Apenas 1% das multas por desmatamento nos últimos 25 anos foram pagas
Autuações da categoria “flora” somaram R$ 35 bilhões, mas quitação não chegou a R$ 500 milhões, conforme pesquisa feita pelo De Olho nos Ruralistas; primeiro ano do governo Bolsonaro apresenta o pior percentual da história, ao recolher 0,13% do total das punições
Por Maria Lígia Pagenotto e Priscilla Arroyo
Nos últimos 25 anos, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aplicou R$ 34,8 bilhões em multas por desmatamento em todo o Brasil. Na média, apenas 1,4% desse valor — ou R$ 492 milhões — foi efetivamente pago. O restante está sendo discutido na justiça ou caducou. Os números fazem parte do levantamento feito pelo De Olho nos Ruralistas com base nas multas aplicadas pelo Ibama na categoria “flora” desde 1995.
O observatório identificou três períodos distintos em relação às quitações das multas, conforme a pesquisa feita a partir de mais de 280 mil autuações entre 1995 e 2020. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, recordista em número de multas, quitava-se mais. Em muitos anos o percentual superava 10%. Foi um período em que os valores das autuações ainda eram baixos, raramente acima de R$ 1 milhão, como mostra esta reportagem específica: “Multas por desmatamento tiveram seu ápice na era Lula e despencam com Bolsonaro“.
Durante as duas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva, a quitação das multas ficou entre 1% e 10%. Foi nesse período que o valor das autuações foi crescendo e chegou ao ápice, em 2008. Mas já se prenunciava a situação atual: desde 2010, em nenhum ano — pelo critério do valor das multas — o índice de quitação chegou a 1% do total. A tendência (até pela procrastinação dos pagamentos) é a de diminuição ao longo dos anos, até se chegar ao recorde negativo, durante o governo Bolsonaro: 0,13% em 2019.
PAGAMENTO DIMINUI, DESMATAMENTO AUMENTA
Durante o primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, o desmatamento na Amazônia aumentou 85% em comparação ao ano anterior, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A propensão de piora é confirmada com os dados de janeiro, quando o crescimento foi de 108% em relação ao mesmo período do ano passado. Foram 284 quilômetros quadrados de floresta devastados.
Antes desses dados serem divulgados, os servidores do Ibama já denunciavam as consequências nocivas para as florestas como reflexo do desmonte do órgão ao citar cortes no orçamento e redução do quadro de pessoal. “Não há como dissociar todos estes fatores ao aumento expressivo dos índices de desmatamento”, diz carta aberta assinada por dezoito servidores, publicada no dia 26 de agosto.
Em abril de 2019, diante dos cortes orçamentários no início do governo Bolsonaro, especialistas ouvidos pelo observatório anunciavam o aumento do desmatamento: “Corte de recursos do Ibama ampliará desmatamento“.
Ao se considerar a deficiência histórica do órgão em julgar os recursos das multas, não é difícil entender o motivo pelo qual 2019 apresentou o pior índice da história em relação ao pagamento das infrações. O Ibama aplica cerca de 3 bilhões de multas por ano, o que gera uma quantidade enorme de processos. Essa é uma tendência que já vinha se consolidando ao longo da última década, antes do atual governo de extrema-direita.
“A equipe de julgamento é menor do que deveria ser”, diz Suely Araújo, presidente do Ibama durante o governo Michel Temer, entre junho de 2016 e janeiro de 2019. “O órgão já teve 5 mil servidores e hoje tem 3 mil”. Além disso, informa a advogada e urbanista, os processos das autuações com multa superior a R$ 100 mil só podem ser julgados por servidores que ocupam cargo de chefia.
Na avaliação de Carlos Minc, ministro do Meio Ambiente durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva, a tendência diante da postura de Bolsonaro em relação aos temas ambientais é de continuidade da diminuição das quitações.”O atual governo destruiu órgãos ambientais, atou as mãos do Ibama e desacreditou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)”, enumera. “A expectativa é muito ruim”.
LENTIDÃO DA JUSTIÇA É UM DOS FATORES, DIZ EX-MINISTRO
Há dois principais fatores que corroboram com o cenário histórico de diminuição das quitações: a tática dos multados de recorrer à justiça e a morosidade na decisão dos processos. “Grandes empresas contratam os melhores escritórios de advocacia do País para recorrer às infrações”, diz Minc, ministro entre 2008 e 2010, período em que os valores das multas atingiram o ápice. “Por vezes, há fraude. Quem faz o processo pode deixar alguma brecha para facilitar um recurso futuro”.
