Conversa com Renny Ramakers
N’GOLÁ: Conectando São Tomé e Príncipe ao continente
Em sua oitava edição, N’GOLÁ, a bienal de São Tomé e Príncipe, quis conceber um conceito novo. A curadora, a holandesa historiadora da arte Renny Ramakers, criou um projeto para estreitar os laços entre o pequeno país insular no Oceano Atlântico e o continente africano. Com C& ela comenta como passou a integrar esse desafio e como trabalha intuitivamente para explorar o entremeio e a beleza no âmago de uma profunda transformação social.
Seg 19 Ago, 2019
Contemporary And: A primeira bienal de São Tomé e Príncipe (STP) foi iniciada por João Carlos Silva em 1995. Ele queria alavancar a cena artística do pequeno país para uma escala global. Na lista de artistas da edição atual não aparecem artistas nascidos ou que trabalhem em STP. Você poderia comentar essa decisão?
Renny Ramakers: Bem, três artistas de STP apresentaram seus trabalhos na N’GOLÁ, numa exposição curada pelo João Carlos Silva. Mas realmente, para esta edição, meu foco principal foi estreitar os laços entre o continente africano e esta pequena república africana no meio do Oceano Atlântico. Eu enxergo STP como um lugar entre espaços: ilhas outrora desabitadas, colonizadas pelos portugueses desde o fim do século 15 até 1974; um antigo posto de comércio de escravos e plantation colonial, construído pelos portugueses e por homens e mulheres arrancados do continente africano e ali forçados ao trabalho; um lugar cujo futuro será determinado pelos descendentes daqueles africanos escravizados. Ao fazer essas conexões, procurei por trabalhos que poderiam potencializar uma narrativa mais positiva e encorajadora que o que é dito habitualmente.
Convidei artistas da África Subsaariana para apresentarem trabalhos, realizarem performances, workshops e assim por diante. Todos os artistas envolvidos foram convidados a viajar para a ilha para a semana de abertura e entrar em contato com pessoas daqui, particularmente artistas, intelectuais e projetos de artistas.

Omar Victor Diop, Jean-Baptiste Belley, da série Diáspora, 2014-2016. Fotografia, 120 x 80 cm. Cortesia Galerie Magnin-A, Paris.
C&: Foi a oitava edição da bienal, mas a primeira vez que ela engloba arte visual, moda, arquitetura, música, gastronomia, tecnologia, artesanato e natureza – uma abordagem interdisciplinar. Qual seu objetivo com essa transformação? Quais eram os limites da estrutura anterior?
RR: Antes não existiam limites estruturais. Mas no decorrer da minha carreira como curadora tenho estado interessada em cruzar fronteiras entre disciplinas e misturar culturas e tenho procurado maneiras de envolver o público e interagir com os visitantes. Neste caso, as performances, workshops e eventos de música estavam em relação direta com os conteúdos da exposição e, frequentemente, também ao passado e presente de STP. Eu queria celebrar o poder e a beleza da arte e cultura da África.
Acredito que toda arte deve transgredir, quebrar barreiras e atravessar fronteiras. Também acredito no poder da participação e da interação e como isso pode contribuir para um futuro melhor. Acho que a beleza está no âmago de qualquer transformação social profunda e acredito que oportunidades e possibilidades são encontradas não apenas ao levar em conta uma perspectiva ou outra, mas ao explorar o entremeio.
C&: Você poderia explicar como você chegou ao projeto? Qual é sua conexão com a cena artística na África e a Diáspora?
RR: Há poucos anos fui convidada para reformular o centro cultural CACAU em São Tomé. Antes que nós [a empresa holandesa de design Droog] começássemos esse projeto, viajei a trabalho para a ilha. Logo depois fui convidada a participar do conselho de uma fundação que apoia a cultura de STP. Sua programação incluía a bienal, que não tinha sido organizada desde 2015 – tendo sido uma razão importante para isso a reforma no CACAU, que durou mais que o esperado. Propus escrever um conceito de um novo olhar sobre a bienal. Ele foi bem recebido e meu desafio se tornou experimentá-lo na oitava edição.
