17 de jan. de 2020

Urariano Mota: Crime contra Soledad, o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura militar no Brasil. - Editor - TODO O TERRORISMO DE ESTADO É SUJO E DITATORIAL.

Urariano Mota: Crime contra Soledad, o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura militar no Brasil
POLÍTICA

Urariano Mota: Crime contra Soledad, o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura militar no Brasil


17/01/2020 - 09h10

por Conceição Lemes
Terça-feira da semana passada, 7 de janeiro, fez 47 anos que Soledad Barrett Viedma (1945-1973) foi torturada e morta no Recife (PE), após ser atraiçoada e entregue ao delegado Sérgio Fleury, um dos mais sanguinários agentes da repressão.
Um dia antes de ser trucidada grávida, a militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)  havia completado 28 anos.
Nascida no Paraguai e radicada no Brasil, Soledad foi traída pelo próprio companheiro, José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, de quem estava grávida de quatro meses.
Eu a  “conheci” em 2009 ao ler uma coluna do jornalista e escritor pernambucano Urariano Mota, no extinto site Direto da Redação,  dos também jornalistas Eliakim Araújo, já falecido, e Leila Cordeiro.
Fascinou-me na hora. Uma jovem idealista, corajosa, doce e linda, muito linda.
O texto era terno, carinhoso, delicado.
A história emocionou-me tanto que quis saber mais de Urariano.
Em 27 de junho de 2009, foi ao ar a nossa primeira entrevista, que reproduzo ao final.
Àquela altura, Urariano já havia publicado o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, e estava prestes a lançar  “Soledad no Recife”, pela editora Boitempo.
Nunca viu pessoalmente o agente duplo, a serviço da ditadura militar.
“Conheço o Cabo Anselmo por seus cadáveres, que ele arrasta como uma cauda. Fui, sou amigo de quem ele perseguiu, traiu e matou”, contou-me.
Em 17 de outubro de 2011, o agente da ditadura foi o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo.
No artigo A última mentira do cabo Anselmo,Urariano registrou o ultraje:
“José Anselmo dos Santos, ou Daniel, ou Jadiel, ou Jônatas…  ou mais simplesmente Cabo Anselmo, se apresentou no Roda Viva na última segunda-feira.
Como já se esperava, ele esteve muito à vontade, porque os entrevistadores não pesquisaram a história dos seus crimes, e se fizeram esse indispensável dever, não quiseram levá-lo às cordas, para confrontar as suas esquivas com os depoimentos de testemunhas de 1973, ano das execuções de 6 militantes socialistas no Recife.
O momento mais acintoso foi quando ele se referiu à sua mulher, Soledad Barrett, e dela retirou a gravidez, para se isentar de um hediondo crime, que cai como um acréscimo à traição de entregá-la para a morte.
Transcrevo:
“Cabo Anselmo – A Soledad usava DIU, desde que fez um aborto aqui em São Paulo, antes da ida para o Recife.
Entrevistador –  O senhor contesta a gravidez da Soledad?
Cabo Anselmo – Como?
Entrevistador – O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica …
Cabo Anselmo – Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim.
Entrevistador – Então o feto encontrado lá não era dela?
Cabo Anselmo – Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico.”
Não vem ao caso agora observar que ele ganha tempo para responder, quando finge não ouvir bem e pergunta “Como?”.
Importa mais agora confrontá-lo com três depoimentos históricos.
No primeiro deles, e mais impressionante, a advogada Mércia Albuquerque assim declarou na Secretaria de Justiça de Pernambuco, em 1996:
“Soledad estava com os olhos muito abertos com expressão muito grande de terror, a boca estava entreaberta e o que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade que estava, eu tenho a impressão que ela foi morta e ficou algum tempo deitada e a trouxeram, e o sangue quando coagulou ficou preso nas pernas porque era uma quantidade grande e o feto estava lá nos pés dela, não posso saber como foi parar ali ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.