A estratégia de postergar o pagamento é utilizada pelos demais multados — companhias de menor porte e pessoas físicas — que tenham recebido autuações polpudas. Entre 2013 e 2017, a média das multas por desmatamento foi de R$ 408 mil, enquanto a quantia média das punições pagas foi de R$ 11 mil. “Para montantes acima desse patamar, a opção tem sido acionar a justiça”, afirma Suely Araújo.
No período de Fernando Henrique Cardoso multava-se bastante, com algumas autuações milionárias, mas muitas ainda irrisórias, mesmo depois da promulgação da Lei de Crimes Ambientais, em 1998. O maior percentual de multas pagas se deu em 1997, um ano antes da lei, com a quitação de 64% das punições. Só que elas somavam somente R$ 32,9 milhões, muito abaixo da média atual, bilionária. Durante os dois governos do tucano (1995-2002), em média, 14,1% das autuações foram liquidadas.
A chegada de Lula ao poder — e de Marina Silva ao Ministério do Meio Ambiente — tornou o Brasil uma referência internacional na política ambiental. Um dos motivos foi a maior incidência de multas milionárias, especialmente na Amazônia, o que tendia a inibir a ação dos depredadores. Os pagamentos, no entanto, encolheram. Na média de 2003 até 2010, apenas 2,2% das punições foram quitadas.
Esse percentual minguou ainda mais durante os governos de Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. No período entre 2011 e 2019, somente 0,5% das infrações foram saldadas. Os números apontam para uma tendência de diminuição ainda mais acentuada. O período entre janeiro e outubro de 2019 — os dados dos últimos dois meses do ano não estão disponíveis — é, por enquanto, aquele com a menor incidência histórica de pagamento: do total de R$ 1,4 bilhão em multas aplicadas, apenas 0,13%, ou R$ 1,9 milhão, foi quitado.
BOLSONARO IMPÕE MAIS UMA INSTÂNCIA DE RECURSOS
A Controladoria Geral da União (CGU) analisou as multas ambientais — de todas as categorias, não somente flora — aplicadas pelo Ibama entre 2013 e 2017 e concluiu que o tempo médio de julgamento em primeira instância foi de três anos e sete meses. Os processos que englobam julgamentos em segunda instância tramitam, em média, por cinco anos e dois meses.
E tem caso que dura mais: 15% do total de decisões ocorreram após mais de seis anos do cometimento da infração. Na medida em que os processos se acumulam, cai progressivamente a eficiência da cobrança. A CGU apontou uma série de deficiências graves na área administrativa do órgão, que prejudicam especialmente os processos de valores mais elevados, com impacto acentuado nas autuações da categoria “flora”, que representa 78% do valor das autuações.
Para Suely Araújo e Carlos Minc, uma medida poderia amenizar esse déficit: a conversão das multas por prestação de serviços para a preservação, melhoria e recuperação do meio ambiente. A modalidade foi instituída em um decreto de 2008 mas, diante de dificuldades de efetivação, foi suspensa em 2012 e só retomada em 2017, durante o governo Temer.
Há duas maneiras de realizar essa conversão: direta, com serviços prestados pelo próprio autuado, e indireta, em que o autuado fica responsável por cotas de cotas de projetos de maior porte, previamente selecionados por chamamento público. Na forma direta, o desconto previsto no valor da multa é de 35%; na indireta, de 60%.
Em cerca de seis meses, o Ibama recebeu pedidos de conversão de multa de cerca de R$ 2,6 bilhões. Mas Bolsonaro passou a criticar essa modalidade por considerar que ela financia ONGs ambientalistas. Em abril de 2019, o presidente publicou o decreto 9.760/19, que altera as regras anteriores e institui mais uma instância de recurso administrativo: o Núcleo de Conciliação Ambiental, uma espécie de julgamento administrativo prévio que terá a palavra final sobre sanções aplicadas por fiscais.
Diante da política de desmonte da gestão do Ministério do Meio Ambiente, Carlos Minc diz que os déficits estruturais apontados pela CGU no Ibama dificilmente serão sanados nos próximos anos: “Não estamos lutando para melhorar nada, e sim para reduzir danos”.
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