16 de jan. de 2020

A “questão Malvinas” e a geopolítica do Atlântico Sul. - Editor - AS MALVINAS É QUESTÃO DE SOBERANIA ARGENTINA E SOBERANIA DA AMÉRICA DO SUL. OS INGLESES JÁ MAMARAM DEMAIS NA AMÉRICA DO SUL.

A “questão Malvinas” e a geopolítica do Atlântico Sul

por Tamara Lajtman e Luis Wainer | Celag - Tradução de Rebeca Ávila para a Revista Opera
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A“questão Malvinas” refere-se a um conflito geopolítico que envolve quase 6 milhões de quilômetros quadrados, equivalente a duas Argentinas e um oceano repleto de recursos.
Há um mês [20 de novembro de 2019], precisamente no Dia da Soberania Nacional, começou a operar o voo que conecta São Paulo às Ilhas Malvinas, uma nova rota comercial administrada pela Latam Airlines Brasil.
Não se trata de um evento isolado, devendo ser concebido como resultado do Acordo Foradori-Duncan, assinado no dia 13 de setembro de 2016. Dito acordo pretende limitar ou evitar as restrições econômicas impostas pelas leis argentinas, sancionadas pelo Congresso Nacional, sobre proteção de recursos de pesca e exploração de hidrocarbonetos. Entre outras medidas, incluiu-se a possibilidade de aumentar o número de voos às ilhas, com escala na Argentina, mas sem aceitação das empresas de transporte aéreo nacionais nem de voos diretos saindo da Argentina continental. Tudo no marco da política sobre as Malvinas implementada durante a presidência de Mauricio Macri, destinada a melhorar as condições desse enclave neocolonial-militar, como um dos pilares para recuperar as relações amistosas (subordinadas) com as potências ocidentais.

Contexto

1) O governo de Mauricio Macri trabalhou para “remover os obstáculos” que impedissem a exploração britânica nas Ilhas Malvinas e seus espaços marítimos circundantes, como ficou explícito no acordo de setembro de 2016; remover os obstáculos (leia-se “desmantelar medidas jurídicas, administrativas e legais”) supõe, por exemplo, em matéria de navegação, pesca e hidrocarbonetos, evitar punir as empresas que atuem em território argentino sem permissão.
2) Esta orientação diverge substancialmente das diretrizes sobre as Malvinas durante os governos de Néstor Kirchner (2003-2007) e de Cristina Fernández (2007-2015), centradas na questão soberana e que articularam as denúncias sobre a depredação de recursos naturais e militarização do Atlântico Sul, e que levaram à decisão de limitar a exploração de recursos naturais por parte da Grã Bretanha e outros países, inclusive de empresas multinacionais detentoras de licenças comerciais.

