Heckenberger: Defender o Xingu e a Amazônia não é coisa de direita, nem de esquerda, “é uma coisa única, uma herança mundial”

Escavação do sambaqui fluvial Monte Castelo, no rio Guaporé, em Rondônia. Acervo Eduardo Neves.
As queimadas na Amazônia e o patrimônio arqueológico do Brasil em risco: “É o equivalente a se arrancar páginas de livros que ainda não foram lidos”.
por André Sampaio, de Washington
As queimadas na Amazônia dominaram as manchetes de jornais mundo afora e trouxeram à tona a maior crise internacional do governo Bolsonaro até agora, o que literalmente levou Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, à UTI.
O presidente Jair Bolsonaro fará o discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas no próximo dia 24, em Nova York, depois de ter sofrido críticas públicas (gravadas em vídeo) dos presidentes Emmanuel Macron e Sebastián Piñera, sob o olhar da chanceler alemã Angela Merkel.
A crise já repercutiu intensamente na política externa do País, principalmente no relacionamento com a França, que ameaçou deixar o acordo comercial da União Europeia com o Mercosul, um projeto que vem sendo negociado desde o governo Fernando Henrique Cardoso e agora depende da chancela de parlamentos europeus e sulamericanos.
Os altos índices de desmatamento, que segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), aumentaram 81% entre janeiro e julho em relação à média histórica, preocupam cientistas, ambientalistas, setores do agronegócio mas também arqueólogos, que desenvolvem seu trabalho na região e veem o patrimônio cultural do Brasil ameaçado.
O Viomundo conversou com Eduardo Góes Neves, arqueólogo e professor titular de Arqueologia Brasileira no MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo), e também com Michael Heckenberger, antropólogo, arqueólogo e professor no departamento de antropologia da Universidade da Flórida, com mais de 20 anos de pesquisa dedicados à região do alto Xingu, para entender como as queimadas podem prejudicar a pesquisa.
Neves, que trabalha desde os anos 1980 na Amazônia, defende a tese de que as populações indígenas que viviam na região antes da chegada dos europeus (de meados do século XVI ao início do XVII) promoveram mudanças significativas na configuração da floresta, e que, portanto, a floresta amazônica não deve ser enxergada apenas como um produto da natureza, mas também como resultado do manejo exercido por populações indígenas que ocupam a região desde ao menos 14 mil anos.
Em seu livro intitulado Arqueologia da Amazônia, ele usa o exemplo de que, durante a ditatura militar (1964-1985), o governo brasileiro dizia que a Amazônia era uma “terra sem gente para uma gente sem terra”, o que para o professor é uma falsa premissa.
Segundo Neves, a grande contribuição que a arqueologia pode trazer é mostrar que, de fato, a Amazônia sempre foi uma região densamente ocupada, desde o passado mais remoto.
“Temos identificado restos de plantas em nossas escavações que ilustram isso. Além do imenso potencial econômico que têm para o extrativismo, essas florestas são, portanto, patrimônio cultural, além de serem patrimônio natural”.
Neves afirma que a arqueologia está muito presente na vida dos ribeirinhos, índios e quilombolas que vivem sobre sítios arqueológicos e são os guardiões desses tesouros arqueológicos.
Segundo sua pesquisa, os locais onde estão os sítios são áreas onde se encontram os solos mais férteis, como nos locais de concentração de castanheiras, por exemplo, que foram formadas pela atividade humana no passado.

Área de lixeira, sítio Sol de Campinas do Acre, Vila Campinas, Acre. Foto Eduardo Neves.
“Nossas escavações têm mostrado que a castanha é consumida há cerca de 9.000 anos, o que apoia a hipótese de que a ampla distribuição de castanheiras e castanhais pela Amazônia pode ser explicada pelo manejo indígena”, revela.
Para criar uma relação com as comunidades que vivem em sítios arqueológicos, projetos de educação patrimonial foram criados como forma de promover a difusão do conhecimento arqueológico.
Segundo Neves, apesar das diferenças naturais que existem entre a expectativa de arqueólogos e comunitários, esta é a melhor maneira de preservar os sítios.
Ele acredita que a política de exploração irresponsável na Amazônia é “sem dúvida nenhuma” prejudicial à pesquisa arqueológica e também à economia do país.
“A destruição do patrimônio arqueológico é o equivalente a se arrancar páginas de livros que ainda não foram lidos e cujas narrativas jamais poderemos contribuir. O pior de tudo isso, no entanto, é que as estratégias de desenvolvimento baseadas no desmatamento descontrolado e queimadas não fazem sentido, nem do ponto de vista econômico. Elas geram algum dinheiro no curto prazo, mas os custos sociais e ambientais são muito maiores”, afirma.
Já Heckenberger, que trabalha na região do alto Xingu desde 1992, afirma que o desmatamento na região ocorre desde que iniciou sua pesquisa.
Conta que as florestas pelas quais passou para chegar às áreas indígenas agora já não existem mais.
“Desmatar é destruir os sítios arqueológicos dos ancestrais dos índios. A situação deles é super precária, o aquecimento global e o desmatamento geram uma situação muito grave para eles. Os conhecimentos indígenas nos ajudam a entender os registros arqueológicos. Esses sítios arqueológicos são dos ancestrais deles, a forma de aldeia, a cerâmica é a mesma de 500 anos atrás”, diz.
Uma pesquisa publicada na revista Science, conduzida por Heckenberger, sustenta que evidências arqueológicas e imagens de satélite mostram que uma rede de cerca de 19 assentamentos existiu na região do Alto Xingu entre 1.200 e 1.600.
O conjunto de assentamentos teria entre 2.500 e 5.000 habitantes e poderia ser comparado a pequenas cidades medievais ou da Grécia antiga.
O professor afirma que, infelizmente, existem pessoas que tendem a ignorar dados científicos.
“As pessoas acreditam na Ciência, vão ao dentista para tratar um problema, mas não acreditam em imagens de satélite que mostram o desmatamento na Amazônia. Os dados são abertos ao público. As pessoas podem contestá-los, mas não fazem uma crítica diante dos dados divulgados, simplesmente negam que eles existam ou que tenham relevância.”
DAQUI PARA FRENTE
Após as declarações de integrantes do governo Bolsonaro ao longo das últimas semanas, ficou claro para Neves que o governo federal não atuará com uma política de proteção ao meio ambiente.
“Recentemente, madeireiros em Rondônia queimaram veículos do IBAMA em protesto. O ministro Ricardo Salles viajou ao local para prestar apoio não aos funcionários a ele subordinados, mas aos madeireiros. Sua fala foi esclarecedora: ‘temos que cumprir a lei até que ela seja modificada’. A intenção do governo Bolsonaro é claramente flexibilizar — para usar um eufemismo — o licenciamento para enfraquecer a legislação de proteção ao meio ambiente e ao patrimônio cultural”.
Heckenberger acredita que a pauta de defesa do Xingu “não é de direita e nem de esquerda”: “Os irmãos Villas-Bôas foram indicados a dois prêmios Nobel. É importante as pessoas lembrarem que não foi um estrangeiro que falou da importância da preservação do Xingu. Foram os irmãos Villas Boas, Darcy Ribeiro, até o Roberto Marinho, que é de direita. Independentemente do espectro político, estão no mesmo time para proteger esse povo. É uma coisa única, é uma herança mundial”.
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