Um comunista comanda a seleção brasileira no país dos generais
João Saldanha foi o treinador responsável pela classificação do Brasil para a Copa de 1970, cuja final completa 50 anos neste domingo. Para seu filho, há uma tentativa de “apagar da história” seu trabalho
Publicado 20/06/2020 - 15h40
Reprodução/Montagem RBA
São Paulo – Bicampeão mundial de futebol, o Brasil se preparava para disputar a Copa de 1966, na Inglaterra. Pouco antes de o campeonato começar, a seleção venceu a Suécia (3 a 2) em um amistoso. Em sua coluna no jornal Última Hora, o comentarista e então ex-treinador João Saldanha avisou: não se iludam. Disse que o time iria enfrentar outro tipo de adversário. E emendou afirmando que a partida “foi chinfrim e mostrou um escrete embaralhado, lento, confuso e indefinido”.
Não deu outra. O Brasil até estreou com vitória, 2 a 0 sobre a Bulgária. Mas perdeu os dois jogos seguintes, para Hungria e Portugal, ambos por 3 a 1, e foi eliminado ainda na primeira fase. O vexame pode ser resumido no título da crônica de Saldanha, logo depois: “Um troço”. Troço, no caso, era o time.
Escondendo o jogo
Saldanha já era treinador conhecido, por seu trabalho no Botafogo. Tornou-se ainda mais popular por sua linguagem informal como comentarista de rádio. Também era lembrado pelo temperamento forte – era conhecido como “João sem medo”. Mas outro dado tornava a indicação mais curiosa: era comunista assumido, ferrenho adversário do golpe instalado em 1964. E o Brasil de 1969 vivia o período mais violento da ditadura – e com um presidente-general fã de futebol.
A CBD era presidida por João Havelange, um cartola que pretendia comandar o futebol mundial. E conseguiu: poucos anos depois, e durante muito tempo, à frente da Fifa. Em entrevistas, ele afirma que o convite para Saldanha foi feito pelo diretor de futebol, Antonio do Passo. E que não houve consulta ao governo.
Na biografia que escreveu sobre Saldanha, publicada em 2007, o jornalista carioca André Iki Siqueira conta como foi o dia da apresentação do novo técnico da seleção. O então cronista do Última Hora não contou nem para os colegas. Foi para a CBD, no centro do Rio, e no carro o fotógrafo perguntou: “Quem você acha que é (o novo técnico)?”. Saldanha respondeu: “Sei lá”.
Surgem as “feras”
Na primeira entrevista coletiva, diante de jornalistas ainda atônitos, o novo técnico causou ainda mais surpresa ao anunciar que já tinha seu time titular. Tirou um papel do bolso e escalou: Félix; Carlos Alberto, Brito, Djalma Dias e Rildo; Piazza, Gérson e Dirceu Lopes; Jairzinho, Tostão e Pelé. Desses 11, oito seriam titulares na Copa, cuja final completa 50 anos neste domingo (21).
“Meu time são 11 feras dispostas a tudo”, avisou Saldanha. “Irão comigo até o fim. Para a glória ou para o buraco.” Passo e Havelange não gostaram do anúncio prévio. Dali para a frente, seriam muitos incêndios a apagar. Mas o time evoluiu, com mudanças pontuais, como a entrada de Edu na ponta esquerda.
As eliminatórias sul-americanas para a Copa foram disputadas em agosto. E o Brasil atropelou, tirando qualquer dúvida que houvesse sobre Saldanha. Seis jogos e seis vitórias, contra Colômbia (2 x 0 fora e 6 x 2 em casa), Venezuela (5 x 0 e 6 x 0) e Paraguai (3 x 0 e 1 x 0).
Vestiário trancado
Consta que no jogo contra a Venezuela em Caracas, Saldanha se irritou com o fraco jogo do primeiro tempo. Avisou que não daria instrução nenhuma, que os atletas tinham simplesmente de voltar e jogar. E não abriu o vestiário, deixando os jogadores na seca. Na segunda parte, a seleção fez cinco gols em menos de 20 minutos, três de Tostão e dois de Pelé.
