
O presente texto se propõe a colocar a Revolução Haitiana em seu devido lugar na História: o de principal revolução no período conhecido como Era das Revoluções (1789–1848), pois se trata de um processo revolucionário mais fiel aos princípios iluministas de igualdade e liberdade para todos do que a Revolução Francesa. Também viso demonstrar os embates entre os interesses econômicos do Império Francês e os ideais da Revolução Francesa e de que forma os debates em Paris sobre os direitos do cidadão e as mudanças políticas na França e São Domingos influenciaram na universalização ou restrição dos direitos humanos. Por fim, irei tratar das consequências socioeconômicas no Haiti da revolução e o legado da libertação dos negros escravizados.
Neste início do século XXI acreditamos que os direitos humanos sempre existiram e que não precisamos lutar para garanti-los ou pior: de que ninguém jamais restringirá tais direitos para um pequeno grupo. Todavia, os acontecimentos recentes no Brasil, e na Síria mostram que se quiser que os direitos humanos sejam mantidos e universalizados para mais pessoas é necessário ficar de guarda sempre. Por conta disto este artigo falará sobre como os negros haitianos conquistaram a liberdade através de muita luta que deixou a ilha de São Domingos em ruínas, pois eles preferiam a destruição do lugar em que viviam do que continuarem a serem tratados como meros objetos.
A colônia francesa de São Domingos era a joia do Império Francês, pois exportava cerca de um terço do açúcar produzido no continente americano. Entretanto, ao final do século XVIII São Domingos foi palco da única bem sucedida emancipação dos escravizados da História. A ousadia de tal ato, que a França e Estados Unidos foram incapazes de colocarem prática, fez com que o Haiti fosse isolado pelas nações da época para que não espalhasse a esperança de uma verdadeira libertação entre os escravizados da América e África.
A sociedade colonial da parte francesa da ilha de São Domingos, esta estava dividida entre França e Espanha, era legalmente divida em três grupos: brancos (estes eram subdivididos em as autoridades metropolitanas, os grandes proprietários e os pobres que trabalhavam no comércio e constituíam a classe média da sociedade de São Domingos), gens de couleur libres (pessoas de cor livres, ou seja, mestiços e negros livres com preponderância esmagadora dos primeiros) e os negros escravizados. Além destes havia os quilombolas que moravam na floresta e se mantinham a margem da sociedade colonial. Em termos de quantidade tais grupos estavam respectivamente seccionados em 40 mil, 30 mil e 500 mil pessoas, já que para os quilombolas não havia uma estimativa populacional. Em certos lugares de São Domingos como a região oeste e sul, as gens de couleur ultrapassavam os brancos em número de pessoas e riqueza. Por estarem em certas áreas da colônia francesa em menor quantidade e com menos riqueza que os mestiços, os brancos buscaram meios de aumentar ainda mais as restrições baseadas na cor da pele para diferenciá-los socialmente do grupo intermediário da sociedade. C.L.R. James no livro Os jacobinos negros fornece uma série de obrigações lançadas sobre as gens de couleur no intuito de criar animosidade entre estas e os negros escravizados para assim impedir que os dois grupos se unissem contra os brancos. Os mestiços e negros livres deveriam se unir à maréchaussée (cavalaria da polícia), uma organização que tinha dentre suas metas a de capturar escravos fugitivos e combater os quilombolas. Se para as “pessoas de cor livres” a situação e o tratamento dado pelos brancos era horrível, para os negros escravizados era inumano. Um viajante suíço ao passar pela ilha de São Domingos nos deixou o seguinte relato ao ver uma plantação de cana-de-açúcar:
Eram aproximadamente cem homens e mulheres de diferentes idades, todos ocupados em escavar valas em uma plantação de cana; a maioria deles estava nua ou coberta apenas por trapos. O sol brilhava com toda a força sobre suas cabeças; o suor rolava de todas as partes dos seus corpos; seus membros, dobrados pelo calor, fatigados pelo peso das picaretas e pela resistência do solo argiloso cozido sob o sol tropical, duro o bastante para quebrar as ferramentas, faziam um esforço excessivo para vencer qualquer obstáculo. Um silêncio lúgubre reinava. A exaustão estava estampada em cada face, e a hora do descanso não havia chegado ainda. O olho sem piedade do encarregado de patrulhar o grupo de escravos, e os capatazes armados de longos chicotes moviam-se periodicamente entre eles dando vergastadas cortantes naqueles que, esgotados pela fadiga, eram obrigados a descansa: homens ou mulheres, crianças ou velhos (GIROD-CHANTRANS, 1785, p. 137).
