele cria uma série de atividades a serem realizadas pelos Estados e pelo Secretariado da OMS. Mas a resolução depende fundamentalmente da implementação nacional, que pode acontecer de várias maneiras, e é importante que a sociedade civil e institutos de pesquisa desenvolvam instrumentos de acompanhamento para verificar se elas serão efetivamente colocadas em prática. Isso porque certas interpretações limitadas do texto podem acabar impedindo sua efetividade.
Mas esse é um processo que a gente precisa fazer daqui para frente. Por enquanto, é uma vitória dos países em desenvolvimento. Apesar de ter sido capitaneada pela Itália, a resolução contou com a participação de vários países em desenvolvimento, inclusive o Brasil. E uma vitória da sociedade civil por reconhecer que o acesso a medicamentos é cada vez mais um problema que atinge a todos.
Outro ponto central para o debate é o que a resolução não contempla. Ou seja, a criação de um mandato específico para a OMS para difundir a proposta de transparência entre os países e criar incentivos para que esses países implementem políticas obrigatórios em relação à indústria farmacêutica. Para avançar, o que se espera é a aprovação de outras resoluções ou medidas que possam cada vez mais exigir a transparência nos mercados de medicamentos, vacinas e outros produtos médicos.
O que é exatamente a transparência da qual fala a resolução?
A ideia de transparência só faz sentido na medida em que traga maior controle social para a sociedade, os pacientes, outras empresas e governos sobre como os custos da pesquisa & desenvolvimento dos medicamentos se formam hoje no mundo.
O contexto atual é basicamente de ausência de informação para saber, por exemplo, as bases em que os governos devem negociar preços quando fazem compras públicas. Ou para avaliar a veracidade – ou não – dos argumentos de grandes indústrias farmacêuticas que dizem que têm muitos gastos com pesquisa & desenvolvimento. A resolução tem o mérito de trazer à tona esse debate que fica implícito, mas que é crucial em qualquer discussão sobre o acesso a medicamentos hoje.
É importante dizer que não é uma questão inédita, não é uma questão nova de maneira alguma. Mas tem se tornado cada vez mais importante na medida em que os países desenvolvidos não dão conta e não conseguem pagar medicamentos que são cada vez mais especializados e caros.
“O problema é cada vez maior porque as indústrias também são cada vez maiores, mais transacionais e poderosas”
Os custos da indústria farmacêutica sempre foram uma caixa preta ou isso piorou ao longo do tempo?
Pode-se dizer sem grandes polêmicas que transparência nunca houve. Talvez o debate tenha sido colocado nesses termos recentemente, mas a ideia de que não se sabe exatamente quanto, por que e por quais meios a pesquisa & desenvolvimento se realizam está presente há muito tempo.
Sobre a possibilidade de ter se tornado um problema mais complexo ou não, eu acho que seria preciso também uma análise de como funcionam as principais tendências da inovação hoje. Há muitas pesquisas sérias conduzidas por organizações não governamentais e governos que constatam que a indústria farmacêutica tem inovado menos. Evidentemente a indústria e seus próprios estudos costumam dizer que isso se deve ao fato de que os medicamentos são cada vez mais caros de serem criados, já que se atua em certos nichos de doenças cada vez mais específicas, complicadas ou resistentes.
Mas eu diria que, sim, o problema é cada vez maior porque as indústrias também são cada vez maiores, mais transacionais e poderosas. E porque o modelo de inovação atual se baseia muito na compra de inovações de indústrias menores. Por exemplo, uma pequena indústria farmacêutica efetivamente realiza a inovação, mas não tem dinheiro para fazer os testes clínicos até a fase final. O que acontece? Uma grande farmacêutica compra essa inovação. Isso agrega um grau de complexidade maior porque estamos falando de orçamentos que incluem mais de um ator e às vezes estão ocorrendo em mais de um país e em mais uma cadeia de produção.
É aí que entra a previsão de compartilhamento de preços e outras informações entre os países?
Sim. Isso criaria condições melhores tanto para negociação quanto para entender quais são os gargalos em todos os pontos da cadeia de produção, tanto na pesquisa & desenvolvimento. E ainda para descobrir quanto desse investimento vem de verbas públicas e para entender, por fim, a que preços esses medicamentos são vendidos e se efetivamente países em condições similares estão pagando o mesmo preço, ou estão em condições diferentes.
