USA: Ganhar no quintal o que perde no mundo |
Mário Maestri |
Roteiro da entrevista concedida ao jornalista Romulus Maya, na Duplo Expresso, dia 27 de junho de 2019
Uma charge de um jornal de 1912 destacando a influência dos EUA sobre os países vizinhos no seu "quintal" no século seguinte, a Doutrina Monroe Há décadas os USA são incapazes de grandes empreendimentos internacionais, mesmo para retirar ainda mais, como o plano Marshall [1947] que enquadrou Europa aos desígnios estadunidense. Exercem a diplomacia do bastão sem a cenoura, para enquadrar aliados e tributários na operação de desorganização das economias e sociedades chinesas e russas. Ofensiva que se serve de choques militares localizados terceirizados e, se necessário, diretos. O que pode levar a confronto mundial. Os USA têm pouco tempo para se sobrepor à China que se arma e se insinua economicamente nas mais sensíveis áreas de influência estadunidense, sem sequer perdoar o sacrário imperialista, a “Anglosfera”, ou seja, os países de forte população anglo-descendente. Super aliados, os USA, Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia lutaram abraçados em quase todas as últimas guerras imperialistas - Guerras Mundiais, Coréia do Norte, Vietnã, Iraque, Afeganistão, etc.
Deus salve a Rainha e sobretudo os Negócios
Após a II Guerra, os serviços de informação da Anglosfera formaram a aliança semi-secreta “Cinco Olhos” [“Five Eyes”], contra a URSS. Desde então, ela serve aos interesses do imperialismo. Sua rede de vigilância [Echelon] escuta as comunicações mundiais, à margem de qualquer controle governamental. Ela escutou os governos petistas, participou da montagem da Lava Jato e do golpe, hackeou por longos anos a Petrobrás.Os batalhões da Anglosfera resistem à ordem de ataque contra a China. Há um século, a Inglaterra escuda os Estados Unidos. Rei morto, ou quase, rei posto, ou quase. Em 2016, David Cameron, o primeiro-ministro inglês conservador, de 2010-16, proclamou a “Era de ouro das relações China-Inglaterra”. E com razão. A China investe no país no ramo da energia, nuclear, educacional, imobiliário, bancário, esportista, etc. Cem mil chineses estudam no país, que acolhe enorme número de Institutos Confúncio. A Inglaterra é a ponte chinesa para a Europa. É forte a sinergia das finanças dos dois países. Uma seguradora chinesa é a maior acionista do HSBC, o mega banco mundial inglês. Os capitais londrinos participam do Banco Internacional de Investimento Asiático [AIIB] e de grandes investimentos chineses, inclusive no Cinturão-Nova Rota da Seda. The City é o maior centro vendedor de renminbi. A Huawei, parceira privilegiada inglesa, participa na instalação da Rede 5G inglesa.
Seguir ... até onde?
Os Estados Unidos sempre criticaram o namoro entre a China e a Inglaterra, que segue apoiando as ofensivas estadunidense mundiais, sobretudo contra a Rússia. A Inglaterra fortalece a marinha e navega nas águas do Mar da China meridional, com as reclamações protocolares de praxe. Agora, os Estados Unidos exigem que fira na carne suas relações com a China. E isso quando o país enfrenta a conclusão do Brexit e suas eventuais sequelas: secessão da Escócia e Irlanda do Norte; regressão enquanto centro financeiro; queda das exportações, etc. A Inglaterra teme que os Estados Unidos sigam seu exemplo histórico de lutar até o último aliado.Mesmo vetando a Huawei, a Austrália, país multicultural, metamorfoseia-se profundamente. O adesismo à Inglaterra reduz-se sobretudo aos australianos anglo-descendentes de mais de sessenta anos, conservadores na política. Desde os anos 1990, a China é o principal parceiro comercial do país, comprando carvão, gás, minérios. Os estudantes chineses constituem o terceiro ramo das exportações do país. Contra pressões estadunidenses, o país aderiu à AIIB. Também a Nova Zelândia vetou a Huawei, mas aderiu sem preconceitos ao Cinturão-Rota da Seda e ao AIIB. Os dois países afastam-se do passado e voltam-se para a Ásia. Dificilmente lutarão a fundo a guerra estadunidense. O Canadá é exceção, devido à forte integração aos USA, país destino de 75% das exportações e de onde chega 51% das importações. O Canadá acompanhou sempre o big brother nas aventuras imperialista. Pressionado por Trump, seu governo prendeu a filha do fundador e diretor da Huawei, maior fornecedor do país de produtos de comunicação. A resposta chinesa foi fraca: a interrupção da importação de gêneros alimentares canadenses A China é o segundo mercado das exportações do Canadá - uns 18 bilhões de dólares, quase nada, diante dos 274 bilhões que partiram para grande vizinho em 2017.