Além do tratamento dado aos escravizados na lavoura havia também o Código Negro, um edito promulgado pelo rei francês Luís XIV em 1685 que continha 60 artigos que ditavam regras como punição, liberdade, tempo de escravidão, obrigatoriedade de seguir o catolicismo e a proibição de judeus residirem nas colônias francesas. O código também determinava uma quantidade fixa de alimentos por dia, algo que não era seguido pelos senhores de escravos. Estes frequentemente torturavam suas vítimas e as táticas para infligir dor e sofrimento eram de uma criatividade demasiadamente humana. Quem oferece uma detalhada lista dos tipos de tortura impingidos aos negros é o arquivista e historiador francês Pierre de Vaissière, este no livro Saint-Domingue: la société et la vie créoles sous l’Ancien Régime (1629–1789) fala de inúmeros modos de mutilação e castigos e no parágrafo final de uma página ele diz:
Por fim, vêm às punições menos refinadas, mas cruéis: negros em gaiolas, barris, negros amarrados em cavalos, pés amarrados sob a barriga e as mãos sobre a cauda do cavalo; — punições inspiradas pelos instintos mais básicos: escravos obrigados a comer os próprios excrementos, beber a própria urina, lamber a saliva de seus companheiros; — finalmente, as torturas que imaginações desordenadas e delirantes podem conceber apenas: um colono que como um cachorro louco salta em seu preto, a morder e rasgar sua carne com gosto (DE VAISSIÈRE, 1909, p. 193–194).
No entanto, não se deve imaginar que os escravizados se mantinham passivos diante de tamanha desgraça. Eles fugiam quando tinham oportunidade, envenenavam a água de seus senhores, se suicidavam e em certos casos promoviam revoltas sangrentas que marcaram a história de São Domingos até a eclosão da Revolução Haitiana.
Os quilombolas representavam uma grande preocupação para as autoridades francesas de São Domingos, pois após experimentarem a liberdade eles só a abandonariam quando morressem. Assim, os quilombolas eram a maior oposição na ilha contra o sistema escravagista. Tanto é verdade que a maior revolta contra a opressão perpetrada pelos brancos foi encabeçada por um líder quilombola de nome François Mackandal. O plano dele era unir todos os negros e expulsar os brancos, para isto ele criou um credo em torno de si como forma de união dos escravizados sob uma mesma causa e de convencê-los que a vitória era algo certo. Para atingir o objetivo traçado, Mackandal saía com seus subalternos para queimar fazendas e trazer mais negros para a causa dele. Tal prática durou seis anos até que o chefe quilombola elaborou um plano ousado: envenenar a água de todas as casas de Le Cap, capital da província, em um único dia. Quando os brancos estivessem em agonia, Mackandal e seus homens divididos em pequenos grupos desceriam as colinas perto da cidade e massacrariam todos os brancos. No entanto, em um dia perto da data marcada para o grande ataque Mackandal ficou bêbado e foi capturado pelas autoridades graças a alguém de seu grupo que o traiu. Depois de capturado foi queimado vivo publicamente para dissuadir qualquer futura rebelião. Entretanto, as faíscas saídas da fogueira que o corpo de Mackandal se tornou voaram bem alto e atravessaram o tempo até que caíram sob São Domingos em 22 de agosto de 1791, mas antes disto tochas iluminavam uma área que séculos depois passou a ser chamada de cidade luz.
