A morte e as mortes do historiador Pablo Macera
“Quisiera estar presente el día de mi entierro / para ver si entre la gente están los que yo más quiero”.
(Margot Palomino. Huayno El olvido.)
Engana-se quem crê que o historiador peruano Pablo Macera Dall’Orso morreu aos 90 anos e foi sepultado sábado (11) no cemitério Presbítero Maestro em Lima. É que Pablo não era um. Eram vários que viviam brigando entre si: o escritor que nos iluminou com sua extensa obra, o congressista que nos decepcionou ao apoiar Fujimori, o iconoclasta cheio de fúrias e penas, o professor performático e brilhante, o profeta midiático de frases irreverentes. Ele era personagem complexo difícil de rotular.
Quem morreu, afinal? Para qual deles Margot Palomino cantou no velório yaravis e huaynos, entre os quais El olvido? Para o Pablo que estava fora do caixão e que a tudo observava com seu sorriso sarcástico, como indica a letra da música? No Brasil, quem ouviu falar desse personagem controvertido difícil de rotular e tão importante para o Peru e para a historiografia da América?
Graças ao exílio, pude conhecê-lo através do seu conterrâneo de Huacho, o linguista Alfredo Torero, que ele definiu como “um condor de imenso e livre vôo”. O historiador me apresentou, então, a Ruggiero Romano, com quem iniciei um doutorado inacabado na EHESS, na França, em 1973. Os contatos pessoais foram poucos devido à distância geográfica. Depois, em raras visitas a Lima, conversamos no seu escritório de Jirón Andahuaylas algumas vezes, a última há alguns anos, quando saboreamos no restaurante El Señorio de Sulco pratos refinados da culinária peruana, que ele sabia apreciar tanto.
Cuentos Pintados
Nessa época, Pablo Macera já havia se distanciado dos grandes atores da história nacional para descobrir a periferia camponesa no Seminário de História Rural Andina, em San Marcos, universidade que existe desde 1551. Ele mergulhou na história da arte popular, assim como nas culturas indígenas da Amazônia, no mundo ashaninka, shipibo, aguaruna, dando a palavra ao outro, aos que sofrem, como explicou o historiador Manuel Burga, seu ex-aluno e amigo.
Macera propôs uma nova leitura da história do país, incorporando nela os marginalizados e os excluídos das narrativas oficiais. Compreendeu a força das populações indígenas na construção do Peru contemporâneo ao perceber a importância de Túpac Amaru no processo de formação histórica, recuperando a figura de líderes indígenas que perduram nos rituais e na memória oral – diz Burga.
Macera discute a relação memória-esquecimento em uma entrevista a Santiago Forns, seu companheiro na Nueva Crónica del Perú (2000). Todos necessitamos da memória, como o cão de Pavlov. Afinal, a memória é apenas uma forma mais organizada da sensibilidade frente aos perigos. Muito mais frequente é o esquecimento [...] Seria insuportável lembrarmos de tudo, por isso temos a necessidade de esquecer”. No entanto, essa seletividade está relacionada à luta da memória contra o esquecimento, que para Milan Kundera é a luta do homem contra o poder.
Nesse sentido, a Nueva Crónica del Perú é um esforço de memória ao evocar a obra do cronista índio Guamán Poma de Ayala escrita há quatro séculos e que permanece desconhecida por grande parte da América Latina. Um grande desafio para uma edição escrita e publicada num mundo repleto de imagens de tv e de internet.
O uso da iconografia e dos saberes que circulam na oralidade fazem parte do projeto Cuentos Pintados del Perú, realizado com a historiadora Rosaura Andazábal e outros, que deu origem a edições bilíngues (espanhol e idiomas nativos) constituída por narrativas. A edição cuidadosa respeita a hibridez linguística, fruto do contato sem obedecer a norma da língua espanhola: “O resultado foi um esplêndido quechuanhol, no qual a escrita está transpassada pela oralidade” – escreveu Pablo, para quem nós não estaríamos falando hoje espanhol, português, francês, italiano – que eram variantes “erradas” do latim clássico - se o Império Romano tivesse conseguido coibir o latim vulgar.
Peru: um bordel
Pablo Macera, um “historiador pioneiro, quase kamikaze” – na definição da historiadora Mónica Ricketts - criticou a educação peruana por evitar o conflito, matriz de sua personalidade: “Eu não fujo do conflito. Jamais”
L’enfant terrible, o anjo indomável, adquiriu fama de encrenqueiro, de “ovelha negra, de intelectual rebelde, disposto a dizer o que muitos pensavam, mas poucos se atreviam” em frases inesquecíveis, que expressavam tudo em poucas palavras repetidas à exaustão por seus admiradores.
