Onde era monocultura de cacau, os Tupinambá de Olivença plantam produtos orgânicos
Em pouco mais de quinze anos de luta, os indígenas da Serra do Padeiro resgataram área ocupada por cerca de 87 fazendas; as terras na Bahia foram usurpadas por latifundiários ao longo do século 20 e hoje se tornam produtivas novamente, o que fortalece a comunidade
Por Priscilla Arroyo
Os Tupinambá têm como guia os espíritos vivos que habitam as florestas, denominados “encantados”. Somente quando receberam autorização desses aliados, os indígenas da Serra do Padeiro, uma das aldeias da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia, iniciaram a retomada do seu território ancestral. Eles foram espremidos por latifundiários que, desde o fim do século 19, usurparam grandes áreas com cultivo de cacau para transformarem os espaços em pastos ou monoculturas. Em 2004, começaram a lutar para reaver suas terras.
No mesmo ano, iniciaram o processo de demarcação, ainda não finalizado. A batalha resultou na recuperação de mais de 87 fazendas. Esses quinze anos de luta foram marcados por diversas formas de violência de capangas e da polícia.
A reconquista de grande parte da TI de 47 mil hectares, onde moram cerca de 4.700 indígenas, foi documentada pela antropóloga Daniela Fernandes Alarcon em sua dissertação de mestrado. O trabalho defendido em 2013 na Universidade de Brasília (UnB) deu origem ao livro “O Retorno da Terra“, lançado em novembro pela editora Elefante.
“É um romance no qual a terra é a personagem principal”, afirmou Daniela durante o lançamento de sua obra em São Paulo, na livraria Tapera Taperá. “Quem está na linha de frente do Brasil hoje são os indígenas e os quilombolas. Temos muito a aprender com eles no quesito resistência”.
Quem teve a ideia de a terra ser a protagonista da história foi Glicéria Jesus da Silva, uma das principais líderes femininas da aldeia e autora do prefácio do livro. Ao lado de Daniela, a indígena de 37 anos reiterou que a ação dos Tupinambá vai além do objetivo de garantir a continuidade de seu povo e, portanto, da sua cultura: “Lutamos pela sobrevivência dos encantados, do sagrado. Isso depende da preservação do território”.
Como irmã do cacique Rosivaldo Ferreira da Silva, conhecido como Babau, uma de suas principais atividades é comunicar ao não indígenas os abusos cometidos contra o seu povo. Essa visibilidade a marcou como um dos principais alvos durante o processo de recuperação das terras.
POLICIAIS FEDERAIS DEFENDIAM LATIFUNDIÁRIOS
Uma das fases mais violentas do processo de retomada começou em 2008, quando em meio à operação “Terra Firme”, a Polícia Federal (PF) fez diversas investidas truculentas na TI Tupinambá de Olivença – algumas com base em mandatos de reintegração de posse ou outros instrumentos dessa natureza; outras foram ilegais. Era rotina os agentes entrarem nas terras à paisana, muitas vezes no meio da madrugada, para defender os latifundiários dos processos de reintegração de posse.
Em junho de 2010, Glicéria foi presa com seu filho Erúthawã, à época com dois meses de idade, na pista de pouso do aeroporto de Ilhéus, mesmo sem o mandato apontar por quais delitos estava sendo acusada. Ela foi levada quando voltava de uma reunião com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na qual denunciou a violência da PF contra o seu povo. Ficou mais de dois meses privada da liberdade.
O encarceramento de indígenas, em especial de lideranças, era um das estratégias utilizadas pela PF para esmorecer o movimento de recuperação territorial. O cacique Babau foi preso duas vezes, em 2008, 2010, 2014 e 2016. Na primeira vez, ficou dois dias trancado; na segunda, mais de cinco meses, acusado de ter danificado uma viatura da PF e tentado manter em cárcere privado quatro policiais. Dez dias após a segunda detenção, foram presos seus dois irmãos: Givaldo Jesus da Silva e José Aelson Jesus da Silva.
“A prisão constituiu uma tentativa de criar condições para a reintegração das áreas retomadas, partindo-se do pressuposto de que o afastamento do cacique solaparia a capacidade de resistência dos indígenas”, analisa Daniela.
Durante a ausência do cacique, a PF realizou seguidas ações violentas na comunidade, o que se repetiu nos anos seguintes. Em abril de 2011, em uma nova operação violenta da PF, o indígena Nerivaldo Nascimento e Silva foi alvejado pelas costas na perna direita, por um agente à paisana. Uma das estratégias dos Tupinambá foi documentar essas agressões.