A França nas últimas décadas do século XVIII se encontrava numa situação moribunda que só não piorava por ter São Domingos como colônia. Guerras sucessivas, ideias iluministas, fome em decorrência das más colheitas, manutenção de privilégios para a parte mais rica da sociedade francesa e a não realização de uma revolução industrial foram alguns dos múltiplos fatores que provocaram o terremoto revolucionário que começou em 1789. Entretanto, não irei falar da Revolução Francesa em si, mas de que forma esta influenciou a que ocorreu no atual Haiti e vice-versa. Em 1788 foi criada uma associação chamada Société des Amis des Noirs (Sociedade dos Amigos dos Negros em português). Esta visava o fim não só do tráfico de escravos como também a supressão da instituição da escravidão. Quando a Revolução começou, a Amis des Noirs viu em tal situação uma oportunidade para atingir seus objetivos, mas suas ideias e a dos iluministas franceses sofreram forte resistência por parte da burguesia marítima que lucrava imensamente com o tráfico de pessoas. A convocação dos Estados Gerais em 1789 provocou um aumento nos cahiers de doléances (demandas por mudanças em português) que eram listas de queixas realizadas por cada paróquia francesa mais os três estados. A Amis des Noirs viu nos cahiers uma oportunidade para abolir a escravidão, mas naquele momento a questão da limitação do poder real e o fim dos privilégios de classe eram muito mais importantes para os parisienses do que a aplicação da mesma ideia para todo o gênero humano. Assim, o lema da Revolução Francesa: Liberté, Égalité, Fraternité (liberdade, igualdade e fraternidade em português) encontrou seu limite quando esbarrou nos interesses econômicos da França. E isto se refletiu na quantidade de cahiers que tinham como tema o fim do tráfico de escravos e da abolição da escravidão, pois:
Em todos os cahiers do terceiro estado francês, a soma total das demandas por “atenção” à escravidão e ao tráfico de escravos foi de um décimo ou um quinto de todas as que pediam alguma ação contra a servidão. No plano paroquial, a escravidão simplesmente não se revelou de forma alguma como objeto de preocupação. Ela foi classificada apenas na 419ª posição da lista das demandas da nobreza e na 533ª das demandas do terceiro estado (DRESCHER, 2011, p. 214).
Esta citação é importante para se entender que os direitos humanos são acima de tudo históricos, ou seja, emergem da luta entre vários grupos humanos para só então um grande contingente ver certos direitos como naturais e inalienáveis.
Com o estabelecimento dos Estados Gerais a elite branca de São Domingos enviou delegados para Paris com o objetivo de conseguirem assentos na Assembleia Nacional e assim amealharem mais poder. Entretanto, se eles obtiveram alguma vitória política em Paris esta só pode ser adjetivada como pírrica, pois ao irem até a capital francesa para reivindicar uma igualdade jurídica com a França eles atravessaram a divisão entre os dois lados do sistema colonial que conservava a instituição da escravidão. Assim, ao buscarem mais poder político na nova conjuntura revolucionária os latifundiários de São Domingos minaram o próprio poder, pois o número de representantes deveria ser proporcional à quantidade de pessoas em cada lugar. Deste modo, se todas as pessoas livres fossem consideradas cidadãs, os mestiços teriam de ter os mesmos direitos dos brancos algo que estes não queriam, mas haveria mais representantes de São Domingos em Paris. Se somente os brancos fossem tidos como cidadãos, então menor seria o número de assentos. Enquanto os brancos se viam em um impasse, os mestiços que moravam em Paris se articulavam através da Société des Colons Américains (Sociedade dos Colonos Americanos em português) e exigiam que a cidadania fosse expandida para os mestiços. No entanto, o grupo que primeiro ganhou vitórias foi o dos brancos com o decreto de 8 de março de 1790 que reafirmava a escravidão, criminalizava a incitação da desordem nas colônias e a oposição a qualquer tipo de comércio colonial. Todavia, o decreto tinha um caráter ambíguo, pois afirmava que pessoas livres maiores de 25 anos poderiam votar. Ora, para os mestiços os únicos em São Domingos que não eram categorizados como pessoas eram os escravos, pois estes eram tidos como propriedade. O fato do decreto se referir à categoria de pessoas impeliu os mestiços a lutarem para conquistar os mesmos direitos dos brancos. Em setembro de 1790, a delegação dos mestiços pediu apoio ao Clube Massiac, representante dos interesses dos grandes fazendeiros brancos de São Domingos em Paris, para desracializar a cidadania e assim estender esta para os mestiços. Entretanto, o Clube Massiac rejeitou a proposta e um dos líderes da Société des Colons, Vincent Ogé voltou para São Domingos no ano seguinte com o intuito de iniciar uma revolta para conquistar através das armas o que não se conseguiu com a diplomacia. Quando Ogé chegou à ilha não incitou os milhares de mestiços contra o governo local em nome da igualdade jurídica, mas fez discursos para as autoridades de Le Cap questionando-as se iam ou não seguir o decreto de 8 de março. Sem resultado o líder dos mestiços deixou os discursos e deu iniciou a luta armada com apoio de algumas centenas de homens, mas no final ele foi derrotado e capturado. O que se segue agora se trata de uma descrição do suplício de Vincent Ogé e seus soldados:
Os brancos torturaram Ogé e seus companheiros em um julgamento que durou dois meses. Condenaram-nos a ser conduzidos pelo carrasco até a porta principal da igreja com a cabeça descoberta, amarrados por uma corda em volta do pescoço e dos joelhos, com velas de cera nas mãos, a confessar seus crimes e implorar perdão; em seguida, seriam levados à praça de armas, onde teriam seus braços, pernas e cotovelos quebrados em um patíbulo, depois do que seriam amarrados em rodas, com seus rostos voltados para o céu, permanecendo assim por tanto tempo quanto Deus quisesse mantê-los vivos. Seriam decapitados e os seus bens e propriedades confiscados. A segregação racial seria mantida, até mesmo na morte. A sentença determinava que seriam [sic] executados no lado oposto da praça àquele onde eram supliciados os brancos (JAMES, 2010, p. 81).