- O Peru é um bordel, com uma diferença: o bordel é organizado – ele disse em um de seus “arranques napoleônicos”, tema de artigo do músico Javier Echecopar, testemunha de alguns desses momentos de amargura e humor do historiador, que era visto como uma espécie de oráculo. Sobre um dos episódios históricos marcados pela historiografia oficial como traumático, ele foi implacável: “A guerra do Pacífico com o Chile foi um gol contra do Perú”.
Na outra guerra interna contra os “sovacos ilustrados”, Macera descreve o Peru como “uma enorme favela industrial, que continua sendo, para o bem e para o mal, uma sociedade camponesa”. Explica em “Las fúrias y las penas” (1983) que a organização social do mundo andino cultiva a ideia do Bem Limitado. Os camponeses pensam – talvez com razão - que existe uma quantidade limitada de bens e, se alguém acumulou, foi em prejuízo de outros. Quando tal ideia é transferida ao meio acadêmico, o prestígio conquistado com a acumulação de conhecimentos é considerado um ultraje. Tom Jobim já disse que “no Brasil, o sucesso é uma ofensa”. Parece que no Peru também.
Flor de Retama
Um ano antes de morrer, em conversa com o escritor Rodrigo Núñez, Pablo Macera fez uma auto-crítica ao seu apoio a Fujimori:
- Em 1995 me equivoquei e em 2000 meus erros foram ainda maiores. Acreditei que a ordem e a estabilidade eram necessárias depois de décadas de crise econômica e social. O triste é haver tido como amigo um homem como Fujimori, que me chamava a seu despacho para conversar e eu me sentia importante. Fui muito ingênuo. [...] Nós, os intelectuais, não servimos para a política. Eu não soube perceber a tempo a entranha ditatorial do fujimorismo e o grau de corrupção a que chegou. [...] Acabei apoiando aquelas forças contra as quais me rebelei em minha juventude.
Imagino que esse Pablo Macera, que doou à Biblioteca Nacional do Peru sua biblioteca pessoal de 34.716 volumes e 1.099 manuscritos, deve ter vibrado com os acordes do huayno ayacuchano “Flor de Retama”, cantado por Margot Palomino no velório. Ali, narra o assassinato de 20 estudantes que reivindicavam, em 1969, a manutenção do ensino básico gratuito ameaçado por política governamental.
Esse Pablo, que queria “ver quién va a llorarme”, deve ter sentido alívio, pois no seu funeral não havia lágrimas de um único fujimorista – como me escreveu uma amiga ali presente. Lá não compareceram almas sebosas, somente pessoas queridas: familiares, amigos, huachanos, sanmarquinos, ex-alunos e admiradores, que foram se despedir dos vários Pablos, especialmente do historiador, que permanece vivo e continuará entrando comigo nas salas de aula de duas universidades do Rio de Janeiro para polemizar com os alunos, assim como em aulas de outras universidades da América.
P.S. Agradeço à historiadora Rosaura Andazabal do Seminário de História Rural Andina e à família Lagorio de Huacho – Consuelo, Nila e Rhoda – que me enviaram fotos, documentos e informações assim como os seguintes textos:
1) Carlos Paucar, Pablo Macera: el último gran historiador. Diario La República, 10 enero 2020.
2) Hugo Neira. Macera: un rebelde íntegro y claro. El Montonero. 12 de enero de 2020.
3) Santiago Forns: Pablo Macera: La vida es demasiado corta como para perderla en rodeos. La República, 12 Enero 2020
4) Javier Echecopar – “Los arranques napoleónicos”(A Pablo Macera el extraordinário historiador del Peru).
5) Juan Carlos Fangacio Arakaki. Pablo Macera: impugnar la história própria. El Comercio. 11 enero 2020
6) Alberto Adrianzén: Pablo Macera: el último oráculo. Servindi. https://www.servindi.org/actualidad-opinion/10/01/2020/pablo-macera-el-ultimo-oraculo
7) Rodrigo Núñez Carvallo. El adiós de Pablo Macera.
https://www.facebook.com/notes/rodrigo-n%C3%BA%C3%B1ez-carvallo/el-adi%C3%B3s-de-pablo-macera/10155787937325776/
La muerte y las muertes de Pablo Macera
José R. Bessa Freire (Versión en español – Consuelo Alfaro Lagorio)
“Quisiera estar presente el día de mi entierro / para ver si entre la gente están los que yo más quiero”. (Margot Palomino. Huayno El Olvido.)
