Quinta-feira, 30 de abril de 2020


Conheça a ‘Caleidos Companhia de Dança’ com projetos voltados para educação e justiça social
Imagem: Caleidos Cia. de Dança / Divulgação
Por Cassiano Ricardo Martines Bovo
Conheça a história de Isabel Marques, empreendedora social, diretora e uma das idealizadoras da Caleidos Cia. de Dança, fundada em 1996, em Campinas. O instituto é voltado para dança, aulas com as crianças, palestras, projetos em escolas, com foco no trabalho com a interface entre a dança e educação voltada para justiça social. Em seu currículo Marques tem orgulho de ter trabalhado com Luiza Erundina e Paulo Freire na Secretaria da Educação do Município de São Paulo com objetivo de estruturar diretrizes relacionadas a dança e a educação no currículo escolar.
Cassiano (Justficando): Isabel, para iniciar, peço que você se apresente.
Isabel: Primeiramente, obrigada por ter essa oportunidade e poder falar sobre o nosso trabalho e lutar pelos direitos humanos, sempre mais. Eu sou formada em Pedagogia, pela USP, nos anos 80 e sempre me interessei em continuar a trabalhar com a dança, que já praticava há anos. Eu fui muito afortunada, pois ganhei uma bolsa para fazer o mestrado em dança na Inglaterra, mas não a convencional, balé ou alguma técnica codificada. Eu fui estudar no Laban Centre de Londres, que tem uma proposta de dança que se diferenciava das mais conhecidas, pois trabalhava com princípios voltados ao potencial de criação das pessoas. Naquela época, em 1988, isso era algo inusitado no Brasil, pois aqui não existia Mestrado em Dança, como hoje. Meu trabalho de pesquisa teve como foco pensar e investigar a dança e a educação no Brasil, isto é, como a dança poderia estar inserida no currículo das escolas brasileiras, o que já acontecia na Inglaterra. Mais do que trazer um modelo, minha ideia foi repensar uma forma de dança e de educação curricular dentro de parâmetros e princípios que dialogassem com o Brasil. Minha bagagem como graduada da USP era voltada para a Educação crítica e social, em especial o referencial de Paulo Freire. Voltando da Inglaterra, fui convidada para trabalhar na Unicamp, no curso de licenciatura em Dança. Erundina já era prefeita de São Paulo e tive o privilégio de ser convidada para trabalhar com a equipe do Paulo Freire na Secretaria da Educação para poder pensar as questões da dança e da educação no currículo escolar, aliás, foi a primeira vez que o trabalho de Paulo Freire foi oficialmente incorporado ao sistema escolar institucionalizado. Isso foi em 1991. Em 1996, fundei o Caleidos, a companhia de dança, que sempre teve um trabalho voltado para a interface entre a arte e a educação.

Isabel Marques, idealizadora do Caleidos Cia. de Dança
C: O que é o Caleidos?
I: O Caleidos é uma Companhia de Dança, um Instituto. A companhia, como já disse, foi fundada em 1996, em Campinas, quando eu ainda era professora da Unicamp. Em 1998, Fábio Brazil se juntou a nós na ideia de continuar o trabalho de interface entre a dança e a Educação, introduzindo a poesia nesse contexto. Em 2007 fundamos o Instituto Caleidos, que deu continuidade aos trabalhos do Caleidos Arte e Ensino, para termos um respaldo legal e continuar atuando com a dança em nossos cursos de formação, aulas com as crianças, palestras, projetos em escolas – sempre com foco nessa ideia de trabalhar com a interface entre a dança e educação voltada para justiça social.

Fábio Brazil fundou o Instituto Caleidos conjuntamente com Marques em 1996
Criamos uma Proposta Pedagógica da Arte no Contexto (PPAC) que inter-relaciona três eixos importantes de trabalho: a arte, o ensino e a sociedade. Essa proposta é base tanto para nossos cursos quanto para os processos de criação de espetáculos. A partir da PPAC, trabalhamos a arte voltada para uma transformação pessoal inserida num contexto social. Essa abordagem nos permite criar a interface com os direitos humanos, como ocorre claramente no Projeto “Leituras da Dança”.
C: Explique sucintamente como se dá essa conexão em alguns espetáculos do Caleidos.
