2 de jul. de 2019

NASCE O SOL A 2 DE JULHO: INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA BAHIA SÓ FOI POSSÍVEL GRAÇAS À LUTA NEGRA

NASCE O SOL A 2 DE JULHO: INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA BAHIA SÓ FOI POSSÍVEL GRAÇAS À LUTA NEGRA



ADEMAR CIRNE
Publicado em 01 de jul de 2019

“Nasce o Sol a dois de julho. Brilha mais que o primeiro. É sinal que neste dia, até o Sol, até o Sol é brasileiro. Nunca mais, nunca mais o despotismo regerá, regerá nossa nação. Com tiranos não combinam brasileiros corações.”
E assim foi escrito!
Na manhã ensolarada de 2 de julho de 1823, quando se deu a independência do Brasil na Bahia (a independência do Brasil já havia sido proclamada no dia 7 de setembro de 1822), o alferes e poeta Ladislau dos Santos Titara (em epígrafe) saudava com seus versos os heróis da memorável e épica batalha de Pirajá, ocorrida em 8 de novembro de 1822, que representou a principal vitória das tropas brasileiras sobre as portuguesas, pois a conquista de Pirajá permitiu a entrada do exército nacional na cidade de Salvador, que estava sitiada pelo comandante em armas da Bahia, o português Inácio Luís Madeira de Melo.
Parecia destino traçado. Depois de mais de uma semana de fortes chuvas que insistiam em cair sobre a capital baiana, exatamente naquele dois de julho o sol nasceu como nunca se tinha visto. Era o astro rei dando os parabéns à vitória dos baianos e as boas vindas às tropas de várias regiões que entravam triunfantemente pela estrada das boiadas, hoje Rua Lima e Silva, bairro da Liberdade, para expulsar as tropas portuguesas e concretizar definitivamente a independência do Brasil na Bahia.

O Primeiro Passo para a Independência da Bahia
Artista: Antônio Parreiras
Apesar da batalha de Pirajá ter sido o momento fundamental para a vitória final dos baianos, esta guerra frontal teve início muito antes, já que desde fevereiro de 1822, antes mesmo do grito do Ipiranga proferido pelo príncipe regente, D. Pedro, já havia na Bahia o enfrentamento às tropas do português Madeira de Melo, recém-nomeado Comandante em Armas da Província da Bahia. Foi neste momento, portanto, que os verdadeiros heróis da libertação começaram a aparecer no cenário da luta, que culminou no processo de libertação do Brasil das garras de Portugal.
Um dos motivos que agitava a população e os militares baianos pelos idos de 1822 era a insatisfação com o novo comandante da província, fiel defensor das ideias lusitanas. Com a intenção de impor a sua autoridade, Madeira de Melo resolveu inspecionar as infantarias, que eram formadas na sua maioria por brasileiros, atitude esta que deu início aos primeiros conflitos entre tropas brasileiras e portuguesas no dia 19 de fevereiro de 1822.
O Forte de São Pedro, bem como as localidades das Mercês, Avenida Sete de Setembro, Praça da Piedade e Campo da Pólvora viraram verdadeiros campos de guerra, onde de um lado estavam aqueles que pretendiam impor ainda mais o julgo português ao Brasil e, do outro, aqueles que lutavam pela libertação do país. Naquele mesmo dia, as tropas portuguesas invadiram o Convento da Lapa alegando que existiam militares baianos escondidos no local. Na tentativa de proteger a instituição religiosa e até mesmo os baianos que se encontravam no recinto, a Abadessa Sóror Joana Angélica se pôs em frente à porta do Convento, impedindo a entrada dos soldados portugueses e sendo atingida por um golpe de baioneta que ocasionou sua morte um dia depois.
O mês de março de 1822 foi marcado não apenas pela chegada de tropas portuguesas para reforçar o exército do governador Inácio Luís Madeira de Melo, mas também pelo deslocamento das tropas baianas para região do Recôncavo do Estado, no intuito de organizar a resistência contra os lusitanos.
Nesse diapasão, cidades como São Francisco, Santo Amaro e principalmente Cachoeira, devido à sua situação econômica (ainda era um local de concentração de proprietários de terras) e também em função da sua localização geográfica estratégica, tornaram-se vanguarda e, até hoje, preservam nas suas memórias a importância desta luta.
A mais importante batalha travada nesta região ocorreu em 25 de junho de 1822, quando a Vila de Cachoeira foi bombardeada por marujos portugueses que dispararam balas de canhão a partir de um navio ancorado no Rio Paraguaçu, enquanto os vereadores cachoeiranos prestavam grande homenagem a D. Pedro, aclamando-o príncipe regente perpétuo do Brasil e o povo, apoiando este ato, saía em marcha pelas ruas da então Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira.

Câmara Municipal de Cachoeira
Após quase três dias de confronto, aproveitando-se do conhecimento da região e sabendo das dificuldades de manobras do navio no rio, os baianos tomaram o barco e prenderam os portugueses, marcando assim o desligamento da Vila de Cachoeira do domínio português.
Na visão de muitos historiadores, esta passagem da história nacional retrata uma independência que antecedeu ao 7 de setembro 1822, de D. Pedro. Pelos feitos heroicos de seu povo, em 1837 a antiga vila foi elevada à categoria de cidade, com a denominação de Heroica Cidade da Cachoeira.
Além da já citada Joana Angélica, algumas outras pessoas atuaram de forma tão marcante no processo de Independência da Bahia que são até hoje lembrados pelos livros de história. Nomes como General Labatut, Corneteiro Lopes, Maria Quitéria Barros Falcão, Joaquim José de Lima e Silva, João das Botas, não deixaram de permear a memória dos brasileiros.