A notícia da terrível morte de Ogé e de seus companheiros chegou a uma Paris tomada pelo fervor revolucionário, pois o processo revolucionário havia estagnado onde queria a burguesia. A população se reuniu no Campo de Marte e exigiu a deposição de Luís XVI e o estabelecimento de uma república, mas a Guarda Nacional liderada por Lafayette disparou contra a multidão arrefecendo o ímpeto revolucionário. Todavia, más decisões da família real francesa e acontecimentos em São Domingos possibilitaram que o processo revolucionário avançasse tanto na ilha quanto na França avançassem.
O marco temporal da Revolução Haitiana é o dia 22 de agosto de 1791 quando Dutty Boukman, alto-sacerdote do vodu, incitou os escravos a massacrarem todos os brancos e tomarem São Domingos para si. A destruição que se seguiu foi apocalíptica: fazendas em ruínas, plantações de cana-de-açúcar queimadas, mulheres brancas estupradas e as cabeças dos latifundiários mortos espetadas em estandartes. Diante da ameaça de total extermínio os latifundiários brancos de São Domingos e a burguesia marítima com medo de perder a mais rica colônia francesa concederam direitos iguais para as gens de couleur em troca de apoio para suprimir os escravos rebelados. No entanto, esta proposta de acordo entre os brancos e mestiços ricos enfureceu os brancos pobres que por conta do ódio racial odiavam o fato das gens de couleur estarem numa condição melhor que eles. O que se seguiu foi um sangrento conflito que só encontrou uma trégua quando os deputados franceses com temor de ver a joia da França nas mãos de escravos e ter de enviar um exército para São Domingos, que faria falta na luta contra as potências europeias, concederam direitos iguais para a gens de couleur. A partir daí os mestiços e os brancos ricos se uniram com a meta de esmagar os negros revolucionários, mas estes sob a liderança de Toussaint L’Ouverture resistiram e começaram a vencer várias batalhas imbuídos do seguinte ideal: liberdade para todos. A invasão de São Domingos por tropas britânicas, que tinham como objetivo tomar a ilha para si e deste modo privar a França da riqueza do comércio de açúcar e assim esmagar a revolução, mudou a sorte de Toussaint e todos os negros da então colônia francesa. A ameaça britânica, o estopim de uma revolta dos brancos ricos contrarrevolucionários e as contínuas vitórias dos escravos fez com que Sonthonax e Laveaux, comandantes das tropas da França em São Domingos, proclamassem a abolição da escravatura em agosto de 1793. Com este ato Toussaint e seu exército expulsou os britânicos, destruiu a revolta dos realistas e assim garantiu que uma grande quantidade de gêneros alimentícios e dinheiro afluíssem para França o que possibilitou contínuas vitórias contra as potências europeias.