Pondo ordem no quintal
Pôr ordem no quintal latino-americano é imprescindível ao imperialismo USA, ao enfraquecerem-se suas posições na África, na Ásia e Oceania. Nessa região estão o Brasil e a Argentina, respectivamente segundo e quinto exportador mundial de alimentos, ambas nações fornecedoras da China e destino de capitais chineses. A retomada de controle dos governos latino-americanos iniciou-se com o governo Obama-Hillary, que propiciou golpes diretos e eleitorais em Honduras [2009]; Paraguai [2012]; Argentina [2015]; Equador [2017]. A Colômbia e o Peru já eram semi-colônias dos USA, que possuí múltiplas bases em seus territórios. O Chile jamais superou as sequelas institucionais pinochetistas.O Brasil constituía peça central da estratégia imperialista latino-americana e mundial, pela sua dimensão industrial, geográfica, populacional e por sua produção mineradora e agro-pastoril. O golpe de 2016 se inscreve no longo processo de reversão do status do país de nação semi-colonial em nação neocolonial globalizada. Ou seja, uma nação na qual não somente as grandes decisões econômicas, mas a própria gestão política geral do pais passam das classes dominantes locais para o grande capital internacional. Em 2018, o golpe foi acelerado e reorientado pelas necessidades conjunturais e singulares do imperialismo estadunidense, que não são idênticas logicamente às do capital mundial, do qual participa com destaque o chinês.
Reformatação do Estado e das instituições
O golpe institucional de 2016 foi preparado pelas internacionalização, desnacionalização, desindustrialização da economia nacional das três últimas décadas, processo impulsionadas por todos os governos pós-1985. O golpe foi lançado com o apoiado do grande capital financeiro, da grande mídia, da Justiça, do Parlamento, da Polícia Federal, dos generais do alto comando das forças armadas, preocupados apenas com ganhos pecuniários - com destaque para o “núcleo haitiano”. Foi sustentado pelo empresariado pequeno, médio e grande conquistado pela promessa de submissão dos trabalhadores a relações neo-escravistas assalariadas.O golpe surfou no movimento social esfacelado e na renúncia da dita burguesia nacional à hegemonia mesmo parcial sobre o país, resultado de sua desossificação geral, engendrada no processo de globalização. Já obedecendo às exigências do imperialismo estadunidense, o golpismo instalou-se através da destruição do pouco que restara do capital monopólico nacional público e privado. As grandes empreiteiras, a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o BNDES foram e estão sendo arrasados. Entregou-se de mão-beijada a EMBRAER e Alcântara. A Vale já estava nas mãos do imperialismo. Os irmãos-Friboi puseram-se sob o guarda-chuva estadunidense. O programa político da reformatação institucional do país impulsiona a destruição-domesticação dos grandes, médios e pequenos partidos políticos, em prol de partidos e candidatos de ocasião, literalmente saídos das moitas do oportunismo, bancados pelos núcleos que sustentam a fatiamento do parlamento e da política, para além de qualquer sentimento nacional - evangélicos; agro-negócio; transporte inter-municipal; oligopólios educacionais, etc. Condições para a liliputização do Estado e a infinita dispersão de seus poderes, deixados à intervenção quotidiana do capital. Trata-se da construção de nova superestrutura político-jurídica-institucional exigida pela economia globalizada, na esteira da superação da Era dos Estados-Nações.
Acelerando o passo
Em 2016, o golpe institucional interpretou no geral o grande capital e conheceu flexibilização pró-imperialista estadunidense incondicional, em 2018. Os governos Temer e Bolsonaro são farinhas diversas, saídas do mesmo saco. Irmãos gêmeos, mas não univitelinos. Com os bolso-boys, Guedes e os generais-bananeiras bolsonarianos no comando do governo, o imperialismo esboçou enquadramento direto do país à sua operação sobretudo contra a China, mas também contra a Rússia, o Irã, a Venezuela, Cuba. Além de organizar a rapinagem radical e despudorada das riquezas nacionais.Em fevereiro-março de 2018, Bolso e filhos visitaram Japão, Coréia do Sul, Taiwan, mas não a China. O novo governo bateu continência não apenas simbólica à bandeira estadunidense e ajoelhou-se diante de histriônico timoneiro yankee. Enquadrou-se bovinamente à política mundial do imperialismo, como prometera durante a campanha. Protestou quando deputados do PSL visitaram a China, em janeiro de 2019, à convite da embaixada chinesa no Brasil. Olhou de cara feia para Pacto Global para uma Migração e o Acordo de Paris sobre o Clima, subscritos por Temer. Abraçou a campanha contra a Venezuela e reconheceu o governo-opereta Guaidó. O bolso-governo passou a apoiar Israel contra os Palestinos na ONU, parte da superaçãodos propostos antiamericanismo e terceiromundismo que dominariam a diplomacia brasileira. Afagando Trump, prometeu transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv a Jerusalém, juntando-se a nações destacadas como a Guatemala, Honduras, Islas Marshall, Micronesia, Nauru, Palau e Togo, algumas delas pagas para mudarem a mobília de endereço. A transferência seria feita quando da viagem de Mito e de sua troupe a Jerusalém, para o gáudio do imperialismo, dos sionistas, dos evangélicos..