No segundo deles, a dona da butique em Boa Viagem, onde foram presas Soledad e Pauline, lembra que em 1973 Soledad lhe dissera que iria viajar para rever a única filha, antes de dar à luz, porque estava grávida.
Isso foi falado à testemunha dias antes da  execução dos socialistas em janeiro, numa conversa íntima entre mulheres.
Soledad estaria louca ou a dona da butique estaria inventando histórias?
E agora, por fim, prestem bem atenção no que lembra um professor de história do Recife:
Soledad e Anselmo foram vistos na Rua das Calçadas, no Recife, a comprar roupinhas de bebê. Que lindo e canalha, não?  Será que estariam então todos enganados a fantasiar a gravidez de Soledad, somente para incriminar o pobre Anselmo?
Ontem no Roda Viva o Cabo Anselmo cometeu a sua mais escabrosa mentira.
Transferiu a gravidez da mulher para outra morta. E todos os repórteres, entrevistadores, apresentador calaram diante da eloquência do velho traidor. O DIU, dizem os médicos, tem apenas 0,1% de falha. Já um agente duplo nunca nega fogo: é 100 % mentiroso.
BETO MAFRA: “NOSSA COVARDIA É ABJETA”
Por isso, na semana passada, quando começou a circular pelos grupos de Whatsapp um texto sem autoria sobre os 47 anos do assassinato de Soledad, no ato pensei em Urariano.
Seria dele?
Alguém inadvertidamente teria cortado a assinatura?
Não sendo de Urariano, saberia de quem era?
Eu recebi o texto via Beto Mafra, desenhista, publicitário  e militante mineiro.
Perguntei-lhe sobre a autoria.
Ele tentou descobrir, mas não conseguiu.
“A apresentação (logo abaixo) é minha. Momento nojo por sermos gado”, observou.
NOSSA COVARDIA É ABJETA
O criminoso vive e dá entrevistas com a mesma expressão que usou para assistir ao martírio de Soledad.
essa complacência é insuportável para mim.
a complacência diante da homenagem ao Ustra só agrava.
sinto vergonha por nossa covardia ABJETA.
O texto não era mesmo de Urariano, que nos mandou este capítulo do livro “Soledad no Recife”, lançado em 2009 pela Boitempo.
SUA ÚLTIMA HORA 
Urariano Mota
– Por quê? Por quê?!
A pergunta que Soledad não se fizera diante das imagens que a perseguiam nos últimos meses, por quê?, qual a razão delas, agora à luz do dia em Boa Viagem, em uma butique da ensolarada praia de Boa Viagem, aonde ela foi para vender roupas, onde ela está com  Pauline, ali, sob a prazenteira luz física do Brasil, a pergunta pelas razões dos sonhos e pesadelos que ela não se fizera, agora vêm com um susto, um terror, diante do real bruto. José Anselmo dos Santos se encontra entre os homens que lhe batem na cabeça com armas e punhos.
– Por quê? Por quê?
Pauline está muda e petrificada, incapaz de correr e falar. Soledad olha para os olhos do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe perguntarem.
– Você dorme bem?
– Putz, tranquilamente.
Ou mais textualmente:
– Você dorme tranquilo? Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?
– Absolutamente (risos)….
Por enquanto, não, agora na butique em Boa Viagem ele não ri, embora a cena lhe pareça um tanto cômica.
– Por quê? Por quê?
Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas.
“Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério…. em um barril estava Soledad Barrett Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto”.
Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, não era mais advogada de presos e perseguidos políticos.
Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife.
Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco falou entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias.
Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: “Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror”.
No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério.
Mércia Albuquerque é uma pessoa se fraterniza e confraterniza com pessoas.
“Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela”.
Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-a pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad.
Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres –, despidos.
O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. “A boca de Soledad estava entreaberta”.
Podemos mais, nesse filme que recuamos para antes do terror como um desenvolvimento. E ao voltar, fazemos uma grave descoberta.