Quando as notícias de que um comandante negro havia conquistado a liberdade para todos e de que salvara a mais rica colônia francesa das mãos dos britânicos chegaram à França as pessoas começaram a perceber que deveriam se espelhar no exemplo dos negros e aumentar os ganhos da revolução. Assim, a atitude dos negros de São Domingos, para os quais era melhor a morte do que continuar numa condição sub-humana, inspirou os franceses a lutarem para destruir tudo o que representava o Ancien Régime. Ironicamente quem reacendeu a fagulha revolucionária francesa foi Luís XVI que juntamente com sua família tentou fugir da França em junho de 1791 para se unir a contrarrevolução. Os girondinos disseram para o povo que o rei havia sido raptado, mas quando a carruagem real chegou a Paris a população enfurecida tentou linchar toda a família real que só foi salva pela Guarda Nacional que decidiu prendê-la para ser julgada por trair o país e a revolução. A partir deste ponto a população que antes acreditava na ingenuidade do rei passou a odiá-lo; a radicalização do povo destruiu o poder dos girondinos. A Assembleia foi substituída pela Convenção Nacional comandada pelos jacobinos que desejavam aprofundar a revolução e que condenaram a família real à morte na guilhotina. Com isto o povo francês começou a importar-se com a vida dos negros escravizados de São Domingos de modo que em fevereiro de 1794 foi proclamada a abolição da escravidão na França e em suas colônias. A monarquia foi abolida e em seu lugar surgiu a Primeira República Francesa. Toussaint acabou com o banho de sangue e fez com que os negros voltassem ao trabalho nas plantações de cana-de-açúcar com os brancos que jurassem lealdade a república, pois para ele esta era a única forma de São Domingos voltar a ser rica e próspera. Tal atitude desagradou os negros que desejavam se vingar de todos os brancos da ilha, mas a força de Toussaint impediu que estourasse um novo conflito entre negros e brancos. Todavia, os mulatos decidiram tomar para si São Domingos e se separarem da França, mas Toussaint por sua lealdade a França esmagou a revolta rapidamente.
A postura de Toussaint de não declarar a independência de São Domingos mudou drasticamente quando da ascensão ao poder de Napoleão Bonaparte, pois este buscava a restauração do sistema escravista nas colônias francesas. Enquanto o então primeiro-cônsul francês preparava a expedição para derrotar Toussaint, este minava a confiança que os negros haviam nele depositado. O sistema de produção agrícola em São Domingos, o plantation, não foi modificado ou substituído por outro de modo que os negros continuaram trabalhando para os brancos. As sevícias de antes foram abolidas, mas os libertos não aceitavam ter de trabalhar para os antigos senhores. A tensão entre estes e os negros aumentou pelo fato de L’Ouverture ter se aproximado dos primeiros e se afastado dos segundos. Ele passava horas conversando com os brancos ricos e na companhia de mulheres da mesma etnia daqueles. Para piorar Toussaint nada explicava sobre seus atos governamentais, pois apesar de tudo que fez ainda tinha a mentalidade escrava que acreditava que não deveriam pedir explicações ou questionar seus atos, apenas obedecer. As tropas de Moïse, sobrinho de Toussaint, iniciaram uma insurreição para massacrar todos os brancos de São Domingos, mas foram derrotadas. No entanto, a vitória de L’Ouverture representou para ele o começo do fim, pois ele editou:
(…) uma série de leis que superavam em severidade todas as outras já decretadas. Introduziu um sistema rígido de passaportes para todas as classes da população. Confinou os trabalhadores em suas plantações mais restritamente do que nunca e decretou que os gerentes e capatazes seriam responsáveis por essa lei, sob pena de prisão. Qualquer pessoa que fomentasse a desordem seria condenada a seis meses de trabalhos forçados, com um peso atado à perna por meio de uma corrente. Proibiu os soldados de visitarem qualquer plantação, exceto para verem seus pais ou suas mães e, assim mesmo, por um período limitado; ele passou a temer o contato entre o exército revolucionário e o povo, sinal infalível da degeneração revolucionária (Ibid., p. 255).
A moral de suas tropas caiu num momento em que o exército de Bonaparte comandado pelo cunhado deste, Charles Leclerc e Visconde de Rochambeau, aportava em São Domingos com o intuito de restabelecer a escravidão atendendo aos interesses da burguesia marítima francesa.