Matar de fome
O arrasamento dos bancos estatais e a substituição plena do financiamento público da safra pelo privado permitiriam a cooptação ainda maior da renda do agro-negócio nacional pelo imperialismo. Já nesse ano, acresceu-se mais um ponto ao “juro máximo” dos grande produtores. Um dinheirão. Controlaria-se assim a comercialização, o preço do produto, cortaria-se o fornecimento da China, se no futuro a operação exigir. Esse controle é estratégico, já que a soja brasileira compete com a estadunidense no mercado mundial.No início de 2018, Rex Tillerson, ex-secretário de Estado dos USA, ao iniciar visita ao México, Argentina, Peru e Colômbia, atacou as “novas potências imperialistas” que avançariam sobre a América Latina, recebendo a pronta resposta do Ministério de Assuntos Exteriores chinês. Bolsonaro definiu durante a campanha a China como "predador que busca dominar setores-chave da economia brasileira”. A China advertiu-lhe que, se o governo se submetesse às exigências estadunidenses, o “custo econômico pode ser duro para a economia brasileira, que acaba de sair de sua pior recessão na história”. [G1, 01/11/2018] Em 12 de março de 2019, em aula magna no Itamaraty, o bolso-chanceler Ernesto Araújo disparou chumbo grosso contra a China. “Nós queremos vender soja e minério de ferro, mas não vamos vender nossa alma.” A China é o maior comprador de soja e de minério de ferro do Brasil. A mensagem era inequívoca. Venderemos o que quisermos e fecharemos as portas para os investimentos diretos chineses que importam. Já navegando no reino da fantasia, o bolso-chanceler - ou chanceler de bolso? - arrematou: “De fato, a China passou a ser o grande parceiro comercial do Brasil e, coincidência ou não, tem sido um período de estagnação do Brasil.” Para ele, a aliança prioritária com os USA seria sinônimo de progresso! Trata-se de uma inversão geral da orientação do governo Temer que, em visita à China em 2016, ofereceu acesso a tudo o que fosse privatizado, transformando 2017 no ano magnífico dos investimentos chinesas no país. De agosto 2016 a agosto de 2017, os chineses investiram 21 bilhões de dólares em aquisições, transformando o Brasil no nono maior destino de investimentos diretos chineses. De 2003 a 2018, os investimentos foram de 69,2 bilhões, com destaque para São Paulo [mais de 40%] - máquinas e equipamentos, eletrodomésticos, automotivos, energia, plástico, mineração, siderurgia, serviços, financeiro, bancos, etc.
Mons peperit mus
A montanha pariu um rato. Bolsonaro prometeu embaixada em Jerusalém e entregou um mísero “escritório de representação comercial”. Sua diplomacia pró-Trump foi dobrada pela admoestação da Liga Árabe, Egito, Turquia, Irã. Em 2017, Brasil teve um superávit de US$ 7,1 bilhões no comércio com essas nações e um déficit de US$ 419 milhões nas trocas miseráveis com Israel. As tropas bolsonarianas empreenderam retirada inglória diante dos batalhões cerrados de criadores tupiniquins de frango.O mesmo ocorreu em relação à China, até agora. Em concorrência com a produção estadunidense, as exportações da sojicultura nacional são sustentadas pelas compras milionárias chinesas. Ao contrário do Canadá, a China é desde 2009, ano em que superou os USA, o primeiro parceiro comercial do Brasil, que obteve um superavit de quase 59 bilhões de dólares sobretudo com a venda de grãos e minérios, em 2018. Não há para onde redirecionar essas exportações, que dependem da bonança de economia chinesa.