Um dos casos mais emblemáticos desse período de truculência aconteceu em junho de 2009, quando agentes da PF mantiveram cinco indígenas presos de maneira ilegal dentro do território, aplicaram gás de pimenta em seus olhos e deram choques elétricos em diversas partes de seus corpos. O abuso foi denunciado e laudos do Instituto Médico Legal (IML) confirmaram os relatos. Não há notícia de punição dos policiais.
INDÍGENAS LUTAM CONTRA CONSTRUÇÃO DE RESORT
O processo de demarcação das terras, que começou em 2004 e está paralisado há sete anos no Ministério da Justiça, corre o risco de ser encerrado por causa de um pedido do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) feito em 26 de junho para a Fundação Nacional do Índio (Funai) por meio de uma carta assinada por seu presidente, Gilson Machado Neto. No documento, ele manifesta seu interesse no encerramento do processo de demarcação da TI Tupinambá de Olivença para viabilizar a construção de um resort de luxo do grupo português Vila Galé. Trata-se de um hotel com 500 quartos, com investimento de 500 milhões de euros.
O ato não se mostrou produtivo. Em setembro, o vice-governador João Felipe de Souza Leão (PP) chamou o cacique Babau para uma conversa. “Foi um encontro para nos convencer a concordar com a construção do hotel”, conta ele. “Disse que isso nunca iria acontecer. Ele não aceitou a minha posição e sinalizou que teriam outras reuniões para discutir o assunto”.
Em outubro, um executivo português do grupo anunciou, em Portugal, que “não quer avançar (com o projeto) sem ter o consenso das comunidades locais”. A posição não foi suficiente para tranquilizar os indígenas. “Os representantes da empresa no Brasil não vão desistir facilmente dessa construção”, diz Glicéria. “Há uma combinação deles com o governo da Bahia”.
No mesmo mês que Leão chamou Babau para conversar, o governador Rui Costa (PT) aprovou a proposta da Vila Galé de transformar o Palácio Rio Branco, localizado no Pelourinho, em Salvador, em hotel. Construído em 1549, o palácio foi a primeira sede do governo no Brasil. Em seguida, o governo baiano desembolsou R$ 300 mil para patrocinar parte do encontro de prefeitos no luxuoso resort Vila Galé Mares, em Camaçari, na Região Metropolitana de Salvador, onde três diárias custam quase R$ 5 mil.
JOVENS QUE DEIXARAM AS ALDEIAS COMEÇAM A VOLTAR
Em paralelo ao livro, Daniela Alarcon produziu um documentário com depoimentos de alguns dos indígenas envolvidos na retomada. “Uma das coisas que mais chamou a minha atenção durante a preparação desse trabalho foi o engajamento das famílias e dos sujeitos da comunidade envolvidos nesse processo”, diz. “Além disso, eles estavam muito imbuídos dos esforços de contar a sua história”. Ela agora trabalha na tese de doutorado sobre o retorno dos parentes às terras reconquistadas.
Ao longo dos anos, com a comunidade espremida, havia pouco espaço para o cultivo de novas roças. Então os jovens eram forçados a deixar a terra para buscar emprego na vida na cidade ou em fazendas. “Agora eles tem substratos para precipitar esse processo de retorno”, destaca a pesquisadora. “E quanto mais gente volta, maior é força política para fazer mais retomadas”. A tese de Daniela será defendida em fevereiro no Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Glicéria fala com orgulho sobre as novas roças cultivadas onde eram fazendas de cacau abandonadas: “Hoje colhemos, literalmente, os frutos da retomada. Plantamos banana, mandioca, cupuaçu, abacaxi. Tudo de maneira tradicional, orgânica”. A produção abastece a comunidade que, depois de muitos anos de dificuldades, conquistou a abundância. O excedente é comercializado, e os recursos direcionados para melhorias na comunidade.
Muitos indígenas voltam para ajudar parentes idosos com problemas de saúde e encontram a aldeia diferente, com abundância de comida, escola. Alguns decidem ficar. Em outros casos, membros da comunidade que estão passando necessidade nas cidades são resgatados pelos parentes e convidados a reconstruir as suas vidas na terra natal.
Há também aqueles que conquistaram bens materiais como casa, carro e levavam uma vida de classe média na cidade, mas não suportaram sonhos perturbadores — que consideram chamados de volta dos encantados — e retornaram para casa. “O vínculo deles com a terra sempre esteve latente, pois trata-se de um território ancestral”, explica Daniela.
Enquanto prepara um trabalho sobre esse assunto, ela segue viajando o país para divulgar “O Retorno da Terra”. No dia 3 de dezembro, o lançamento aconteceu na Universidade Federal da Bahia. No dia 10, a obra será apresentada em Salvador, na Universidade Federal da Bahia. Mas o lançamento mais especial será no dia 13, na aldeia, durante a Farinhada das Mulheres, encontro que reúne os moradores das comunidades tradicionais da região.
Foto principal: Daniela Alarcon
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