17 de dez. de 2019

A negra palavra de Solano Trindade. - Editor - UM RESGATE IMPORTANTÍSSIMO.

Segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

A negra palavra de Solano Trindade

Imagem: Reprodução / Catraca Livre

Por Marco Aurélio da Conceição Correa

Eu canto aos Palmares
odiando aos opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada
contra todas as tiranias


Ser preto no Brasil incomoda. Incomoda os racistas que não assumem seu racismo. Incomoda os progressistas que não entendem seu racismo. Incomoda os negros que sofrem só pela cor de sua pele. Porém, o incômodo é o primeiro passo para a inconformação que resulta na transformação de uma realidade. É o incômodo de sentir o racismo na pele que resulta na sua constatação em um país de racismo, sem racistas confessos. E após a constatação do histórico racismo estrutural à brasileira que se dá a mudança. Mas a mudança de uns pode significar o incômodo de pequenas parcelas brasileiras que vivem no conforto de seus privilégios históricos. É dentro desse contexto que encontramos na peça Negra Palavra: Solano Trindade uma afronta ao racismo.

Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência

De 18/10 a 10/11 no SESC Tijuca no Rio de Janeiro, 10 atores negros trazem à vida novamente Solano Trindade – o poeta do povo. Com uma parceria entre o Coletivo Preto e a Companhia de Teatro Íntimo a peça encena as mais variadas poesias de Solano de maneira espetacular, passando pelos seus escritos sobre as memórias da infância, a ancestralidade das matrizes africanas, a ludicidade da cultura popular do maracatu, a intimidade do amor e a potência de sua emancipação política. A poligamia dos poemas personificados pela peça representa a dimensão da trajetória de Solano Trindade como  o poeta, ator, pintor militante e teatrólogo por mais de três décadas por diversos estados brasileiros.

Negra Palavra é mais uma peça que compõe o ascendente cenário de espetáculos negros que vem compondo o Rio de Janeiro nos últimos anos. Como a maioria das peças irmãs, Negra Palavra vem esgotando e lotando os principais teatros cariocas, reafirmando a existência de um teatro negro, como nos moldes de outrora do Teatro Experimental do Negro concebido por Abdias do Nascimento, como o próprio Teatro Popular Brasileiro criado por Solano Trindade.

A atual ascendência do teatro negro é um resultado do árduo trabalho diversos de profissionais negros. O teatro negro é um reflexo do movimento de emancipação política e estética que o cenário brasileiro tem vivido dentro dos últimos anos. E tem ganhado cada vez mais repercussão conforme que o mercado está descobrindo o potencial do povo negro. E isso é positivo, pois é um passo para maiores conquistas, como o poder político, sobretudo.

Mas esse sucesso incomoda. Racializar um espaço destinado historicamente para elites – intelectuais e econômicas – incomoda. O dramaturgo Rodrigo França atesta precisamos discutir esse teatro branco do Rio de Janeiro, que se coloca como universal. Racializar o teatro não é apenas incluir profissionais negros no palco, mas sim repensar essas estruturas que não se limitam ao contexto do Rio, mas sim vão nos alicerces da sociedade brasileira. Racializar é pensar o branco como mais uma raça e etnia, num contexto sócio-político, refutando que o que representa menos estatisticamente, no sentido demográfico, não pode ser considerado universal e representativo. O particular, com a experiência violenta do racismo, se torna universal.

Na proposta do teatro íntimo os atores direcionam a sua performance a um espectador específico, declamando no papel, ou interagindo em meio as poltronas. A intimidade de um olhar fixo pode causar incômodo, mas é uma reação proposital, pois é um espanto, uma surpresa positiva, ter atores negros exaltando a beleza e a riqueza negra na intimidade do teatro. Mas o incomodo se torna um afago, um acalento preciso contido na arte e na cultura que abraçam aqueles que mais precisam.