Os soldados de L’Ouverture conquistaram importantes vitórias, enquanto que o exército dos mestiços se viu sem seu mais importante comandante militar, Rigaud, que havia sido preso e mandado para a França. Este acontecimento representou uma oportunidade de ouro para Toussaint, pois ele poderia unir os negros com o exército das gens de couleur e assim derrotar os franceses. Todavia, ele acreditava que Leclerc agira contra as ordens de Napoleão e enviou uma carta para este dizendo que se retiraria da vida militar e política se outro general fosse para São Domingos com a meta de estabelecer uma nova relação diplomática com a ilha. A fidelidade de Toussaint a Revolução Francesa foi o que um dia lhe tornou o homem mais poderoso de uma ilha caribenha, mas naquele momento de fim do ímpeto revolucionário e ressurgimento da monarquia em novos moldes lhe retirou não só o poder, mas a vida. O outrora líder negro foi agrilhoado e levado para a França onde morreu por conta das péssimas condições do cárcere. Nenhum dos soldados negros buscou salvá-lo por dois motivos principais: não entendiam o motivo de Toussaint combater os brancos com os quais antes havia buscado a conciliação e não sabiam do plano de Leclerc de restaurar a escravidão na ilha. Isto mudou quando notícias de que o sistema escravagista havia sido retomado em Guadalupe, colônia francesa, chegaram a São Domingos. Uma luta encarniçada começou entre Leclerc e Dessalines, substituto de Toussaint no comando do exército revolucionário negro, que auxiliado por um exército sem medo da morte e por causa de fatores como fortes chuvas, doenças tropicais e conhecimento profundo do território conseguiu vencer o primeiro que morreu de febre amarela. Rochambeau substituiu Leclerc no comando das tropas francesas e travou uma guerra de extermínio contra os negros e os mestiços. A união entre estes dois grupos mais o uso de táticas de guerrilha desbaratou o exército francês que se rendeu e tive de se render aos britânicos para não serem massacrados pelos soldados de Dessalines. Este proclamou a independência da nova nação batizada de Haiti e se proclamou imperador em 1804, ou seja, no mesmo em que Napoleão repetiu tal ato. A bem-sucedida revolução de escravos em São Domingos obrigou a Inglaterra, temerosa de perder suas colônias ultramarinas, a se tornar a maior defensora do fim do comércio de pessoas escravizadas quando antes ocorria justamente o inverso. O perigo de uma “haitinização”, medo de que os escravos negros de outras partes da América massacrassem todos os brancos, persistiu durante todo o século XIX e inspirou a Revolta dos Malês que ocorreu em Salvador, capital da então província da Bahia em 1835. A revolução também trouxe a questão da escravidão para o centro da política norte-americana que só foi abolida durante a Guerra de Secessão (1861–1865).
Os haitianos pagaram muito caro por terem avançado para um ponto que os movimentos de independência no continente americano e a Revolução Francesa não alcançaram: emancipar os escravos e suprimir a desigualdade baseada na cor da pele. As grandes potências do mundo se uniram para impedir que o novo país prosperasse e influenciasse a mentalidade de todos que se viam na condição de escravo. Assim, o Haiti sofreu intenso embargo econômico e as relações comerciais e diplomáticas foram suspensas. Diante de tamanho estrangulamento econômico o Haiti se viu forçado a pagar uma indenização para a França reconhecer sua independência no valor exorbitante de 150 milhões de francos. Para obter tal montante o Haiti teve de pedir empréstimos para bancos franceses e britânicos o que o fez cair em um novo tipo de escravidão agora baseada na dívida de uma nação inteira. Os governantes haitianos que se sucederam no poder mantiveram o sistema de plantation e continuaram subservientes aos interesses das empresas estrangeiras. No século XX o Haiti foi ocupado pelos Estados Unidos entre 1915 e 1934 e durante a Guerra Fria se viu comandada por ditadores.
A Revolução Haitiana insuflou de fúria revolucionária a versão francesa quando esta se encontrava letárgica e trouxe para o centro dos debates a questão da escravidão. Ter avançado para além do ponto que outras nações não ousaram ultrapassar na questão dos direitos humanos custou aos haitianos seu futuro de prosperidade. Neste início do século XXI o Haiti se encontra entre os países mais pobres do mundo por um dia ter colocado a liberdade acima de tudo e ter tido a audácia de emancipar pessoas que antes sequer eram consideradas como membros da espécie humana.
Texto escrito por Mário Pereira Gomes
Bibliografia:
Livros:
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
DE VASSIÈRE, Pierre. Saint-Domingue: la société et la vie créoles sous l’Ancien Régime (1629–1789). Paris, Perrin et Cie, 1909.
DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
FLORENZANO, Modesto. As revoluções burguesas. São Paulo: Brasiliense, 1981.
GIROD-CHANTRANS, Justin. Voyage d’un Suisse dans différentes colonies d’Amérique pendant la dernière guerre,: avec une table d’observations météorologiques faites à Saint-Domingue. Société typographique, Neuchâtel, 1785.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: 1789–1848. 25.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a Revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010.
Sites:
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html
O que faz do Haiti um país de crises ininterruptas? Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2016/10/13/O-que-faz-do-Haiti-um-pa%C3%ADs-de-crises-ininterruptas
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