Se dissermos que havia na pessoa de Soledad o seu caráter, nada demais estaremos dizendo. Assim ela era como personalidade e assim era o seu todo, da suavidade ao calor, à paixão, à inteligência.
Se essa visão não é simples, é, pelo menos, quase óbvia. Mas vemos uma coisa que não sabemos se grata, mas que é séria, algo de que jamais desconfiávamos, e por isso jamais imaginamos descobrir: Soledad era uma encarnação de palavras.
Isso não é metáfora, nem muito menos “recurso estilístico”. Aqui chegamos a um estágio em que o melhor é narrar colado aos fatos e à sua complexidade.
Pesquisadores já escreveram que, de um ponto de vista genético, todos temos significativa herança dos avós.
Mas Soledad, mais que uma herança genética, era filha do seu avô. Em espírito e vida, era filha do escritor Rafael Barrett.
Isso dito assim, escrito nessa frase, é informação que nada explica nem permanece. Porque é necessário que se diga, mais que se informe, que o escritor Rafael Barrett era um homem anarquista, um intelectual anarquista do começo do século XX, e mais, e aqui nos aproximamos do destino de Soledad.
Rafael Barrett era, é um escritor poderoso, um artista dos incomuns, dos que fazem obra com o seu pensamento e vísceras.
Falecido aos 34 anos, em 1910, foi um espanhol que amou o povo paraguaio com uma dedicação apaixonada, louca, universal, com os olhos críticos contra a podre sociedade de então.
Mas tudo que acabo de dizer soa como retórica, como oco panegírico, se não transcrevemos palavras suas, para notar em quê esse escritor era mesmo tão bom, fecundo, adivinhatório. “Às vezes é necessário um motim para restabelecer a ordem”, esclarecia.
Rafael Barrett poderia ser um humorista, com o seu brilho para o paradoxo, se não tivesse os pés metidos no charco, no Chaco, urgente.
Ele parecia ter a consciência clara do quanto os seus curtos dias punham a sua vida no urgente. Nele há pensamentos que, dirigidos aos paraguaios, atingem os paraguaios de todos os países do mundo.
“Enquanto a dor não te queime as entranhas, enquanto um dia de fome e abandono – pelo menos um dia – não te vomite para a vasta humanidade, não a compreenderás”.
E como um chamamento, profético, seguido por Soledad Barrett, hoje vemos: “Preparem suas crianças para que vivam e morram sem medo”.
Quando adentramos o espírito de Rafael, quanto mais o pesquisamos, mais ficamos em espanto com a solene descoberta, solene porque não só grave, mas séria: Soledad Barrett encarnou o mundo de palavras desse gênio.
Ainda que passemos ao largo de estranhos acasos, estranhos para não dizê-los impressionantes, acasos, para não dizer coincidências, como os dias de nascimento de Rafael e morte de Soledad, 7 de janeiro de 1876 e 7 de janeiro de 1973, um dia depois do  aniversário de Sol em 6 de janeiro, ainda assim há na formação e últimos instantes de Soledad uma encarnação das palavras de Rafael Barrett: “Por isso o mais forte do homem é uma ideia que não se curva”.
Parece-nos, quando o filme retorna à posição do seu corpo no necrotério, uma fé, concreta e tangível e indubitável, no valor das palavras, nas conseqüências da palavra, como um vigor realizado que descobre e faz crescer pensamento.
Um pensamento que foi até o sangue, real, doloroso, até a derradeira expressão, quase diria, mas que não é derradeira, porque é da natureza do pensamento a frutificação.
O poema Muerte de Soledad Barrett, belo poema de Mario Benedetti, não poderia jamais adivinhar o suplício da morte de Soledad, quando diz:
“los cables dicen que te resististe
y no habrá más remedio que creerlo
porque lo cierto es que te resistías
con sólo colocárteles en frente
sólo mirarlos
sólo sonreír”
Esse poema, que faz Soledad atravessar uma reta de melancolia nas ruas de Montevidéu, não poderia crer que ela fosse atraiçoada de maneira e forma tão desleal.
