Um assassinato no Cais do Valongo: romance embaralha ficção e feridas da escravidão
Local de chegada dos negros escravizados, recentemente reencontrado no Rio, é o cenário do livro de Eliana Alves Cruz
30 de junho de 2020, 20h52
A trama do romance de Eliana Alves dos Santos Cruz se passa no tempo de Dom João e é ambientado no Cais do Valongo, região central da cidade do Rio de Janeiro. O ancoradouro funcionou por 20 anos e, estima-se, recebeu entre 500 mil e um milhão de africanos. No início das obras para a restauração da região portuária, em 2011, o cais foi reencontrado. Principal ponto de desembarque de escravizados nas três Américas, único vestígio material do tráfico negreiro no continente, foi declarado, em 2017, Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO.
É nesse cenário que vai aparecer o corpo de um tal comerciante Bernardo Lourenço Viana. A ficção de O Crime do Cais do Valongo (Malê, 2019) se mistura ao resgate histórico do que foram o fim do século 18 e o início do 19 num dos canais de ligação África–América.
A descrição do horror da escravidão é somada à narrativa sobre a ancestralidade nas culturas africanas, a potência de vida e as estratégias de resistência, junto com doses inesperadas de humor
A narrativa é feita pelos personagens Muana Lómuè, propriedade de Bernardo, e Nuno Alcântara Moutinho, seu devedor. Ele, filho de português com africana, nasceu livre, com “tez negra clara”, pertencente ao que a academia nomeia de camadas médias do período colonial. Ela, a principal voz, é uma mulher escravizada.
Eu nunca tinha lido um livro cuja fala fosse desse sujeito histórico.
Muana conta a saga de sua vida como criança e adolescente em Moçambique, a fuga da família da cidade de origem, a tenacidade de sua mãe para poupá-la do que hoje chamamos de mutilação genital, sua captura, a morte por doenças, suicídio, loucura e assassinato de seus próximos, a travessia em um tumbeiro e, finalmente, a escravização no Brasil.
A descrição do horror da escravidão é somada à narrativa sobre a ancestralidade nas culturas africanas, a potência de vida e as estratégias de resistência –Muana inclusive, secretamente, aprende a ler e a escrever–, junto com doses inesperadas de humor.
A zona portuária do Rio, na virada do século 19, seguiu concentrando ex-escravizados, alforriados e comunidades quilombolas, pelo que foi apelidada por Heitor dos Prazeres de Pequena África.
No bairro fica o Cemitérios dos Pretos Novos. Se você for visitar, não é fácil reconhecer que a casa com portões tímidos abriga um pedaço tão relevante de nossa História. O local é administrado com muita boa vontade, mas a base de doações e com pouca estrutura, pelo casal que era dono do edifício e descobriu as ossadas na década de 1990, ao abrirem as fundações para uma reforma.
O sítio deveria ser transformado em algo como os museus do holocausto que existem pelo mundo, ou como o museu de direitos humanos no Chile. Um espaço de memória, para que pudéssemos fazer o luto dessa barbaridade constitutiva da nossa formação
O sítio deveria ser transformado em algo como os museus do holocausto que existem pelo mundo, ou como o museu de direitos humanos no Chile. Um espaço de memória, para que pudéssemos fazer o luto dessa barbaridade constitutiva da nossa formação, com a estatura que a relevância do tema merece.
Mas não. Somos o país que mais recebeu escravizados na era moderna e não temos sequer um museu sobre o tema. Só em 2003 se criou lei determinando o estudo da história e cultura africanas, e até hoje isso ainda não está totalmente efetivado.
Aqui chegaram 4,5 milhões de africanos capturados. Estima-se que no Cemitério dos Pretos Novos jazem entre 20 e 30 mil corpos, depositados entre 1769 a 1830. Esse é o verdadeiro Crime do Cais do Valongo do livro de Eliana. É assim que a trama termina. Me desculpem o spoiler.
Marina Basso Lacerda é doutora em ciência política, autora do livro O Novo Conservadorismo Brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk, 2019)
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