Existem vários casos e exemplos de países pobres e de renda média que pagam mais caro por medicamentos que os países do Norte. Esse debate era muito importante para os países do Sul, que já vêm falando nisso há algum tempo, mas agora surge essa novidade que é a atuação da Itália, junto com Portugal e Espanha…
Em alguma medida, é claro que essa resolução ganha um senso de legitimidade pela forma como as coisas existem no mundo, que ainda é dividido entre Norte e Sul. O fato de ser uma resolução da Itália, apoiada por Portugal e Espanha, não deixa de nos fazer lembrar que aquilo antes tratado como um problema exclusivo dos países do Sul agora se tornou um problema global que atinge a todos os países.
É uma contradição e um grande fator de iniquidade global o fato de que muitos países, inclusive os mais pobres do mundo, acabem pagando preços mais elevados do que países industrializados na Europa.
Por muito tempo, o movimento por acesso a medicamentos identificou nas patentes o problema central. Eu diria que as patentes continuam a ser um problema central, mas se começa identificar uma série de problemas laterais e alguns adicionais a esse problema central. Eles se delineiam na estrutura de interesse privado das indústrias farmacêuticas em contraposição com o interesse público do acesso a medicamentos.
Uma das razões pelas quais países na África subsaariana acabam pagando um valor muito elevado diz respeito ao fato de que eles são incluídos em grandes programas globais de licenças voluntárias.
Esses programas foram criados como uma alternativa a países que não conseguem ter produção local, mas também são uma reação à emissão de licenças compulsórias – aquilo que as pessoas chamam de “quebra de patente” – por parte de países de renda média como Brasil, Tailândia, Equador… Ou seja, dá para olhar pelos dois lados. Esses grandes programas da indústria farmacêutica podem ser vistos como uma tentativa de evitar o que para ela é pior, que é a licença compulsória. Por outro lado, criaram espaços onde antes não existia.
Só que o problema central disso tudo é que, no final das contas, um governo de um pequeno país da África subsaariana nunca vai ter a mesma capacidade de negociação que o governo do Brasil e muito menos do que o governo dos Estados Unidos.
“Não importa por qual ângulo se entre nesse debate, o pano de fundo é a geopolítica que continua a favorecer grandes indústrias, especialmente localizadas em países industrializados, em detrimento da população do Sul global.”
Não tem capacidade técnica, não tem escala… E nem geopolítica.
Exatamente. Não tem um poder de pressionar, não tem eventualmente quantidade de pessoas. É importante destacar que não se trata necessariamente de talento, boa vontade ou lisura. Mas de uma desproporcionalidade de recursos e informação. A informação é central para saber o preço que deveria ser efetivamente cobrado por um medicamento.
E é óbvio que daí a gente vê toda essa complicação do que seria um preço acessível ou como eles começaram a dizer agora um preço razoável, ou fair pricing. Mas esses países não sabem nem o que os países vizinhos estão pagando. Muitas vezes porque esses acordos exigem cláusulas de confidencialidade. Ou seja, as empresas cobram um preço favorável, desde que o país não compartilhe com seus vizinhos o quanto está pagando. E essa confidencialidade é prevista no contrato. Esse é um caso que tem sido reportado com uma certa recorrência.
Ou de maneira mais geral, qual é o critério que se baseia um determinado preço. Um bom exemplo é o do medicamento de hepatite C, sofosbuvir, que ganhou proeminência nos últimos anos pelo custo extremamente elevado. Para se ter ideia, no sistema de saúde de um país rico como a Suíça, o sofosbuvir só estava sendo oferecido para os pacientes em uma condição já grave da doença, justamente por custar muito caro. A empresa farmacêutica, Gilead, dizia que estava baseando o preço na própria vida. Porque ou você vai tomar esse medicamento ou vai fazer um transplante de fígado ou vai morrer. Esse é o argumento para dizer que, afinal de contas, o medicamento não é tão caro.
Que tipo de contra-argumentos se pode apresentar, que tipo de dados se tem disponíveis, que tipo de poder tem um país, principalmente aquele sem produção local ou com uma produção voltada para outras coisas, e em um contexto de uma crise grave de saúde pública e ao mesmo tempo orçamentos que estão cada vez mais comprimidos?