Porque não há como resistir – bater-se de frente contra – quando se é atacado por trás de um modo que indeciso ficamos em qualificá-lo de covarde, canalha ou infame.
Como se pode esperar – para assim resistir – o ataque de um filho ou de alguém a quem se ama?
O poema de Benedetti, escrito no calor da hora, sob o impacto dos informes da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco que relatavam ter sido um centro de guerrilha destruído, é poesia cuja construção de beleza cresce ainda hoje, quando recorda a vida de Soledad, não exatamente as circunstâncias miseráveis de sua morte:
“…con tu pinta muchacha
pudiste ser modelo
actriz
miss Paraguay
carátula
almanaque”
Ainda assim, comovente, quando o poeta imagina a morte de sua musa com um fim piedoso, assim como imaginamos, todos nós, mortais para quem a morte não pode ser mais cruel que a própria morte, e olvidamos, e esquecemos, e não queremos ver que as circunstâncias da morte podem torná-la ainda mais cruel.
“…ignoro si estarías
de minifalda o quizá de vaqueros
cuando la ráfaga de Pernambuco
acabó con tus sueños completos”
É natural que, por não saber, por ignorar o que de fato houve, mal finda a leitura das notícias trazidas por telegramas, é natural que o poeta recue ante a maior crueldade. Pois que fim grandioso seria, ainda que duro e doloroso, que belo fim seria a morte sob ráfagas, rajadas de metralhadoras, lufadas de vento, raios de luz de balas de Pernambuco!
Os corpos, quando metralhados, sobem. Dizem que sobem sob o impacto dos tiros. E assim atingidos com tal profundidade e rapidez, sob os clarões do fogo, sobem e caem sem vida. Quase, se nisso não vêem cinismo, é quase como um fim sem dor. Terrível, mas ainda não foi assim, sob ráfagas ou rajadas de metralhadora.
“por lo menos no habrá sido fácil
cerrar tus grandes ojos claros…”
Não, grande e terno poeta, a Soledad que conheceste em Buenos Aires, em Montevidéu, a bela e graciosa e feliz mulher, porque vivia no que acreditava, porque lutava para um mundo fraterno, porque se entregava ao mundo como quem se doa a uma fraternidade, estava na verdade, quando pela covardia foi apanhada, com os olhos sem que se fechassem.
Os dela estavam uma câmera que refletia em instantâneo o perverso das luzes. “Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror”, assim registrou esse instantâneo a advogada Mércia Albuquerque.
Do país onde te encontravas, Benedetti, apenas com a dor da perda e a memória da vida de Soledad, é natural que somente pudesses escrever, no calor da urgência, quando te referiste àquelas duas câmeras no rosto de Sol, com o amor que despertaram em ti:
“tus ojos donde la mejor violencia
se permitía razonables treguas
para volverse increíble bondad”.
Silêncio. Entram a romanza para violin y orquesta nº. 2 e o terror. O mais piedoso é o silêncio. Uma pausa, um parágrafo. Passemos ao largo, se quisermos, o parágrafo seguinte pode ser ultrapassado de um salto, assim como editamos com os olhos uma crua imagem no cinema.
“O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror”.
As santas virgens do Paraguai carregam o filho nos braços e a seus pés têm anjos, às vezes também luas em quartos minguantes. Sangue e feto aos pés só a guerreira Soledad Barrett Viedma.
‘CRIME CONTRA SOLEDAD, O CASO MAIS ELOQUENTE DA GUERRA SUJA DA DITADURA MILITAR NO BRASIL’ 
A entrevista abaixo entrevista foi publicada pelo Viomundo em 27 de junho de 2009.  Pouco antes do lançamento do livro “Soledad no Recife”, em julho de 2009.
Viomundo — Por que Soledad? Na sua coluna, você diz que só agora teve condições de mergulhar nas entranhas daquele momento. Por quê?