Imagem do caboclo
A figura do Caboclo também está presente nas memórias e comemorações da Independência da Bahia desde 1824, quando a população, para relembrar a entrada do exército pacificador em Salvador, enfeitou uma carreta tomada do inimigo na batalha de Pirajá, pôs sobre ela um velho de descendência indígena e a levou, em cortejo, da Lapinha ao Terreiro de Jesus. O ritual se repetiu no ano seguinte e, em 1826, foi esculpida a imagem do caboclo que circula nas ruas até os dias de hoje. Alguns anos depois apareceria a imagem feminina da Cabocla acompanhando o Caboclo.
Boa parte da identificação popular dessas figuras reside no fato delas representar os heróis que lutaram na Independência e que não são comumente lembrados: os soldados esfarrapados, os batalhões de índios usando armas tribais, de negros escravos e libertos, os sertanejos, a população voluntária que se organizou por conta própria em grupos para lutar (e que formaram maior contingente das tropas da Bahia).
Como Labatut informou em um ofício ao Ministro José Bonifácio “nenhum filho de proprietário rico tinha se apresentado como voluntario”.

Papel do povo negro na libertação

Símbolo de luta e resistência, o Caboclo e a Cabocla no 2 de julho são muito mais que uma representação cívica. Eles retratam os heróis invisíveis, quase sempre anônimos, que foram o maior contingente das tropas baianas. Alguns desses, foram resgatados do esquecimento com foi o caso de Maria Felipa, mulher negra, capoeirista, marisqueira que, liderando outras mulheres, enfrentou e derrotou soldados portugueses defendendo a costa da Ilha de Itaparica, conforme relata o pesquisador Ubaldo Osório Pimentel em seu livro ‘A Ilha de Itaparica’, de 1942.

Imagem de Maria Felipa
Agregando simbolicamente todas as etnias que se uniram contra os colonizadores, o Caboclo e a Cabocla são, na verdade, a personificação do protesto feito pelo povo pobre, pelos índios, pelos negros, pelos voluntários forros, pelos sertanejos e por todos aqueles que lutaram por uma liberdade que até hoje não se concretizou por inteira.
Além disso, esses seres, com o passar do tempo, tomaram uma dimensão espiritual, sendo relacionados diretamente com os cultos religiosos de matriz africana. São visitados por muitas pessoas que depositam pedidos de ajuda e fazem agradecimentos por graças alcançadas pela ajuda do Caboclo e da Cabocla, sendo também o dia 2 de julho uma data que, na Bahia, vários terreiros de Candomblé e Umbanda tocam seus Atabaques em saudação aos Caboclos e Caboclas das matas brasileiras.
Ao contrário do que se pode imaginar, o festejo do 2 de julho é muito mais um grito por justiça e de revolta contra o exército português e a elite aristocrática brasileira, do que uma festa de celebração pela vitória de 1823, que, no fundo, apenas beneficiou aos membros da elite branca baiana, que, após um ano de expulsão dos portugueses, se mantiveram no poder, dando continuidade a uma sociedade escravista e patriarcal, sem considerar em nenhum momento o esforço feito por setores populares, na maioria composto por negros, escravos e forros, que tiveram participação fundamental na defesa da cidade do Salvador logo após ao enfrentamento de fevereiro de 1822, quando os membros da elite baiana deixaram a cidade e foram se juntar aos fazendeiros e produtores de cana de açúcar do recôncavo baiano.
Neste momento, entrou em cena a participação daqueles segmentos sociais historicamente conhecidos como “partido do povo negro baiano”, um grupo composto em grande parte por jovens negros, moleques como eram denominados pelos portugueses, brancos pobres, negros escravos cedidos pelos senhores para serem incorporados as tropas nacionalistas com a promessa de liberdade após a vitória.
Mesmo assim, apesar de hoje já se ter bastantes registros sobre a participação deste suposto partido negro, da sua fundamental importância na expulsão dos portugueses e consolidação definitiva da independência do Brasil na Bahia, os livros de história continuam minimizando sua participação e sua importância, relegando ao esquecimento estes heróis nacionais que deram suas vidas, não apenas com a intenção de libertar o Brasil de Portugal mas, com certeza, pensando em ampliar essa libertação com o fim da escravidão, construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Porém, sabemos que nem 1823 nem em 1888 (abolição da escravidão) possibilitaram ao povo negro a sua verdadeira liberdade. Apesar de livres institucionalmente, os negros continuaram discriminados, tratados como inferiores, vivendo em péssimas condições, sem oportunidade de trabalho digno, sofrendo práticas racistas cotidianamente, já que esta libertação não foi acompanhada de medidas para inserção dos libertos na sociedade.
Apesar dos avanços e conquistas da população negra em direção à sua afirmação e inclusão socioeconômica, cultural, religiosa e institucional, resultado da criação de organizações do movimento negro, da criação de leis e organismos de reparação, ainda não se alcançou plenas condições de liberdade e afirmação. O racismo persiste e os propósitos do “Partido Negro da Independência da Bahia” permanecem vivos, como quando o sol que brilhou no dia 2 de julho de 1823.
http://midia4p.com/nasce-o-sol-a-2-de-julho/
Ademar Oliveira Cirne Filho é graduado em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pós-graduado em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e mestrando em Ensino das Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia.
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