Paraguaios exigem “justiça e reparação” nos 8 anos do massacre de Curuguaty
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Recordando a memória, exigindo justiça e reparação, amigos, familiares, ativistas e religiosos do Paraguai recordaram nesta segunda-feira os oito anos do massacre de Marina Kue, em Curuguaty, num ato bastante restrito devido ao combate à pandemia do coronavírus.
Leonardo Wexell Severo
Recordando a memória, exigindo justiça e reparação, amigos, familiares, ativistas e religiosos do Paraguai recordaram nesta segunda-feira os oito anos do massacre de Marina Kue, em Curuguaty, num ato bastante restrito devido ao combate à pandemia do coronavírus.
Diante de 17 altares e velas lembrando os 11 camponeses e seis policiais que tombaram em 15 de junho de 2012, os manifestantes voltaram a denunciar a confrontação armada pelas forças antinacionais e do latifúndio para afastar o presidente Fernando Lugo, enterrar a democracia e inviabilizar de vez a reforma agrária. Desde então, sucessivos presidentes antinacionais têm feito o jogo estrangeiro na região, inclusive com o desfile de soldados das Forças Especiais dos Estados Unidos e o anúncio de um “acordo” para a instalação de uma base militar norte-americana em solo paraguaio.
Para a professora e ativista Guillermina Kanonnikoff, solidária aos camponeses, “eles foram condenados injustamente a muitos anos de prisão, recuperaram sua liberdade e ainda que isso represente uma vitória, o caso não está terminado”. “O julgamento em si ainda não terminou, temos 37 acusados, até os mortos são acusados, denunciados à revelia. Uma investigação foi supostamente aberta para avaliar as condições em que morreram os 11 camponeses, mas nunca se mexeu um dedo. No Supremo Tribunal Federal temos um processo de inconstitucionalidade levado pelo juiz Martínez Prieto, que nunca obteve resposta. Os libertados sequer foram indenizados e deve haver uma compensação, que nunca ocorreu”, acrescentou.
De acordo com Martina, irmã de Fermín e Luis Paredes, assassinados no massacre, “a única conquista que temos é a liberdade dos condenados, porém até agora não há justiça, pois ninguém investigou a morte dos camponeses. Estamos completamente à deriva”. “Os avanços alcançados se dão com base na unidade, no trabalho comunitário, na solidariedade entre companheiros e companheiras, no apoio das pessoas das organizações sociais, camponesas, de direitos humanos e da Igreja. Conseguimos isso através da luta”, frisou.
Ao longo dos anos a pressão popular foi determinante para que os trágicos acontecimentos não caíssem no esquecimento |
“ATAQUE FOI PLANEJADO”
Presente duas vezes ao mês em Curuguaty, a irmã Máxima Maria Barreto destacou o significado da comunidade ter feito “um pequeno ato religioso em memória dos oito anos do massacre”. “Foi importante para que, mesmo em meio à pandemia, não passasse desapercebido e pudéssemos encher as redes sociais com a lembrança daqueles trágicos acontecimentos, de um ataque orquestrado e planejado por gente de fora, e que transformou os camponeses em bodes expiatórios”, condenou.
Neste momento, defendeu a religiosa, “a luta de resistência da cidadania pressiona pela presença do Estado, que atualmente é totalmente nula e precisa ser materializada na construção de estradas, de rede elétrica e de um pequeno centro de saúde”. Da parte dos camponeses, assegurou, “a perseverança e o compromisso da comunidade são grandes e se fazem presentes nas suas hortas, na produção e na colheita de mandioca, de milho e amendoim para consumo próprio e para comercialização”.
Segundo Arnaldo Quintana, um dos quatro camponeses que ficou privado de liberdade por seis anos, há um futuro em Marina Kue, onde as pessoas são trabalhadoras, vão abrindo caminhos e colhendo frutos com as suas próprias mãos, apesar de não terem sido ressarcidos pela Justiça nem terem recebido qualquer tipo de ajuda por parte do Estado.
TREINAMENTO DA CIA
Como assinalaram os observadores internacionais acompanhantes do processo, naquela data, 324 policiais, tropas treinadas pela CIA e pelo exército dos Estados Unidos, fortemente armadas com fuzis, bombas de gás, capacetes, escudos, cavalos e até helicóptero cercaram 60 trabalhadores sem-terra, metade deles mulheres, crianças e idosos. Militares que agiram para defender a propriedade reivindicada pela empresa Campos Morombi, de Blas Riquelme, empresário e poderoso político ligado à ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). “A ação de franco-atiradores deu início ao tiroteio. E ao morticínio”, denunciaram.