Na véspera do jogo contra o Paraguai em Assunção, Saldanha foi para a rua enfrentar torcedores rivais que faziam barulho diante do hotel para não deixar os jogadores dormirem. Na partida de volta, no Maracanã, quase 200 mil pessoas empurraram o time.
Um jogo em especial consolidou a presença do novo técnico. Em 12 de junho de 1969, o Brasil recebia no Maracanã a Inglaterra, campeã mundial. Bell abriu o placar para os visitantes. Tostão e Jairzinho fizeram os gols da virada.
Histórias e versões
Os resultados animaram novamente a torcida. Mas em março de 1970, a três meses da Copa, Saldanha era demitido. Sua carreira como treinador da seleção durou pouco menos de um ano. Estreou e se despediu com vitórias por 2 a 1, em amistosos contra o Peru (7 de abril de 1969) e Argentina (8 de março de 1970).
Aqui, termina a história e começam as lendas e versões. Saldanha foi dispensado por ser militante do PCB e adversário do governo? Ele várias vezes garantiu que sim, porque a ditadura não iria tolerar um comunista ganhando prestígio popular em plena ditadura. Havelange, por sua vez, sempre negou.
Em 1969, sob o AI-5, o país pegava fogo. Em setembro, o MR-8 e a ALN organizaram o sequestro do embaixador norte-americano, Charles Elbrick, solto em troca da libertação de presos políticos. Dois meses depois, a ditadura matava Carlos Marighella, de quem Saldanha era amigo. No exterior, Saldanha aproveitava a condição de técnico da seleção e denunciava a repressão no Brasil, o país do “ame-o ou deixe-o”, slogan da época.
O time e o ministério
Uma das várias histórias que se contam é que Emílio Garrastazu Médici queria a convocação do atacante Dario. Boato ou fato, a história cresceu e chegou até Saldanha, que deu a conhecida resposta: o presidente organiza o ministério, eu cuido do time. O treinador não hesitava em chamar o presidente de assassino.
Saldanha foi substituído por Zagallo, que não mexeu tanto assim no time. Recuou Piazza para a defesa, por exemplo, e fixou Rivellino como titular, com a função de recuar para o meio, no lugar do ofensivo Edu. Organizou seu time, que fez um Copa impecável e ganhou o tri, vencendo a Itália na final (4 x 1). Mas havia uma base – e essa história não pode ser esquecida, lembra João Viotti Saldanha, filho do treinador e comentarista.
Perseguição
“Eu diria que a importância do João Saldanha está para a seleção brasileira de 1970 (lembrando que o povo não acreditava mais no futebol brasileiro em mundiais), assim como Isabel de Castela está para o descobrimento do Brasil”, diz. “Recebeu diversos convites para ser o técnico e no último disse que topava, mesmo sendo ciente de toda a perseguição que sofreria dentro do cargo, por conta de seu posicionamento político diante dos anos de ditadura militar”, acrescenta.
João lembra que seu pai costumava dizer, em casa, “que não cumprimentaria assassino de seus amigos e tampouco desceria a rampa do Planalto” ao lado do presidente-general. “Já Isabel financiou Cabral para aqui chegar e levar o que encontrassem de Caesalpinia Echilata Lam (pau-brasil) para comércio, além de poder vestir-se em tons rubros”, acrescenta.
“Estavam de olho no João desde a desclassificação na fase eliminatória de 1966. Anos de chumbo e os militares precisavam de um nome de peso para trazer de volta a auto-estima da seleção. Meu pai imediatamente revelou o seu time e conquistou a confiança de uma maioria desacreditada, apenas os invejosos e apoiadores de todo aquele massacre que se deu na época não apoiavam as feras do Saldanha. O resto sabemos bem, fizeram o capricho do ditador, assim como estão fazendo agora. Trataram de apagar da história um trabalho que rendeu o terceiro título mundial ao Brasil. Transformar a história é um péssimo hábito desse país, estamos acostumados a deixar pra lá!”
O gaúcho João Saldanha morreu em 12 de julho de 1990, aos 73 anos, em Roma. Estava ali para cobrir a Copa pela extinta TV Manchete. A final havia sido disputada quatro dias antes, com vitória da Alemanha sobre a Argentina por 1 a 0. A seleção brasileira foi eliminada justamente pelos rivais argentinos.
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