Malvinas e o Atlântico Sul: impacto geopolítico global

Vale destacar que no Atlântico Sul ocidental – setor correspondente à América do Sul – apenas dois atores regionais detêm quase a totalidade do litoral marítimo: Brasil e Argentina. Por outro lado, as potências extrarregionais que mantêm forte presença são os Estados Unidos e o Reino Unido, detentores da cadeia de ilhas que se encontram no centro do Oceano Atlântico Sul, entre a América e a África, simultaneamente exercendo controle naval da zona [1]. Desta forma, longe de uma disputa de 11 mil quilômetros quadrados – correspondentes às duas ilhas maiores e ao conjunto de ilhotas que se desprende delas – a “questão Malvinas” diz respeito a um conflito sobre cerca de 6 milhões de quilômetros quadrados, ou seja, nada mais, nada menos do que o correspondente a duas Argentinas continentais e um oceano repleto de recursos.
O Estreito de Magalhães e os canais de Beagle e Drake possibilitam a comunicação interoceânica Atlântico-Pacífico e são fundamentais para o monitoramento e intervenção no comércio mundial. Estima-se que cerca de 200.000 navios de carga transitam anualmente pelo Atlântico Sul, onde 80% do petróleo que demanda a Europa Ocidental e 40% das importações dos EUA representam parte importante deste fluxo comercial [2]. Outra dimensão que mostra a importância geoestratégica das Malvinas é a conexão que estabelece com a Antártida, território cobiçado pelas potências hegemônicas por ser uma reserva de minerais, biodiversidade e mais de ¾ da água doce existente no planeta armazenada em forma de gelo, além da suma importância para a atividade espacial.
Atualmente, o enclave militar com a base aérea de Mount Pleasant conta com uma pista de 2590 metros e outra de 1525 que permitem o deslocamento de aviões de grande porte e helicópteros. A isto agrega-se o porto de águas profundas Mare Harbour utilizado pela Marinha Real para a amarra de navios e submarinos (Londres tem enviado submarinos de última geração e de propulsão nuclear), além de silos e rampas para lançamento de armas nucleares. Aí vivem entre 1500 a 2000 efetivos, dos quais cerca de 500 residem de forma permanente enquanto os demais são parte de contingentes rotativos que chegam para serem submetidos a treinamento, sendo posteriormente enviados a cenários bélicos onde a Grã Bretanha esteja envolvida, como foi o caso do Iraque e do Afeganistão [3].
Esta base conta com aviões de última geração, intitulados Eurofighter Typhoon, que substituíram os Tornado F3 e Harrier usados na guerra; nenhuma força aérea na América Latina conta com este tipo de avião [4]. Além disso, em 2017 o Ministério de Defesa britânico resolveu ampliar o orçamento da base para 267 milhões de libras durante os próximos dez anos, implementando novos sistemas de defesa de mísseis que substituam o sistema anterior de defesa Rapier.
Essas informações deixam claro que se trata de um ponto geopolítico e geoestratégico de primeira importância. Os assentamentos coloniais britânicos – cuja descolonização segue pendente no século XXI – servem para estabelecer um sistema interconectado de bases militares que incluem Tristán de Acuña, Santa Elena e Ascensión. Ainda que algumas não conformem bases militares clássicas, constituem importantes “barreiras” na geopolítica do Atlântico Sul, já que, como Santa Elena – com uma recente inauguração de uma pista aérea – podem transformar-se rapidamente em bases úteis para o transporte e apoio logístico; uma espécie de coluna vertebral que permite o abastecimento e translado de forças de combate rapidamente [5].
Rede de bases e infraestrutura britânicas distribuída pelo hemisfério
– Ilha Ascensión (base militar Wideawake Airfield a 8000 km de distância de Londres, enclave anglo-americano fundamental para abastecimento e logística).
– Ilha Santa Elena e ilhota Tristán de Cunha
– Ilhas Malvinas (Monte Agradable é a principal base militar da OTAN no Atlântico Sul)
– Ilhas Georgias e Sandwich del Sur (último elo da cadeia de controle naval)

Malvinas e a disputa “Ocidente versus Oriente”

É fundamental entender a estratégia do Reino Unido no Atlântico Sul como complementar à dos Estados Unidos e ao esquema de implementação militar da OTAN. Em 2004, Londres transferiu o Comando Naval do Atlântico Sul a Mare Harbour e Monte Agradable. Quatro anos depois, os EUA anunciaram a reativação da IV Frota para patrulhar o Caribe, América Central e América do Sul com fins “humanitários”. Em 2009 as Ilhas Malvinas, ilhas do Atlântico Sul e Território Antártico reivindicado pela Grã Bretanha foram incorporados unilateralmente como territórios europeus ultramarinos através da ratificação do Tratado de Lisboa e da aprovação da Constituição Europeia pelo Parlamento Europeu.
Em agosto de 2018 o secretário de Defesa britânico, Gavin Williamson, diante do grupo de especialistas do Atlantic Council – think-tank que é referência do establishment imperialista, fundado em 1961 no marco da Guerra Fria – ressaltou a fortaleza da relação entre o Reino Unido e os EUA:
“(…) Estamos prontos para responder a qualquer situação em qualquer momento. Implantamos forças em todo o mundo, podemos recorrer aos nossos territórios ultramarinos em Gibraltar, às Áreas da Base Soberana no Chipre, à ilha Ascensión, às ilhas Falklands* e ao Território Britânico do Oceano Índico. Eles geralmente fornecem instalações estratégicas não apenas para nós, mas também para os Estados Unidos”[6].
Em um relatório da Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA – China do Congresso dos Estados Unidos intitulado “Acordos militares da China com a Argentina: uma potencial nova fase nas relações de Defesa China – América Latina” há uma consideração sobre a “intensificação temporal da disputa pelas Falklands”:
– Os EUA não adotam nenhuma posição sobre a disputa das ilhas Falklands que não seja a de encorajar uma resolução diplomática das diferenças, mas os seus interesses serão prejudicados pelo aumento das tensões entre os reclamantes – ambos aliados dos Estados Unidos –, e a tensão que isto geraria para os seus esforços de estabilidade regional.
– Os potenciais acordos de venda de armas e cooperação espacial da China com a Argentina já têm servido para intensificar marginalmente a disputa, e a China apoia publicamente o reclamo da Argentina sobre as ilhas, provavelmente vendo-o como análogo ao seu próprio reclamo sobre Taiwan.
– Antes que fossem conhecidos os seus acordos oficiais com a China, o mero interesse da Argentina nos caça-bombardeiros russos SU-24 levou o Reino Unido a realizar uma revisão oficial das defesas das ilhas e investir em pequenas melhoras, uma medida que foi fortemente criticada pela Argentina.
– Apesar do potencial valor de bilhões de dólares, esses acordos não proporcionariam ativos suficientes para inclinar o equilíbrio de poder militar a favor da Argentina [7].