Não importa por qual ângulo se entre nesse debate, o pano de fundo é a geopolítica que continua a favorecer grandes indústrias, especialmente localizadas em países industrializados, em detrimento da população do Sul global.
Por que a construção de sistemas públicos de saúde, ou sistemas nacionais de saúde, teve ênfase na prestação de serviços e deixou de lado esse componente tão importante de produção de medicamentos, equipamentos e insumos, que poderia dar aos países mais autonomia diante da Big Pharma?
Por um lado, os países sofrem uma pressão pela via do comércio internacional para abandonarem políticas que são consideradas intervencionistas, mas que na verdade são legítimas à luz do direito internacional. A gente tem visto crescer a pressão, não só unilateral ou por vias não diplomáticas, mas pelas vias mais institucionais possíveis para que os países abandonem qualquer tentativa de industrialização, o que inclui evidentemente produção de medicamentos.
Pelas regras do comércio internacional, a participação de empresas estatais é perfeitamente reconhecida como possibilidade, em especial para os países de menor desenvolvimento relativo. Mas o que a gente tem visto é uma tentativa de criar argumentos que são ao mesmo tempo jurídicos, políticos e econômicos para dizer que os países não só não devem como não podem fazer isso porque supostamente estariam beneficiando empresas locais em detrimento do livre comércio. E ao mesmo tempo a competição internacional nunca permite que indústrias cresçam se elas forem submetidas imediatamente à concorrência de outra empresa que tem literalmente mais de mil vezes o seu tamanho. Nesse sentido, esse espaço de manobra da política diminuiu drasticamente para todos os países desenvolvimento. E cada vez mais acordos de livre comércio como o novo Nafta [USMCA] vão contraindo ainda mais essa possibilidade.
E é lógico que tem um pouco da mentalidade, de como os governantes e políticos dos países aceitam essa narrativa de que a única e inevitável salvação é abrir os mercados, desregulamentar e entrar na competição internacional.
Ao mesmo tempo, é difícil articular um debate mais amplo – até pela complexidade – de um serviço público de saúde com as necessidades de criação de indústrias locais, sejam elas públicas ou privadas.
Como a prioridade de estabelecer um sistema público de saúde já envolve a coordenação interfederativa de uma série de políticas de acesso, prevenção etc. incluir uma perspectiva de saúde pública para um debate que em geral é tido como de indústria ou desenvolvimento é sempre difícil. Porque, claro, nenhum país consegue criar uma indústria do dia para a noite. Não é só uma questão de falta de vontade.
Ao mesmo tempo, os Estados estão em crise. Então articular políticas que só vão ter repercussão daqui a várias décadas parece cada vez mais difícil. Como a face mais imediata do sistema de saúde é o acesso, a serviços, procedimentos, medicamentos, os países mais pobres acabam canalizando seus esforços para conseguir uma doação ou entrar num programa de licença voluntária, e não pensam em criar uma indústria nacional.
E o terceiro ponto é que pela correlação de forças hoje mesmo que essas indústrias sejam criadas elas ainda podem encontrar as barreiras das patentes farmacêuticas, o que significa que não se trata apenas de ter a capacidade mas de poder ou não produzir certos medicamentos.
É o caso do sofosbuvir que poderia ser produzido pela Fiocruz, no Brasil, com economia calculada de R$ 1 bi para o Ministério da Saúde se não fosse pela patente concedida à Gilead pelo Instito Nacional de Propriedade Industrial em setembro do ano passado…
O caso mais recente no Brasil é esse, que demonstra claramente o tipo de obstáculos. Quando países criaram indústrias de genéricos ou países industrializados criaram suas indústrias farmacêuticas era um obstáculo que não existia, ou que existia num nível muito menor.
“As universidades no mundo realizam o grosso da investigação (…) e o problema é que não existe nenhum mecanismo de compensação do investimento público realizado”
Ao longo dessas negociações pela resolução da transparência, muitos argumentos sobre a necessidade de se abrir os custos da cadeia de produção se baseavam no fato de que o Estado participa dessa engrenagem, por exemplo, a partir das pesquisas realizadas pelas universidades públicas…
Isso é uma tendência que pode ser considerada global, inclusive em países nos quais se costuma dizer que o investimento é todo feito pelas empresas, todo privado. Mas quando a gente analisa de uma forma um pouco mais ampla, vê que por regra geral a pesquisa básica é realizada por instituições públicas e, depois, pode ser utilizada pelo setor privado. Sem a pesquisa base, uma pesquisa que chegue até um medicamento não tem de onde partir.