Historicamente encontramos as belas artes no ocidente associadas a uma ideia de superioridade, inteligência e poder, se distanciando assim de uma característica popular. Na ilustração moderna, “a criação de uma estética científica, reflexiva — superficial e não-autêntica do ponto de vista do ser humano/emocional —  estabelece uma quase-separação entre uma forma de arte elitista e uma “popular”” (ANI, 1994, p. 206). Assim, a predominância do “modo analítico na experiência Européia quase eliminou a sensibilidade para a beleza imediatamente perceptível e sua definição. É a convicção Européia que uma experiência de arte deva ser difícil; essa profundidade só é compreendida através da luta intelectual” (ANI, 1994, p. 205)[1]. Então, o teatro difícil, inalcançável, intangível seria assim recompensador na tentativa de alcançar um estado superior de consciência. Podemos encarar aqui essa dificuldade tanto no parâmetro científico do intelectual, vanguardista na crítica política, do luxo no campo econômico e do transcendente no campo da religiosidade. 

Há poetas que só fazem versos de amor
Há poetas herméticos e concretistas
enquanto se fabricam
bombas atômicas e de hidrogênio
enquanto se preparam exércitos para guerra
enquanto a fome estiola os povos…

Dentro destes paradigmas o critério de verdade que identifica um teatro como “verdadeiro” ou superior acaba restrito por aqueles de detém o poder, podendo ser o científico, o econômico, o político, ou o religioso. Então num contexto de hierarquia branca, é o crítico de teatro, o militante popular, o proprietário de teatros, e o detentor da moralidade que atesta o que é bom ou não. 

“Esta tentativa, por parte dos Europeus, de refletir sobre a natureza da beleza se espalha em sua cultura experimentada, e uma conseqüência adicional é a intelectualização da experiência artística. Na cultura Européia, “arte” se torna o domínio da elite intelectual, porque são eles (na tradição do Simpósio de Platão e da Poética de Aristóteles) que determinam os critérios de sua perfeição; São eles que dizem o que seus atributos devem e não devem ser. O participante comum na cultura não tem acesso, nem é considerado capaz de apreciar arte “verdadeira.” O que ele aprecia não é considerado “arte;” Nem é “belo.” Novamente, retornamos às definições Platônicas e encontramos o precedente para uma estética racionalista. Pois “beleza,” bem como o “bom,” é identificado com o “verdadeiro.” Todos são apreendidos pelo mesmo método. A posição relegada para a experiência emocional é baixa. É a “razão” que triunfa” (ANI, 1994, p. 202).

O teatro negro então vem como ruptura a estas concepções não só por mera representatividade, mas sim para romper com os padrões estéticos e políticos do teatro ocidental e assim repensar uma linguagem teatral que contemple em melhor forma a vastidão da experiência negra. Enquanto “as “belas artes” no Ocidente tendem a se tornar meramente exercícios intelectuais” (ANI, 1994, p. 202), este movimento artístico negro, que além do teatro encontra semelhantes no cinema, na literatura, na música dentre outros, busca experimentar outros sentidos de mundo na sua teatralidade, reafirmando o popular na arte. “No entanto, para a maioria das pessoas é o sensualmente imediato e não o intelectualmente mediado que dá prazer, que evoca uma resposta emocional”(ANI, 1994, p. 202). Não que o teatro negro não possua um caráter intelectual, mas a produção de conhecimento da população negra, maioria demograficamente no Brasil, está calcado em outros parâmetros e sentidos. Devido a dominação branca no que tange ao reconhecimento do saber, a organicidade é um papel fundamental para se pensar a intelectualidade negra. Subvertendo a ideia de um intelectual ilustrado distante, o teatro negro dramatiza a experiência negra no campo do sentir, dentro de todos os aspectos dos sentidos humanos, fugindo da sociedade em que vivemos do império das imagens.
http://www.justificando.com/2019/12/16/a-negra-palavra-de-solano-trindade/

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111 anos de Solano Trindade, o poeta do povo e pai da poesia negra brasileira.