Pensar que el historiador peruano Pablo Macera Dall’Orso simplemente murió a los 90 años y fue sepultado el sábado (11) en el cementerio Presbítero Maestro en Lima es casi una herejía. Es que Pablo no era uno. Eran varios que vivían peleando entre sí: el escritor que nos iluminó con su extensa obra, el congresista que nos decepcionó al apoyar Fujimori, el iconoclasta cargado de furias y penas, el profesor performático y brillante, el profeta mediático de frases irreverentes. Era un personaje complejo, difícil de rotular.
Al final, ¿quién murió? ¿A cuál de ellos Margot Palomino le cantó en el velorio yaravíes y huaynos, entre los cuales El olvido? ¿Para el Pablo que estaba fuera del cajón y que observaba todo con su sonrisa cáustica? En Brasil, ¿quién escuchó hablar de ese personaje controvertido, difícil de caracterizar, tan importante para el Perú y para la historiografía de América?
Gracias al exilio, pude conocerlo a través de su paisano de Huacho, el lingüista Alfredo Torero, a quien definió como “un cóndor de inmenso y libre vuelo”. El historiador me presentó, entonces a Ruggiero Romano, con quien inicié un doctorado inacabado en la EHESS, en Francia, en 1973. Los encuentros personales fueron pocos debido a la distancia geográfica. Después, en raras visitas a Lima, conversamos algunas veces en su oficina del Jirón Andahuaylas, la última hace algunos años en el restaurant El Señorio de Sulco, cuando saboreamos platos refinados de la culinaria peruana, que él sabía apreciar tanto.
Cuentos Pintados
En esa época, Pablo Macera ya se había distanciado de los grandes actores de la historia nacional para descubrir la periferia campesina en el Seminario de Historia Rural Andina, en San Marcos, universidad que existe desde 1551. Se dedicó a la historia del arte popular, así como a las culturas indígenas de la Amazonía, al mundo ashaninka, shipibo, aguaruna, dando la palabra al otro, a los que sufren.
Macera propuso una nueva lectura de la historia del país, incorporando en ella los marginalizados y los excluidos de las narrativas oficiales. Comprendió la fuerza de las poblaciones indígenas en la construcción del Perú contemporáneo al percibir la importancia de Túpac Amaru en el proceso de formación histórica, recuperando la figura de líderes indígenas que perduran en los rituales y en la memoria oral – dice Manuel Burga su ex-aluno y amigo.
Macera discute la relación memoria-olvido en una entrevista a Santiago Forns, su compañero en la Nueva Crónica del Perú (2000). Todos necesitamos la memoria, como el perro de Pavlov, al final, la memoria no es sino una forma más organizada de la sensibilidad frente a los peligros. […] Mucho más presente es el olvido. Sería insoportable acordarse de todo, por ello tenemos la necesidad de olvidar. Sin embargo, esa selectividad guarda relación con la lucha de la memoria contra el olvido que para Milan Kundera es la lucha del hombre contra el poder.
En ese sentido, la Nueva Crónica del Perú (2000) es un esfuerzo de memoria al evocar la obra del cronista indio Guamán Poma de Ayala de hace cuatro siglos, que permanece desconocida para gran parte de latinoamerica. Un gran desafío para una edición que sale en un mundo repleto de imágenes de tv y de internet.
El uso de la iconografía y de los saberes que circulan en la oralidad hacen parte del proyecto Cuentos Pintados del Perú, realizado con la historiadora Rosaura Andazábal y otros que dio origen a ediciones bilingües (español e idiomas nativos) constituida por narrativas. La edición cuidadosa respeta la hibridez lingüística, fruto del contacto, sin seguir la norma de la lengua española: “El resultado fue un espléndido quechuañol, en el que la escritura está traspasada por la oralidad” – escribió Pablo, para quien no estaríamos hablando hoy español, portugués, francés, italiano – que eran variantes “erradas” del latín clásico – si el Imperio Romano hubiera conseguido cohibir el latín vulgar.
Perú: un burdel
Pablo Macera – “un historiador pionero, casi kamikaze” – según la definición de la historiadora Mónica Ricketts, critica la educación peruana por evitar el conflicto, matriz de su personalidad: “Yo no huyo del conflicto. Jamás”.