O ator talvez mais importante desse ecossistema são as universidades. No caso do Brasil, isso é muito claro do ponto de vista estatístico. Mas mesmo em outros países. E mesmo que você considere, por exemplo, universidades privadas, pois não é que elas deixam de receber dinheiro público. Seja via projetos, e no caso da União Europeia é muito dinheiro que vem para financiamento da pesquisa, ou no caso dos EUA via isenção de impostos e tributos. Ou seja, diretamente e indiretamente, o Estado participa da inovação.
Políticas estatais compõem a base para qualquer tipo de inovação, mesmo que ela ocorra nas empresas. Pegue uma empresa que inova muito e corte a eletricidade, corte a capacidade técnica das pessoas que estão lá, corte o apoio do próprio governo para garantir que a concorrência vai ser mantida e não baseada em grandes monopólios com lobby… Mesmo nessa perspectiva bastante liberal você continua precisando reconhecer que o Estado tem um papel central.
Mas eu iria até além. As universidades no mundo realizam o grosso da investigação, em especial nos primeiros estágios de um produto final, inovação essa que depois é levada para outros atores, sejam os departamentos de investigação das próprias empresas, sejam institutos de pesquisa mais voltados para ciência aplicada e o problema é que não existe nenhum mecanismo de compensação do investimento público realizado. O lucro é revertido exclusivamente para o setor privado na forma de uma patente, por exemplo.
Como a pesquisa básica se transforma em pesquisa aplicada?
São muitos os arranjos possíveis. Grandes indústrias que têm o capital para realizar os testes clínicos compram contratos e licenças de empresas menores ou de institutos de pesquisa de origem pública. E ao mesmo tempo as parcerias público-privadas que cada vez mais tem ocorrido ao redor do mundo em tese preveriam um arranjo em que todos se beneficiariam. Mas que riscos ficam com o setor público e que benefícios ficam com o setor privado? Em muitos dos casos, não é um balanço equilibrado.
A indústria não tem demonstrado nenhum interesse em desenvolver alguns medicamentos que não seriam lucrativos. Nesse caso, não há transparência que resolva o problema…
O ponto crucial de todo esse debate é que mesmo que a gente tenha a maior transparência possível, mesmo que a gente consiga reduzir os preços dos medicamentos, continuamos a não ter soluções específicas ou totais para o problema das falhas de mercado da indústria farmacêutica, que são inúmeras.
Hoje em dia pela lógica privada do capitalismo você só vai investir se pensar que vai ter lucro. Então doenças raras ou aquelas não por acaso chamadas de negligenciadas só terão investimentos em pesquisa e, depois, medicamentos para tratá-las se a lógica de mercado for ultrapassada. Investimentos públicos são mais do que essenciais: são a única alternativa possível.
Quais são as ferramentas que os Estados têm hoje?
No direito internacional, os países tiveram na década de 90 uma restrição muito grande ao que eles podem fazer. Isso é por conta da criação da Organização Mundial de Comércio e do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio [TRIPs, na sigla em inglês), que regula os aspectos relacionados à propriedade intelectual e obriga todos os países, incluindo os países de menor desenvolvimento relativo a reconhecer patentes farmacêuticas. Uma patente fornece um monopólio temporário para o seu detentor. Um monopólio permite ao monopolista cobrar o preço que ele quiser. Esse é um gargalo gigantesco porque esse é um monopólio lícito, pelo menos a princípio. Ele pode ser abusado – como muitas vezes é. Mas a questão é que, ainda sim, existem vários mecanismos dos quais os Estados podem lançar mão.
Isso incluiu o papel do Judiciário, inclui normas internas e diretrizes que são do escritório de patentes. No caso do Brasil, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial. E, claro, mudanças legislativas que podem aumentar ainda mais essa zona de exclusividade dos direitos dos detentores das patentes, em geral as indústrias internacionais, ou eles podem adotar uma perspectiva de saúde pública.
É importante ressaltar que isso não é uma luta contra a indústria por si mesma, nem uma luta contra as patentes. É basicamente usar o espaço que é reconhecido pelo próprio direito internacional, pelo próprio acordo TRIPs.
