Da paralisia administrativa capixaba à outra crise na segurança pública?
A paralisia administrativa estadual, provocada por um ajuste fiscal tosco e muito equivocado, afetou o humor dos servidores públicos, principalmente das forças de segurança pública.
Da paralisia administrativa capixaba à outra crise na segurança pública?
por Jornal GGN
Em fevereiro de 2017, o Estado do Espírito Santo viveu uma dramática crise na segurança pública. O governo estadual conduzia um forte juste fiscal contracionista desde 2015, no meio de uma recessão, e os capixabas viviam então sob uma forte contração nas atividades econômicas, algo que impactou no empobrecimento da população e no recuo das receitas dos municípios. A paralisia administrativa estadual, provocada por um ajuste fiscal tosco e muito equivocado, como se ele fosse um fim em si mesmo e como se as suas consequências não importassem efetivamente, afetou o humor dos servidores públicos, principalmente das forças de segurança pública.
O Brasil possui uma carga tributária regressiva, que pesa bem mais para os mais humildes, e a sonegação fiscal estimada é da ordem de 10% do PIB, segundo o Sonegômetro. Questões dessa ordem estão também presentes nas unidades federativas: renúncias fiscais sem transparência para empresários e elevada sonegação fiscal. Em junho de 2018, o padre Kelder Brandão denunciou: “As práticas de corrupção se tornaram mais elaboradas e o crime organizado se aperfeiçoou ainda mais, contando com novos agentes e entes políticos, e hoje quase não se ouve falar de crime organizado no Espírito Santo, embora todos saibam que ele nunca deixou de existir em terras capixabas”. Conhecido por seus posicionamentos em questões políticas e sociais, o padre Kelder ainda alertou para a contínua violação de direitos humanos no Espírito Santo. A ligação de políticos com grupos de extermínio é histórica no Espírito Santo, como foi o caso da Scuderie Le Cocq, uma milícia capixaba conhecida como esquadrão da morte.
Desde o início do seu governo, em janeiro de 2019, Renato Casagrande (PSB-ES) e vários de seus secretários, com destaque para pessoas comprometidas com a democracia, têm enfrentado uma oposição feroz por parte de grupos de extrema direita. Esses grupos se valem dos mesmos meios e expedientes praticados em outras unidades federativas: fake news, discurso do ódio, desestabilização institucional, criação de um sentimento de medo na população e destruição de reputações, basicamente. Trata-se de um processo que se estende desde as eleições de 2018, quando o atual governador não manifestou o seu apoio no segundo turno ao candidato presidencial que venceu de forma esmagadora no Espírito Santo, Jair Bolsonaro (ex-PSL). O candidato ao governo estadual do seu partido, o então deputado federal Carlos Manato (PSL-ES), que pertenceu aos quadros da Scuderie Le Cocq acima citada, em menos de três semanas, alcançou um percentual de votos de mais de 30%, projetando uma possível superação do candidato vitorioso, caso houvesse mais tempo de campanha.
Na prática, os grupos políticos comprometidos com um projeto de poder fascista e autoritário elegeram deputados, não apenas pelo PSL, e ocuparam espaços nas estruturas de poder no nível federal. O deputado delegado estadual Lorenzo Pazolini (sem partido), que foi eleito para a Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo com o apoio do ex-senador Magno Malta (PL-ES) e é próximo da ministra Damares, foi um grande defensor da candidatura de Jair Bolsonaro em 2018. Não causa estranheza que esse mesmo deputado integre, junto com outros bolsonaristas, o grupo de oposição ao atual governo de Renato Casagrande na Assembleia Legislativa.
Esse mesmo grupo se aliou a deputados estaduais eleitos com o apoio do governador anterior e conquistou a presidência da Assembleia Legislativa estadual, com a perspectiva de formação de um novo polo de poder político, no vácuo criado pela desistência do então governador Paulo Hartung (ex-MDB) em disputar a reeleição. Esse novo polo de poder, suprapartidário, caracteriza-se por práticas clientelistas, patrimonialistas, personalistas, desprovidas, portanto, de qualquer compromisso com o fortalecimento das instituições democráticas e republicanas.
Pela origem de vários de seus membros, pela presença de operadores políticos oriundos do governo anterior e devido à derrota acachapante da maioria dos candidatos apoiados pelo então governador Paulo Hartung, na prática, esse grupo pode ser definido como um neo-hartunguismo, sem Hartung. Esse polo de poder se distingue nas suas origens. O neo-hartunguismo é bolsonarista no sentimento de grupo, mas o ex-governador Paulo Hartung não o é. Tal fato revela um erro de cálculo político do ex-governador, que prestigiou a ascensão de pessoas descomprometidas com a democracia e as instituições republicanas. Hartung minimizou, assim como todos os seus parceiros históricos, a força do fascismo em ascensão, pois achava possível controlá-lo, assim como os conservadores alemães acreditavam que controlariam os nazistas.
Renato Casagrande disputou e foi eleito sabendo da magnitude do legado da crise da segurança pública de fevereiro de 2017. Sabia também que a paralisia administrativa imposta por seu antecessor demandaria repostas de curto prazo. Ele adotou medidas legais e administrativas no intuito de pacificar as forças estaduais de segurança pública. No entanto, Casagrande cometeu erros estratégicos básicos. O mais evidente deles foi ter indicado para a cúpula do sistema de segurança pessoas competentes, mas desprovidas de condições e vontade para controlar, sob os aspectos regimentais da disciplina e hierarquia, as tropas. Ressalta-se que o atual comandante da Polícia Militar do Espírito Santo tem ligações históricas com uma das instituições representativas de sua categoria.
Os episódios ocorridos nos dias 13 e 14 de fevereiro de 2020, véspera do Carnaval oficial da cidade de Vitória (ES), tiveram o condão de fortalecer um sentimento de medo junto à população. Os capixabas ainda têm na memória o que aconteceu em fevereiro de 2017, que, no limite, associado ao ajuste fiscal então praticado, representou a inflexão política e eleitoral do ex-governador Paulo Hartung, o que contribuiu para a inviabilização de sua candidatura à reeleição e inseriu de forma privilegiada a questão da segurança púbica na agenda política capixaba.
Esse fortalecimento político dos grupos ligados às forças de segurança pública veio crescendo desde as constituintes federal e estaduais, na redemocratização. O movimento desses grupos de se processou de maneira agressiva, especialmente com os militares, na imposição de dispositivos que os favorecessem enquanto categoria de Estado, mantendo intacto o modelo herdado da ditadura civil-militar que durou vinte e um anos, obstruindo quaisquer tentativas de transformação do modelo para o maior controle social. Nesse sentido, os governadores são, em boa medida, reféns dessas corporações, cujas ações impactam na vida social cotidianamente. A extrema direita brasileira tem nas forças de segurança pública uma base sólida de apoio.
Afinal, qual é a visão que os respectivos altos comandos das Forças Armadas possuem dos riscos que os fatos narrados acima apresentam? Qual é a visão das cúpulas do Poder Judiciário e dos Ministérios Públicos? Estariam essas instituições sendo lenientes com o sequestro do Estado democrático pelas forças de segurança pública, aliadas ao projeto fascista em curso?
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