Hidrocarbonetos

Durante os anos 70, a Grã Bretanha realizou várias missões científicas e estudos de prospecção sobre os recursos nas ilhas, especialmente de petróleo. No fim da década, por mero acaso, diversos meios começaram a expressar consensualmente que a Coroa britânica deveria buscar novas fórmulas para o desenvolvimento das potencialidades de mineria nas ilhas, assim como a importância de tirar da mesa de discussão com a Argentina a questão da soberania. Ao mesmo tempo, os EUA sentenciavam que “a única região fora da OPEP e dos países comunistas com um potencial petroleiro significativo é a bacia das Malvinas, entre a Argentina e as ilhas Falkland” [8].
Logo após a guerra, durante o governo de Carlos Menem, as Malvinas deixaram de ser uma questão soberana, no marco de uma política de “abordagens práticas”, favorecendo através de tratados e convênios os interesses econômicos e políticos da Grã Bretanha [9].
Este marco legal permitiu que a Grã Bretanha lançasse unilateralmente uma licitação pública para a exploração de petróleo nas ilhas durante os anos 90. Foram perfurados seis poços em 1998, e em 2010 a Ocean Guardian liderou um novo ciclo de perfurações. No dia 2 de abril de 2015 a Premier Oil, a Falkland Oil & Gas e a Rockhopper Exploration anunciaram a descoberta de reservas de petróleo e gás superando, de longe, as expectativas [10]. Em setembro de 2017, durante a Conferência Capital Oil, o CEO da Rockhopper Exploration anunciou que o poço denominado Sea Lion possuía reservas certificadas entre 500 milhões e 1 bilhão de barris de petróleo. Estima-se que a extração comercial de petróleo cru nas Malvinas poderia começar em 2020. Para 2022 é projetada uma produção offshore de 75.000 barris diários, volume que poderia alcançar um máximo de 120.000 em 2025 [11].
É importante lembrar da condição transnacional das companhias petroleiras. No caso das Malvinas, existem importantes interesses estadunidenses em aliança com as companhias britânicas. A Rockhopper Exploration e a Diamond Offshore, por exemplo, negociam a documentação vinculante a partir dos princípios acordados para o fornecimento de uma unidade de perfuração e de financiamento do provedor [12]. Atualmente, as empresas que buscam e exploram a área são: Falkland Oil and Gas Limited, Borders and Southern Petroleum, Rockhopper Exploration, Diamond Offshore Driling, BHP Billition e Argos, além de empresas responsáveis por serviços financeiros e acionistas [13].
Uma informação fundamental é que a lei de hidrocarbonetos da Argentina, modificada em 2013, prevê que nenhuma empresa petroleira que tenha atuado nas Malvinas poderá fazê-lo na plataforma continental argentina, por ser uma exploração clandestina e ilegal. Em outubro de 2018, o governo de Mauricio Macri lançou o decreto 872 que instrui a Secretaria do Governo de Energia, dependente do Ministério da Fazenda, a convocar um concurso público internacional para adjudicar permissões de exploração e busca de hidrocarbonetos offshore.
Neste contexto, foram concedidas áreas a empresas europeias que já estão operando nas Malvinas [14], enquanto entregam informação geológica da plataforma continental argentina e aceitam empresas britânicas que operaram nas Malvinas sob a administração ilegal das ilhas. Esses acontecimentos fortalecem a ocupação colonial britânica ao conceder explorações a essas empresas, que violam a Constituição Argentina ao reconhecer o governo kelper** [15]. Em outras palavras, não apenas foram outorgadas essas concessões ilegais como também legitimou-se a ocupação colonial.