Urariano Mota — Há temas que nos perseguem, embora nem sempre a gente perceba. No meu primeiro livro, o romance “Os corações futuristas”, houve Cíntia, uma brava socialista.
Já no destino trágico de Cíntia havia um destino de Soledad. A “diferença” é que Cíntia se apoiava em outra pessoa, em outra militante. Enquanto Soledad, pelo menos quero crer e me empenhei muito por isso, Soledad é a pessoa. É a própria pessoa, pelo menos desejo ter realizado isso.
Por que só agora, 36 anos depois? De um ponto de vista pessoal, estou mais apto e cônscio de minhas fronteiras. De um ponto de vista mais geral, digamos, objetivo, o crime contra Soledad é o caso mais eloquente da guerra suja da ditadura no Brasil. A traição que ela sofreu expressa, com vigor, a traição contra jovens do sentimento mais generoso, que é o sentimento de humanidade, do mundo.
Viomundo — Era tua amiga? Como ela era?
Urariano Mota — Eu sou fundamentalmente um escritor.  Isso quer dizer, expresso minha experiência vivida, sempre. Ou em fatos biográficos, testemunhados e sofridos, ou em fatos imaginados, recompostos, ressurgidos, que são também, para a literatura, para o artista, fatos testemunhados e sofridos.
Soledad não era, ela é minha amiga. Mas não trocamos palavras em sua curta vida. Este livro diz a ela, fala as palavras que não podemos trocar, no Recife da ditadura Médici.
Mais de uma pessoa, para não dizer quase todas as pessoas, pensam que Soledad foi minha namorada, que eu a conheci pessoalmente.
Isso vem da narração e da forma apaixonada do relato.  Essa impressão surge, veio e vem do livro. Mais de um leitor já recebeu essa impressão.
Isso se deve à mistura, em um só corpo, de pessoas e fatos absolutamente reais, documentados, sabidos, ao sentimento que tenho daqueles dias. O documento vivido pela segunda vez. Então, é claro, o elemento “ficcional” virou factual.  Como ela era, como ela é, o livro dirá.
Viomundo —  É citado o Massacre da Chácara São Bento. Que lembrança isso traz?
Urariano Mota –– As notícias, publicadas em todo o Brasil em janeiro de 1973, dos seis “terroristas” mortos no aparelho da São Bento, são absolutamente falsas.  As “notícias” de terroristas mortos, naquele tempo, eram reproduzidas com a mesma redação e teor em toda a imprensa brasileira. Vinham da agência de segurança nacional.
Jamais houve o “massacre da chácara São Bento”. Houve a execução fria, planejada, de seis bravos militantes. A chácara foi o teatrinho criado para a execução de seis bravos.
Soledad Barrett Viedma e Pauline Reichstul – há testemunho público disso – foram assaltadas em uma butique no Recife, de surpresa espancadas sob pistolas e sequestradas. Em uma mangueira, por trás da butique, a proprietária notou depois sangue, vômito e urina. Isso de modo público, à vista de todos.
Jarbas Pereira Marques, outro militante, que aparece entre os terroristas da chácara, foi retirado da livraria onde trabalhava, à luz do dia.
Digo isso no livro, e repito aqui: em uma ditadura, até as datas dos jornais são falsas.
Viomundo — Soledad foi traída pelo cabo Anselmo, que a delatou ao delegado Fleury. Você conheceu o cabo Anselmo?
Urariano Mota –– Eu estudo o seu caráter há muitos e muitos anos. Ele é objeto de minha permanente observação e pesquisa. No entanto, jamais vi na rua o cabo Anselmo. Eu o conheço por seus cadáveres, que ele arrasta como uma cauda. Fui, sou amigo de quem ele perseguiu, traiu e matou.
Ninguém podia imaginar que ele fosse uma infiltração. Anselmo pertence à família dos agentes duplos, dos instrumentos de política que se chamam espiões. Isso quer dizer: ele é um mundo de mentiras.