Fora isso sou uma recém-chegada à cena africana, mas ao longo dos anos vi muitas exposições, assim como li bastante sobre o assunto. No passado trabalhei na Cidade do Cabo e em Dakar, no entanto, esta foi a primeira vez que me envolvi diretamente com artistas do continente como curadora. Estou profundamente impressionada e inspirada pelo trabalho com esses artistas, por sua força visual e também pelo tratamento corajoso de temas complexos. Também estou feliz com a reação positiva de tantos artistas ao conceito da bienal.

Yves Sambu, Traditional [Tradicional], da série Vanitas, 2010-2017. Fotografia, 80x100cm.
C&: O texto da missão institucional afirma que a bienal aproxima “o Norte e o Sul Global e o resto do continente africano a fim de partilhar, colaborar, deixar-se inspirar e aprender um do outro”. Como você lida com a história deste lugar, sua posição nisso tudo e a criação de novas narrativas?
RR: Não sou especialista em história africana ou de STP, embora saiba das inúmeras correntezas históricas conectando STP ao continente africano, assim como à Europa, às Américas e a outras partes do mundo. E que essa é, em vários sentidos, uma história dolorosa e pesada. Ao mesmo tempo, tenho me tornado cautelosa com a narrativa que descreve a África exclusivamente como um lugar de tristeza e sofrimento: embora essa imagem possa se justificar pelas realidades diárias severas e o passado problemático, ela também fixa o continente num clichê de carência, impotência e falta de iniciativa.
Deparei-me com muitos artistas que queriam inaugurar um novo olhar sobre seu mundo através da beleza, poesia, ironia ou um senso de humor, sem negar a realidade diária. Foi inspirador ver como a beleza e a aparência visual podem ser relevantes e trazer significados profundos, e como moda, estilo e beleza podem ser veículos de dignidade e autorrealização, por vezes até mesmo com efeito curativo.
Meu processo curatorial é intuitivo. Embora eu comece com uma questão inicial clara, não procuro por um trabalho que caiba ou ilustre um conceito predefinido. A interação com a obra e a visão dos artistas é essencial. Cada trabalho me inspira a delinear e alimentar a narrativa. Com N’GOLÁ, os artistas e as obras que encontrei durante minha pesquisa me ensinaram muito.
Só para dar uns poucos exemplos: Yves Sambu, da República Democrática do Congo, encenou um tributo ao Rei Amador, um herói nacional de São Tomé e Príncipe, o qual liderou uma revolta de africanos escravizados em 1595. Sunny Dolat, do Quênia, preparou uma performance bem ambiciosa, In Their Finest Robes, The Children Shall Return [Em suas vestes mais requintadas, as crianças retornarão], que requeria a presença de todos os países do continente africano numa peça de vestuário. Para Sunny Dolat, o país através do qual passaram milhares de pessoas escravizadas torna-se “um palco para refletir sobre um momento, um recontar, relembrar e revisitar contemporâneos de uma das maiores tragédias da história da humanidade”. Todavia sua apresentação também remete à esperança, à beleza e ao orgulho, como ele afirma em seu significativo ensaio para o catálogo: “Rituais abrem uma porta para nós, uma geração de africanos que desejam um retorno às melhores e mais dignas versões de nós mesmos – trajados com nossas vestes mais requintadas.”
Bienal N’GOLÁ aconteceu de 26 de julho a 18 de agosto, com um festival de abertura nos dias 26, 27 e 28 de julho.
Renny Ramakers é um historiadora de arte de Amsterdã. É cofundadora e diretora da Droog, uma renomada iniciativa experimental de design na Holanda. Em 1993 ela e Gijs Bakker iniciaram a Droog como um antimanifesto; uma mentalidade de design prático com um toque humano que se opõe ao grande estilo e ao mundo do design focado na forma.
Entrevista por Theresa Sigmund.
Traduzido do inglês por Luiz Rangel.
http://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/ngola-connecting-sao-tome-and-principe-with-the-mainland/
http://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/ngola-connecting-sao-tome-and-principe-with-the-mainland/
0 comentários:
Postar um comentário