O sangue meticulosamente vertido para as manchetes dos jornais e manipulado pelos programas de rádio e televisão inundou o Paraguai de mentiras, levando à cassação do presidente e à condenação de 11 lideranças do movimento [Rubén Villalba, 30 anos de prisão e mais cinco por medidas de segurança; Luis Olmedo, 20 anos; Arnaldo Quintana e Néstor Castro, 18 anos; Fanny Olmedo, Lucia Aguero e Dolores Lopes, 6 anos; Alcides Ramirez, Felipe Benítez, Alberto Casto e Juan Carlos Tilleria, 4 anos] por “homicídio doloso”, “organização criminosa” e “invasão de imóvel alheio”. Um processo completamente viciado, pois como já alertava o jornalista Rodolfo Walsh, “são pessoas que, para os jornais, para a polícia e para os juízes, não têm história, têm prontuário”.
Para o ex-presidente e atual senador Fernando Lugo, “a matança de Curuguaty foi preparada” porque inicialmente o que se pretendia fazer era uma “busca no assentamento”. Lugo recordou que durante seu governo foram realizados 62 desalojamentos pacíficos e que, inclusive, “muitos acreditavam que este seria mais um e se terminaria em cinco minutos”. “Porém, lastimosamente, creio que havia um esquema mafioso por detrás e ocorreu o que dolorosamente recordamos como o massacre de Curuguaty”, apontou.
CAMPANHA DE SOLIDARIEDADE
A partir da prisão uma grande campanha de solidariedade foi realizada no Paraguai e no exterior, uma comissão do Senado alertou para a “aberração jurídica”, ampliando a pressão até que, passados seis anos, em 2018, foi garantida a libertação de Néstor Castro, Luis Olmedo, Arnaldo Quintana e Rubén Villalba, os últimos quatro presos políticos.
Relembrando os trágicos acontecimentos, a Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy) está divulgando o vídeo http://codehupy.org.py/curuguaty-hoy-la-serie/
em que esclarece as execuções extrajudiciais e torturas, as falsidades jurídicas e as condições em que foram abandonadas as famílias afetadas. “Marina Kue ficou marcado em vermelho vivo com o sangue derramado de 17 compatriotas. O massacre foi seguido pela destituição controversa de Fernando Lugo, e um processo judicial que, para justificar os acontecimentos políticos, foram violados todos os tipos de direitos e garantias dos acusados”, ressaltou.
Conforme a historiadora e escritora Margarita Durán Estragó, o que está por detrás do temor dos latifundiários “é o exemplo dos camponeses de Curuguaty, de uma luta em que a sociedade busca pelas vias legais fazer com que a reforma agrária se concretize”. “Os grandes proprietários de terra querem manter o processo de Campos Morombi adormecido numa das salas penais, por isso seus representantes nada fazem, porque ele desperta esperança no povo paraguaio”, acrescentou a ativista de direitos humanos.
Pesquisador do Centro de Estudos Heñoi, Luis Rojas apontou que segundo o último censo agrícola, de 2008, “2,5% dos proprietários controlavam 85% das terras cultiváveis, quando aproximadamente 600 dos grandes fazendeiros detinham 12 milhões de hectares e 300 mil famílias ficavam com o restante”. “Das terras cultiváveis, 94% eram para a exportação e apenas 6% para o consumo interno. Mas isso, infelizmente, piorou muito de lá pra cá”, asseverou.
MÁRTIRES DE MARINA KUE
Investindo no poder do conhecimento, os moradores construíram no local a escola “Mártires de Marina Kue”, inaugurada em 2017 com 50 estudantes e que hoje já conta com 120 alunos do pré-escolar ao oitavo ano.
Segundo Martina Paredes, este ano foram construídas três novas salas de aula e foi incorporado um colégio próximo, o que tornou possível que as crianças recebessem merenda e kit escolar em diferentes ocasiões.
“Foi conquista de todas as famílias. Cada uma trabalhando em sua chácara. Como sabemos, o que cada trabalhador produz não tem preço. Será inaugurada uma casa pastoral. Temos um local na comunidade em que há escola, igreja, armazém de consumo, consultório, cozinha e em breve teremos um campo de futebol, esse é o projeto”, declarou Arnaldo.
Guilhermina reiterou que “Marina Kue vai avançando, plantando e colhendo com unhas e dentes, apesar da ausência do Estado”. “Esta gente lutadora precisa em primeiro lugar da regularização da terra e de atenção a tudo quanto é serviço de saúde, educação e à moradia digna. A terra é muito importante para que não fiquem inseguros diante de um novo despejo. Estamos mobilizados a seu lado para que isso nunca mais ocorra”, concluiu.
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