I: Desde 2013 o Caleidos Cia. de dança tem um grupo de pesquisa chamado “Rosa Azul”, que investiga na teoria e na prática a violência na cultura do macho, entendido num sentido amplo, a violência que está inserida e é fruto de uma sociedade patriarcal capitalista. Ou, como li recentemente em um artigo do filósofo Paulo Preciado, investiga a violência na sociedade tecnopatriarcal neoliberal. Vários espetáculos do Caleidos Cia. seguem essa linha crítico social, por exemplo, em 2015 (e reencenado em 2017), o espetáculo “Mairto”, sobre o assassinato de um homossexual, a partir de uma pequenina notícia de jornal, de 2002. Nesse espetáculo, trouxemos a homofobia como foco e de forma mais ampla a LGBTQI+ fobia. Outro espetáculo foi o “Ana Bastarda”, em 2017, em que tratamos do feminino e do feminismo no Brasil e no mundo, sua história, a violência contra a mulher e a sororidade. Nesse trabalho, utilizamos verbetes do Dicionário das Mulheres do Brasil, mulheres de várias épocas, etnias e orientações sexuais. O Fábio transformou esses verbetes em poemas e eu leio em cena como cartas dessas mulheres, para os dias de hoje. Já o premiado espetáculo “A Notícia” (2017), um solo que trabalha diretamente com a questão da homofobia, circulou em várias cidades do Brasil. Esse espetáculo é um retrato autobiográfico dançado, com relatos de agressões a homossexuais no Brasil e no mundo. “A Notícia” trabalha na interface entre a dança, o teatro e o documentário, na perspectiva de denunciar as violações de direitos humanos por meio de casos concretos. Em breve vamos estrear o espetáculo solo “Reagente +”, sobre pessoas com HIV e “A viajante”, voltado para a discussão da igualdade de gênero. Temos outros espetáculos, que são sempre interativos, em que exploramos com o público a potência da dança: além de assistir, o público pode experienciar corporalmente o que estamos propondo.
C: O que é o projeto “Leituras da Dança?”
I: O “Leituras da Dança” é um projeto do Instituto Caleidos com o Caleidos Cia. que tem como pressuposto que há várias maneiras de ler o mundo, sendo a dança uma delas. Entendemos a arte como lentes para fazer essa leitura, sob outra perspectiva. Parafraseando Paulo Freire, que sugere que a “leitura da palavra é a leitura de mundo”, entendo que leituras da dança são também leituras de mundo e de suas facetas, possibilita compreendê-lo de outras formas.
O projeto está na sua terceira edição (a primeira foi em 2010 e a segunda em 2014) e tem apoio da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Fizemos uma ampla divulgação e das 200 escolas inscritas, da rede municipal de ensino, escolhemos 40, contemplando todas as regiões de São Paulo. Estudantes e professores, assim como funcionários e comunidade, poderão assistir participando de três espetáculos do Caleidos Cia., de cursos de formação e de um Seminário.
C: Quais são as etapas do Projeto?
I: O projeto se dá em três etapas:
1ª: Faremos uma apresentação para os professores cujas turmas estão inscritas no Projeto, de modo a prepará-los a respeito da temática de cada espetáculo e também construir com eles propostas para serem desenvolvidas nas escolas após a fruição do espetáculo com os estudantes. Este é um momento de conhecer, entender, experienciar, discutir as nuances do projeto com os professores responsáveis.
2ª: Diferentes grupos de alunos de diferentes escolas virão ao Instituto Caleidos assistir e participar dos espetáculos. Teremos em média 40 pessoas por espetáculo, totalizando aproximadamente 120 espectadores/participantes.
3ª: No fim do projeto, reuniremos todas as pessoas envolvidas num Seminário com a fala de dois especialistas, abordando os direitos humanos: direito à ludicidade, à diversidade sexual e à igualdade de gênero. As escolas trarão os trabalhos que elas fizeram durante o ano a partir do espetáculo e da formação aqui realizada. Será um momento de encontro, reflexão e de estar reunindo toda essa experiência que elas tiveram durante o ano, inclusive a relação entre o tema do espetáculo e os direitos humanos, a arte e a escola.
C: Quais são os espetáculos do Projeto?
I: São eles:
– “Travesso”: dançado por Ricardo Mesquita, Bruna Mondeck e Nicolli Tortorelli, direção de Isabel Marques. O tema central desse espetáculo, que reunirá dez escolas, é o direito à ludicidade e à brincadeira e é voltado para crianças da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I.
– “Reagente +”: Um solo autobiográfico de Ricardo Mesquita, dirigido por Isabel Marques e Fábio Brazil, cujos temas são a soropositividade e a estigmatização de pessoas que vivem com HIV. Além disso, esse trabalho discute a prevenção e a saúde pública. O espetáculo será dedicado a jovens de 14 anos (9o. ano) e também a estudantes que cursam a Educação de Jovens e Adultos.
– “A Viajante”: é um solo de minha autoria, dirigido por Fábio Brazil, e será encenado junto a professoras, gestoras, funcionárias e as mães de 10 escolas da rede pública. É uma conversa entre mulheres, mas os homens também são bem-vindos, desde que se sintam à vontade para discutir o tema. O espetáculo abordará as buscas do feminino e do feminismo nos dias de hoje. Também trabalharemos com as cartas, por meio de intensa troca entre essas mulheres.

C: Quais são suas expectativas em relação aos resultados do Projeto?
I: São muitos possíveis resultados, e nem sempre mensuráveis. Acredito que seja muito importante a formação de professores, a troca entre os artistas e os alunos, a sensibilização e o olhar crítico em relação às questões envolvidas e, sobretudo, a possibilidade dos professores trabalharem com a dança novamente em outros momentos em seus currículos, como multiplicadores.
C: Na sua opinião, qual a contribuição do projeto para a luta contra as violações de direitos humanos?