"Objetivo: o estímulo de investimentos chineses no Brasil"-Mourão na Muralha de China em maio
Em maio de 2019, o general Hamilton Mourão partiu correndo em viagem para o Império do Meio para tranquilizar governo e investidores, em desautorização explícita das declarações de Bolsonaro durante a campanha e do bolso-chanceler, havia dois meses. Mas a guerra da China é estratégica para os Estados Unidos. Apresenta-se agora ao Brasil a questão de inibir a participação chinesa em compra de empresas, processos licitatórios e privatizações, com destaque para o leilão da rede 5G, prevista para março de 2020. Mourão acaba de reafirmar que não há no Brasil prevenção contra a Huawei, enquanto Ernesto Araújo apontava em sentido contrário. A proibição da participação da Huawei é fácil. O problema é o agro-negócio suportar as represálias.Encontra-se na mesa também a decisão de aderir à proposta chinesa de extensão à América Latina do mega-projeto Cinturão-Nova Rota da Seda, com fortes investimentos no sistema portuário, rodoviário, ferroviário, etc., o que rentabilizaria as exportações nacionais de commodities e seria um alívio para depressão profunda da economia nacional. A proposta já foi avançada quando da visita do vice-presidente à China e será possivelmente reafirmada durante o G20, agora, em junho-julho, e decidida quando da visita de Bolsonaro à China, em agosto. O presidente frajuto vai estar sob os olhos de milhares de bolso-coxinhas angustiados com seus negócios. Vai ter que escolher entre bater a continência à bandeira USA ou aos dólares e rinminbi.
Ninguém aguenta
As oposições internas do capital prejudicado pela orientação imperialista se expressam, mais e mais, ainda que timidamente. Em 17 de junho, Johnny Saad, proprietário da Rede Bandeirante, diante de empresários, atacou duramente a Lava Jato e adestruição da indústria nacional, citando a Odebrecht, que acaba de pedir “recuperação judicial” - “Nenhuma das empresas internacionais que se envolveu no escândalo da Petrobrás ou em outros escândalos foi destruída. Penalize quem fez, mas não se penalize a empresa”. A revelação dos malfeitos Moro-Dallagnol não tem ainda assinatura.As divergências entre o presidente e o vice se estende às forças armadas, solidárias entretanto na agressão ao mundo do trabalho no Brasil. A crise se instala no governo e enfraquece o próprio golpe. Generais, empresários, banqueiros apenas esperam que seja aprovado o arrasamento do sistema público e privado de pensões para os próximos passos. O movimento social voltou às ruas, com vontade, revelando decisão de luta. As direções da chamada oposição olham para o outro lado e apontam como solução os acordos de gabinete e as eleições certamente manipuladas de 2020 e 2022. Procuram retirar suas castanhas do fogo, garantir suas sinecuras parlamentares e sindicais, enquanto o programa de aniquilação nacional avança a passos de gigante.
Principais referências bibliográficas
MAESTRI, Mário. Revolução e contra-revolução no Brasil. 1530-2018. Porto Alegre: FCM Editora, 2019. 420 p.
NOGUEIRA, A. M. & HAFFNER, J. O papel do Estado Chinês nos investimentos externos diretos (IDE) na América Latina https://sites.usp.br/prolam/wp-content/uploads/sites/35/2016/12/NOGUEIRA_II-Simpósio-Internacional-Pensar-e-Repensar-a-América-Latina.pdf
SEAIN. Boletim sobre investimentos chineses no Brasil, 7, set;-dez. 2018
SCHUTTE, G. R. A Busca da Hegemonia Americana 3.0 e a Ascensão Chinesa: Entre a Transnacionalização do capital e a volta do conflito interestatal. http://ieei.unesp.br/index.php/IEEI_MundoeDesenvolvimento/article/view/36/38
Revistas
Limes. Rivista italiana di geopolitica. “Chi comanda il mondo”. 2/17. Diversos autores.
Limes. Rivista italiana di geopolitica. “Non tutte le Chine sono de Xi”. 11/2018. Diversos autores.
Limes. Rivista italiana di geopolitica. “Una strategia per l´Italia”. 2/2019. Diversos autores
Limes. Rivista italiana di geopolitica. “La questione britanica”. 5/2019. Diversos autores
Aspenia. Rivista Aspen Institute Italia. “La Terza Rivoluzione Cinese”. 9/2018. Diversos autores.
Jornais e edições eletrônicas
Le Monde Diplomatique, Paris. janvier, 2015; mai 2019.
Sputnik, El Pais, Folha de São Paulo, UOL Economia,.
Muito obrigado a Tlaxcala Data de publicação do artigo original: 27/06/2019 URL deste artigo: http://www.tlaxcala-int.org/article.asp?reference=26373 |
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