Filho do sapateiro Manoel Abílio e da doméstica Emerenciana Quituteira, Francisco Solano Trindade nasceu em 24 de julho de 1908, no bairro de São José, em Recife/PE. Sua trajetória foi marcada pela valorização da estética negra e da difusão da cultura afro-brasileira.
Desde cedo, Solano Trindade estabeleceu o contato com a cultura e o folclore brasileiros. Levado pelas mãos do pai que, nos dias de folga dançava Pastoril e Bumba-meu-boi nas ruas do Recife. E a pedido da mãe, analfabeta, lia novelas, literatura de cordel e poesia romântica, que ambos apreciavam.
No final da década de 1920, Solano tornou-se protestante, chegando a ser diácono presbiteriano. Nesta mesma época começou a publicar seus primeiros poemas.
Na década seguinte foi um dos organizadores e idealizadores do I Congresso Afro-Brasileiro, realizado em 1934 na cidade de Recife, e do II Congresso Afro-Brasileiro realizado em Salvador, em 1937.
Ainda em Recife fundou com o pintor primitivista Barros Mulato e o escritor Vicente Lima, a Frente Negra Pernambucana e o Centro Cultural Afro-Brasileiro para divulgação das obras dos intelectuais e artistas negros.
No início da década de 40, o poeta segue para Belo Horizonte e depois para o Rio Grande do Sul, onde funda um grupo de arte popular em Pelotas. Pouco tempo depois, volta ao Recife e finalmente segue para a cidade do Rio de Janeiro, onde fixa residência em 1942. Na então Capital Federal, Solano publicou o seu livro “Poemas de uma Vida Simples” em 1944.
Ainda em 1944, Solano prestigiou o primeiro concerto da Orquestra Afro-Brasileira, do amigo e maestro Abigail Moura e fundou, com Haroldo Costa, o Teatro Folclórico Brasileiro. No ano seguinte, ao lado do amigo Abdias do Nascimento, constituíram o Comitê Democrático Afro-brasileiro, que se estabeleceu como o braço político do Teatro Experimental do Negro – TEN, liderado por Abdias. 
Seis anos mais tarde, ao lado de sua esposa Margarida e o sociólogo Edison Carneiro, inaugura o Teatro Popular Brasileiro, que contava com um elenco formado por domésticas, operários e estudantes. Os espetáculos de canto e dança apresentados pelo TPB, que tinham como temática e referência algumas das principais manifestações culturais brasileiras, como o bumba-meu-boi, os caboclinhos, o coco e a capoeira, foram levados a vários países da Europa.
Em finais da década de cinquenta, Solano resolve fixar as atividades do Teatro Popular Brasileiro na cidade de São Paulo, na tentativa de aproveitar a intensa vida cultural da cidade. Nessa expectativa, após a volta de sua viagem internacional, muda-se para a cidade de Embu, localizada na grande São Paulo, onde lança o seu livro “Cantares do Meu Povo”. Entre 1961 e 1970, Solano viveu em Embu das Artes. Juntamente com Claudionor Assis Dias, Tadakio Sakai e Cássio M’Boy, transformou o município em um verdadeiro centro cultural, para onde foram diversos artistas que passaram a viver de arte. Na cidade, o TPB viveu a sua melhor fase, sendo que as apresentações do grupo eram sempre muito concorridas.
Solano foi o grande criador da poesia “assumidamente negra”, segundo muitos críticos. Os livros lançados por ele foram: “Poemas de uma Vida Simples”, 1944, “Seis Tempos de Poesia”, 1958 e “Cantares ao meu Povo”, 1961. Como ator, participou dos filmes “Agulha no Palheiro”, 1955, “Mistérios da Ilha de Vênus”, 1960 e “O Santo Milagroso”, 1966. Trabalhou também como artista plástico, pintando quadros a óleo, sendo que um quadro do artista hoje faz parte do acervo do Museu Afro Brasil.
Doente e cansado, Solano Trindade deixa Embu para residir em São Paulo. Termina seus dias pobre e esquecido numa clínica no Rio de Janeiro, onde faleceu em 1974, vítima de pneumonia.
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