I: São várias instâncias, da mais básica até as mais elaboradas. Depende muito de onde o professor/a se encontrou no processo. A primeira, é a informação. “Você sabe que esse tema faz parte da Declaração de Direitos Humanos? O que são os direitos humanos?” Pode parecer óbvio, mas hoje, com todo um sistema armado com fake news etc. muitas pessoas desconhecem os direitos humanos.
A segunda instância diz respeito às especificidades tratadas em cada espetáculo, informando e sensibilizando o público para cada direito focado. No espetáculo “Travesso”, dedicado às crianças, discutiremos com os professores o direito à brincadeira na infância, proporemos jogos e brincadeiras baseadas no espetáculo, e trataremos também de como alimentar o lúdico mesmo na idade adulta. No espetáculo “Reagente+” trataremos dos direitos da comunidade LGBTQI+, o direito à diversidade e à liberdade sexual. Traremos a público sugestões de páginas e contas de Instagram sobre o tema HIV, soropositividade, IST, além de recomendações, materiais gráficos, com orientações; por ex., em relação à AIDS, ao SUS, o que você tem que tomar, que teste fazer; questões sobre a saúde pública. E em relação ao direito à igualdade de gênero, no espetáculo “A Viajante”, nosso foco será a violência contra a mulher e a sororidade. Por que as mulheres não se ajudam, não se auxiliam, não se defendem? Por que a competição acaba superando a sororidade? Trabalharemos com correspondências entre mulheres, formas de ajuda mútua que incluem aplicativos, grupos de estudo e coletivos artísticos.
De forma geral, podemos dizer que o Projeto Leituras da Dança trata de conhecer os direitos humanos informando, sensibilizando e trazendo possibilidades de ação dentro da escola e da sua comunidade. Então, o fundamental: informação, sensibilização e atuação.
C: De que maneira um projeto artístico (dança e poesia) contribui na luta pelos direitos humanos?
I: Em primeiro lugar, entendendo a arte como arte, e não como veículo, um meio. Por ex., no espetáculo “Reagente +”: uma coisa é a arte ser veículo, instrumento da saúde para ensinarmos (ou mostramos em cena) como a usar a camisinha. No nosso entender, esse não é o papel da arte, mas dos órgãos de saúde pública, de escolas, da família etc. O que quero enfatizar é que a arte vai além das questões funcionais e pragmáticas, pois com ela podemos ampliar, elucidar, aprofundar, apontar outras visões sobre essa questão (a prevenção contra o HIV, no caso), então, mais do que instrumental, a arte é (deve ser) problematizadora, conscientizadora, politizadora.
Outra questão primordial da dança (no nosso caso, na conexão com a poesia) é trabalharmos com o corpo e a corporalidade, o que nos permite estabelecer algumas conexões diferentes e diferenciadas com as pessoas e com a sociedade. Por exemplo, as três propostas do projeto (ludicidade, sexualidade, violência contra a mulher) tratam de questões que necessariamente acontecem, passam, se instauram no corpo, pelo corpo e com o corpo. Nada mais orgânico que a dança, arte do corpo, jogue luz para diferentes leituras dessas questões. Via dança/corpo, acabamos entrando nas questões sociais de outra forma, a dança traz mais uma contribuição para compreendermos os direitos dos cidadãos que se instauram nos corpos.
Além disso, nossos espetáculos têm uma especificidade que é algo que já trabalhamos há vinte anos: a interatividade, como eu disse acima; quer dizer, como o público pode participar da construção das cenas propostas pelos artistas? Nos espetáculos do Caleidos Cia., o público pode entrar também dançando e recriando a cena. Por exemplo, em “Travesso”, as crianças participam, entram em cena, brincam com o corpo de uma outra forma, sobretudo pensando nos dias de hoje em que a brincadeira da maioria das crianças é o celular, que é bom também, mas se virar uma coisa exclusiva se torna preocupante. E isso tem tudo a ver com os direitos humanos.
Humanizar as relações – papel da arte/dança – é uma forma de abordar os direitos humanos. Isso não deixa de ser uma outra maneira de politizar. Arte e educação são processos políticos, como já nos dizia Paulo Freire. Fundamentalmente, o Projeto Leituras da Dança 2020 vai trabalhar com informação, sensibilização e atuação, mas o que tem me preocupado muito atualmente, e ao Fábio Brazil também, é que podermos atuar como agentes politizadores. Esse é um quarto componente extremamente importante do projeto.
C: Como as pessoas podem conhecer e acessar o Caleidos e o Projeto?
I: O meu facebook pessoal (isabelmarquescaleidos), do Instituto Caleidos e do Caleidos Cia. é a melhor forma de acompanhar as nossas ações. Temos o Instagram @caleidos_cia e o site www.institutocaleidos.com . Nosso e-mail é sempre bem-vindo, caleidos2@gmail.com
http://www.justificando.com/2020/04/30/conheca-a-caleidos-companhia-de-danca-com-projetos-voltados-para-educacao-e-justica-social/
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Cassiano Ricardo Martines Bovo é doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP e ativista de Direitos Humanos na Anistia Internacional Brasil.
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