A licença compulsória é apenas um dos mecanismos, talvez o mais famoso, para intervir no caso de uma necessidade. Mas, por exemplo, países como a Argentina hoje têm uma quantidade de patentes farmacêuticas muito menor porque eles adotam critérios mais rigorosos para conceder uma patente. Se antes, a prescrição para uma doença era tomar certa pílula duas vezes ao dia e, agora, foi criada uma tecnologia que reduz isso para uma única pílula ao dia, por um lado você pode dizer que isso é uma inovação e por outro, olhando para os requisitos técnicos, que na verdade apenas uma segunda manifestação ou é um incremento muito pequeno.
Ou se você usava um remédio para tratar algo no estômago e se descobriu que tinha efeitos no fígado, um segundo uso, será que isso justifica mais 20 anos de direito de produção exclusivo? O lobby internacional das indústrias obviamente vai no sentido de aumentar sua própria proteção. Mas existe um espaço grande para que os países tenham bastante clareza e, inclusive, independente do ponto de vista ideológico porque a gente tem visto governos bastante díspares tomando esse tipo de posição em que por adotarem políticas que a gente chama de flexibilidade do TRIPs como critério rigorosos de concessão de patentes, como possibilidades de pedidos de oposição ao pedido de patente, como licenças compulsórias, como exceções para pesquisa, como critérios para medidas de fronteira, etc. a atuação dos países pode ter um impacto muito grande para reduzir o preço dos medicamentos.
Dito tudo isso, é importante entender que essa é uma faceta do debate. Ao mesmo tempo, de uma maneira mais geral do ponto de vista dos ministérios de saúde o que eu posso dizer é que apesar das restrições orçamentárias, uma coisa é certa: garantir acesso universal exige recursos. Não dá para dizer que o acesso a medicamentos e o acesso ao direito à saúde é plenamente compatível com políticas de austeridade.
Com outros setores econômicos e com outros produtos que não são tão essenciais para a manutenção da vida e do bem-estar, como carros, por exemplo, a gente consegue saber o custo? Essa transparência que a resolução italiana inicialmente propôs é uma coisa inédita ou já existe em outras cadeias produtivas?
Justamente pelo aumento da importância de medicamentos, vacinas e diagnósticos no debate sobre a saúde global é natural que também haja cada vez mais reflexões sobre o custo de pesquisa e desenvolvimento nessas áreas. Eu não acompanho tanto o que se tem falado em relação especificamente a isso, mas a minha impressão é de que se por um lado algumas das tecnologias envolveriam um modelo de inovação “menos complexo”, bem entre aspas, do que o setor farmacêutico, por outro lado ele também continua a ser como qualquer sistema de inovação imbuído de uma série de elementos de falta de transparência. O que exige, sim, uma reflexão sobre o que seria necessário, o que seria de específico para exigir transparência desses outros setores.
Mas aí talvez exista uma questão sobre o quanto de dentes que um mecanismo que seja criado necessita para realmente conseguir uma transparência de informações seja efetivamente possível de ser utilizada por países. Talvez um país bem pequeno que ainda não tenha condições de criar uma indústria enorme de medicamentos, talvez tenha condições de entrar em um mercado como o de equipamentos auditivos.
Mas se eles considerarem por um lado que não podem fazer isso e forem submetidos tanto a essas grandes pressões talvez eles não tenham nenhum incentivo para sequer pensar em adotar uma política nesse sentido.
Que lição fica de toda essa movimentação insana de negociações em torno da resolução na Assembleia Mundial da Saúde?
Um ponto central é a continuidade da reflexão sobre o conflito de interesses. Isso no âmbito não só na Organização Mundial da Saúde. O conflito de interesses entre as indústrias farmacêuticas e o funcionamento dos mercados; o conflito de determinadas agentes em relação ao sistema público. Ou seja, o debate sobre essa transparência também precisa incluir, ainda que indiretamente, a noção de que as regras do jogo têm que ser jogadas por todo mundo. E que, portanto, os incentivos, as condições e as informações têm que estar em igual capacidade para todo mundo. Aplicado no debate internacional, isso significaria dizer que os países em desenvolvimento precisariam ter os mesmos recursos, as mesmas informações que eventualmente outros países que sediam as grandes indústrias transnacionais têm. O que, obviamente, não acontece.
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