Recursos marinhos vivos

Depois da guerra, e como parte do plano para o apoio econômico das ilhas e manutenção da base militar do Reino Unido, o apoio econômico foi concretizado por meio do outorgamento de licenças de pesca no Mar Argentino. Na última década, a pesca representou mais da metade da renda das ilhas, a partir do sistema de licenças ilegais. Em 2011, 118 navios com licença britânica pescaram um total de 232.000 toneladas. Apenas a pesca de lulas ultrapassou o valor de 1,6 bilhões de dólares em 2012, produto da captura de 50 toneladas por dia.
Dados importantes
  1. A temporada 2019 foi a de melhor rendimento desde 1995, alcançando 51 mil toneladas, a partir da presença de mais de meia centena de barcos estrangeiros.
  2. Em fevereiro de 2019, o governo britânico das Malvinas outorgou 105 licenças de pesca apenas para lulas, ao mesmo tempo em que realizam uma investigação “conjunta” com o governo argentino sobre a espécie de lula illex, com o navio “Victor Angelescu”, para estimar a quantidade desse tipo de molusco para março de 2020.

Perspectiva: a urgência de uma nova etapa para as Malvinas e o Atlântico Sul

Durante o governo de Macri o “reclamo” pelas Malvinas e o Atlântico Sul esteve supeditado ao desejo de relançar o vínculo comercial com Londres, como um importante sócio para a estratégia de “reinserção no mundo”. Consequentemente, desatendeu o histórico reclamo pela soberania e desenvolvimento do Atlântico Sul. À luz da mudança de governo na Argentina, torna-se importante destacar aspectos fundamentais sobre a questão das Malvinas, que devem voltar a ser considerados como ponto de partida para o debate e tomadas de decisão:
  • É fundamental conceber as Malvinas no contexto de uma política oceânica e antártica. Para isso a Argentina deve pensar-se como um país marítimo e antártico.
  • A “questão Malvinas” implica recursos em disputa como o petróleo, a pesca, os grandes recursos na plataforma continental ou os minerais das profundezas marinhas oceânicas.
  • A Argentina oceânica e antártica deve ser pensada como política para o Atlântico Sul, como desenvolvimento da ciência e de uma logística para a Patagônia argentina continental e insular.
  • É urgente reativar as estratégias que tendem a gerar um acompanhamento regional e internacional na questão.
  • Seria conveniente reorientar as negociações para impedir a unilateralidade britânica em setores como a pesca ou hidrocarbonetos.
  • https://revistaopera.com.br/2020/01/16/aquestao-malvinas-e-a-geopolitica-do-atlantico-sul/
  • Cadê o Amarildo?
    O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs
    COMPRE JÁ 
Notas autorais:
[1] Altieri, Mariana, “Regionalización de la Cuestión Malvinas: la construcción de una estrategia de política exterior desde un posicionamiento frente al mundo”, en Wainer, Luis (coord.), Malvinas en la geopolítica de América Latina, Ed. CCC-Unsam, 2019 (en edición).
[3] Entrevista a la Dra. Sonia Winer (UBA-CONICET) realizada el 3 de diciembre de 2019
[4]Volpe, Mario, “Razones e intereses de una soberanía en disputa internacional y cultural”, en Giordano, C. Malvinas y Atlántico sur: estudios sobre soberanía, UNLP, 2017.
[5]Volpe, Mario, ob. cit.
[8]Álvarez Cardier, Jorge, La guerra de las Malvinas, enseñanzas para Venezuela, Editorial Enfoque, Caracas, 1982.
[13]Entrevista a la Dra. Sonia Winer (UBA-CONICET) realizada el 3 de diciembre de 2019
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