Ele era e é um sistema em que mentiras armam mentiras, que constroem mentiras, sempre. Isso quer dizer, enfim, que tudo quanto esse instrumento dizia e disser, falar, deve ser posto sob absoluta desconfiança, porque ele mente por sistema, por hábito, por defesa, por ataque e natureza.
Não se pode acreditar em uma só das suas palavras. Quando ele diz eu amo, eu respeito, o bom senso deve traduzir de imediato, ele odeia e despreza.
Sou de opinião que não importa o seu último nome. Porque ele não tem outro nome nem outra face. Jonas, Daniel, José, com barba, sem barba, magro, gordo, com novos olhos, novas orelhas, novo nariz, nova boca, não importa. Ele será sempre, para onde for, Cabo Anselmo, aquele que gerou a morte da sua companheira, que trazia um filho no ventre.
Delegado Sérgio Fleury e o agente duplo Cabo Anselmo
PS do Viomundo: O delegado Sérgio Paranhos Fleury chefiou o Esquadrão da Morte, que assassinava pobres supostamente criminosos, comandou o Dops em São Paulo e atuou na Operação Bandeirante (1969) e no DOI-Codi.
Em 1969, depois de torturar frades dominicanos ligados à Ação Libertadora Nacional (ALN), Fleury preparou uma emboscada e assassinou o líder do grupo, Carlos Marighella.
Em 1971, torturou militantes do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) até localizar o refúgio do ex-capitão Carlos Lamarca, assassinado numa emboscada no sertão da Bahia.
Em 1973, ele comandou  a Chacina da Chácara São Bento, no Recife.
A versão oficial era que os militantes políticos Soledad Barrett Viedma, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, José Manoel da Silva, Pauline Reichstul e Jarbas Pereira Marques  tinham mortos durante uma suposta troca de tiros, na Chácara São Bento, onde a polícia descobrira “um aparelho terrorista”.
Torturados e mortos por ação do delegado Fleury e Cabo Anselmo: Eudaldo, Pauline, Soledad, José Manoel, Jarbas e Evaldo 
Essa versão foi desmascarada e a verdade apareceu: todos foram presos e torturados até a morte, provavelmente em lugares diferentes, tendo a chácara sido utilizada apenas para forjar o cenário do falso “tiroteio”.
Em 16 de dezembro de 1976, Fleury participou da Chacina da Lapa.
Agentes do DOI-Codi e do Dops invadiram uma casa no bairro da Lapa, em São Paulo, e assassinam a tiros de metralhadora dois dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Um terceiro, João Batista Franco Drummond, preso horas antes, foi torturado e morto na sede do DOI-Codi.
O delegado comandou as operações que assassinaram Carlos Marighella, Carlos Lamarca, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Franco Drummond
Sérgio Fleury era considerado o maior arquivo vivo do esquema de repressão.
Isso gerou suspeitas em torno de sua morte, em 1979, num suposto acidente em Ilhabela, no litoral de São Paulo, a bordo de seu iate.
O delegado teria, após ingerir elevadas quantidades de álcool, caído ao passar de uma embarcação a outra.
Não foi feita autópsia do corpo.
Em 2012,  um ex-delegado do Dops, Cláudio Antônio Guerra, afirmou em entrevista aos autores do livro “Memórias de uma guerra suja” que Fleury foi assassinado, numa queima de arquivo, por ordem de um grupo de militares e policiais.
Ironicamente, o atestado de óbito em que constou a morte por afogamento seguido de parada cardíaca foi assinado pelo médico legista Harry Shibata, o mesmo que atestou a farsa do suicídio do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura no DOI-Codi em 1975.
Marighella, presente!
Lamarca, presente!
Soledad, presente!
Eudaldo, presente!
Evaldo, presente!
José Manoel, presente!
Pauline, presente!
Jarbas, presente!
Pomar, presente!
Arroyo, presente!
João Batista, presente!
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