Pablo, l’enfant terrible, el ángel indomable, ganó fama de revoltoso, de “oveja negra, de intelectual rebelde, dispuesto a decir lo que muchos pensaban, pero pocos se atrevían”, en frases inolvidables, que sintetizaban todo en pocas palabras repetidas hasta el cansancio por sus admiradores.
- El Perú es un burdel, con una diferencia: el burdel es organizado – dice en uno de sus “arranques napoleónicos”, tema del artículo del músico Javier Echecopar, testigo de algunos de esos momentos de amargura y humor del historiador, visto como una especie de oráculo. Sobre uno de los episodios históricos marcados por la historiografía oficial como traumático, implacable escribe: “La guerra del Pacífico con Chile fue un auto-gol del Perú”.
En la otra guerra interna contra los “sobacos ilustrados”, Macera describe el Perú como “una enorme barriada industrial que sigue siendo en lo bueno y en lo malo una sociedad campesina”. Explica en “Las furias y las penas” (1983) que la organización social del mundo andino cultiva la idea del Bien Limitado. Los campesinos piensan – y tal vez con razón - que existe una cantidad limitada de bienes y si alguien acumuló, lo hace en perjuicio de otros. Cuando esa concepción se transfiere al medio académico, el prestigio conquistado con el acúmulo de conocimientos se considera un ultraje. Tom Jobim dice que “en Brasil, el éxito es una ofensa”. Parece que en el Perú también.
Flor de Retama
Un año antes de morir, conversando con el escritor Rodrigo Núñez, Pablo Macera hizo una auto-crítica sobre su apoyo a Fujimori:
“En 1995 me equivoqué y en el 2000 mis yerros fueron aún mayores. Creí que el orden y la estabilidad eran necesarios después de décadas de crisis económica y social. Lo único triste es haber tenido como amigo a un hombre como Fujimori, que me llamaba a su despacho a conversar y yo me sentía importante. Fui muy ingenuo. [...] Los intelectuales no servimos para la política [...] No supe detectar a tiempo la entraña dictatorial del fujimorismo y el grado de corrupción al que llegó. [...] Terminé congraciándome con las fuerzas contra las cuales insurgiera em mi juventud.
Imagino que ese Pablo Macera, que donó a la Biblioteca Nacional del Perú su biblioteca personal de 34.716 volúmenes y 1.099 manuscritos, debe haber vibrado con los acordes del huayno ayacuchano “Flor de Retama”, cantado por Margot Palomino. Narra el asesinato de 20 estudiantes que revindicaban, en 1969, la manutención de la enseñanza básica gratuita amenazada por la política gubernamental.
Ese Pablo, que quería “ver quién va a llorarme”, debe haber sentido alivio, pues en su funeral no había lágrimas de ningún fujimorista – como me escribió una amiga allí presente. No comparecieron almas mezquinas. Solamente personas queridas: familiares, amigos, huachanos, alumnos, sanmarquinos y admiradores, que fueron a despedirse de los varios Pablos, especialmente del historiador, que permanece vivo y continuará entrando conmigo en las salas de clase de dos universidades de Rio de Janeiro para polemizar con los alumnos, así como en clases de otras universidades de América.
P.S. Agradezco las informaciones de la historiadora Rosaura Andazábal del Seminario de Historia Rural Andina y de miembros de la familia Lagorio de Huacho – Consuelo, Nila y Rhoda – que enviaron informaciones, documentos, fotos y textos:
http://www.taquiprati.com.br/cronica/1505-a-morte-e-as-mortes-do-historiador-pablo-macera
http://www.taquiprati.com.br/cronica/1505-a-morte-e-as-mortes-do-historiador-pablo-macera
1) Carlos Paucar, Pablo Macera: él último gran historiador. Diário La República, 10 enero 2020.
2) Hugo Neira. Macera: um rebelde íntegro y claro. El Montonero. 12 de enero de 2020.
3) Santiago Forns: Pablo Macera: La vida es demasiado corta como para perderla en rodeos. La República, 12 Enero 2020
4) Javier Echecopar – “Los arranques napoleónicos”(A Pablo Macera el extraordinário historiador del Peru). https://www.facebook.com/pg/javierechecoparoficial/posts/?ref=page_internal
5) Juan Carlos Fangacio Arakaki. Pablo Macera: impugnar la história própria. El Comercio. 11 enero 2020
6) Alberto Adrianzén: Pablo Macera: el último oráculo. Servindi. https://www.servindi.org/actualidad-opinion/10/01/2020/pablo-macera-el-ultimo-oraculo
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