Roteirista lança longa que relaciona as violências da anorexia e da ditadura militar
Roteirista lança longa que relaciona as violências da anorexia e da ditadura militar
Moara Passoni foi responsável pelo roteiro do filme indicado ao Oscar "Democracia e Vertigem"
Catarina Barbosa
Brasil de Fato | Belém (PA) | 13 de Dezembro de 2020 às 11:27
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Imagem do filme Êxtase, de Moara Passoni - Divulgação/Assessoria
A anorexia é um distúrbio alimentar que atinge cinco em cada mil mulheres. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), no Brasil, 4,7% da população têm algum tipo de transtorno seja ele anorexia, bulimia ou compulsão alimentar, sendo que jovens de 14 aos 18 anos são os mais atingidos.
É sobre esse tema que a diretora Moara Passoni, roteirista do documentário indicado ao Oscar, Democracia em Vertigem – se debruçou durante 10 anos – para construir o seu primeiro longa intitulado Êxtase.
Passoni viveu a anorexia de forma profunda e conseguiu ver em outras histórias semelhanças com o que viveu. Das suas experiências e do relato de outras mulheres, Êxtase foi ganhando corpo.
O longa ganhou premiações em Inovação no Festival du Cinema Nouveau, festival de cinema independente do Canadá; e também de melhor filme no Lucas International Film Festival, da Alemanha. O filme também foi exibido no Visions du Réel, um festival de documentários de renome internacional, realizado todos os anos, em abril, em Nyon, na Suíça, e que em 2020 aconteceu de forma online.
No Brasil, o filme foi agraciado com o Prêmio da Abraccine como Melhor Filme Brasileiro de Diretor Estreante na 44ª Mostra Internacional de Cinema de SP.
Além disso, Moara faz um paralelo entre a opressão causada pela ditadura e a opressão vivida na anorexia. "Para mim, o filme trata, sobretudo, de uma relação da subjetividade e do poder. E sim, acho que a ditadura invade nossos corpos quando determina se a gente pode falar isso ou aquilo. Essa privação é extremamente invasiva e às vezes é invasiva violentamente e às vezes subjetivamente", diz ela.
Para além disso, a diretora e roteirista afirma que essa também é uma forma de ver com outros olhos a anorexia. "O filme é um instrumento de diálogo. Ele veio para abrir. Um dos grandes problemas da anorexia é que ou a gente banaliza, tratando como se fosse uma questão de ser bonita ou vira um tabu, não se fala".
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Moara, é possível perceber que o filme para além da anorexia tem uma abordagem política. Tu achas que a máquina de repressão da ditadura também vitimou os ditos filhos da ditadura? De que forma isso se traduz no teu filme?
Moara Passoni: Primeiro agradeço pela pergunta, porque ela é extremamente importante e acho que ela trata de um dos nós do filme.
Para mim, o filme trata, sobretudo, de uma relação da subjetividade e poder. E sim, acho que a ditadura invade nossos corpos quando determina se a gente pode falar isso ou aquilo. Essa privação é extremamente invasiva e às vezes é invasiva violentamente e às vezes subjetivamente.
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No caso desse filme o que a gente tem primeiro é uma invasão da ditadura na comunidade. E é uma invasão em que você não tem escolha a não ser reagir, porque da comunidade em que eu venho e da luta dos meus pais, não havia a pergunta "Vou ou não entrar na política?"
A política é necessária, porque são mulheres, sobretudo, que vieram dos anos 70 e não tinham absolutamente nada. Não tinham casa, não tinham água, não tinham educação, não tinham esgoto, enfim, necessidades radicais e básicas em muitas dimensões.
E não, apenas, isso. Eu acredito que há um grito de legitimidade, de reconhecimento e no caso do filme, o que está ali retratado é que – de fato –, primeiro a ditadura invade a comunidade e a comunidade reage.
Isso me lembra uma frase do Glauber Rocha (cineasta, 1939-1981) em que ele diz que na América Latina, a violência é um amor de transformação. Ao meu ver, é isso que acontece nesse filme, uma violência dupla, porque ao mesmo tempo em que você tem que reagir em uma busca por direitos, aquilo te penetra.
Eu li que tu vivestes a anorexia como um êxtase? De que forma isso ocorreu?
A ideia do êxtase, e para isso eu recorro à etimologia da palavra grega, quer dizer que você está fora do seu corpo e o que acontece na anorexia é uma desconexão radical entre cabeça e corpo, em que a cabeça começa a lutar de forma extremamente violenta para destruir o corpo.
É como se você padecesse nessa divisão – e essa divisão é muito da nossa cultura, onde uma coisa está separada da outra. E nesse processo tem um aspecto na anorexia em que você começa a sentir uma espécie de superpoder, você começa a criar uma forma de vida em que não depende de mais ninguém e isso começa a te dar uma sensação de onipotência, porque você não precisa nem mesmo do alimento.
Isso, pelo menos, foi a minha experiência de um jeito bastante intenso. E também tem algo físico em que os sentidos começam a ficar muito mais vivos, então, você experimenta o mundo de um jeito muito particular. Isso faz parte, inclusive, do jejum, quando se para de comer.
E é exatamente nisso que mora o perigo da anorexia, porque você passa a ter um prazer nesse jogo que você começa a fazer com você mesmo. Qual é o problema disso? É que esse é um êxtase que não inclui o outro. Ele é você transformando você no outro, você tentando destruir esse outro e você cada vez mais em uma sensação de estar fora do seu corpo: – Eu consegui eliminar o meu corpo e eu controlo esse corpo.
Acredito que, justamente, uma das saídas da anorexia para mim está na questão do erotismo e da abertura para o outro. Abertura para o outro em uma série de dimensões, mas – sobretudo – na questão da troca, de poder voltar a ter troca.
Como foi para aceitares que tinhas um transtorno alimentar e como foi ver isso ganhar forma na construção do roteiro do filme?
O que aconteceu comigo na anorexia não é que foi um processo em que eu tive que me aceitar, ele é um processo que começa a se instaurar aos poucos e quando você se dá conta, você está completamente dentro dele.
No filme Hiroshima, Meu Amor, a personagem da Marguerite Duras, ao falar do momento em que ela enlouqueceu, que foi quando o quando o amor da vida dela foi morto – ela francesa e ele um soldado alemão.
E nesse processo de loucura, ela diz: – A loucura é que nem a inteligência, quando você está dentro você não se dá conta dela, mas ela faz total sentido. No entanto, quando você está fora, é quase como se você não conseguisse mais acessá-la.
A anorexia, para mim, foi muito adentrar esse estado e acredito que sair é de alguma maneira poder me reaproximar desse espaço para conseguir entender esse lugar traumático e transformá-lo.
E eu aprendi que eu tinha anorexia quando os médicos me diagnosticaram e a palavra anorexia, na época, ela praticamente não fazia sentido para mim até mesmo por ser uma categoria médica e o que eu estava vivendo tem tantas dimensões, que a palavra não dava conta.
É como se a palavra não desse conta de descrever o que eu estava vivendo e talvez a questão principal para mim – de ser compreendida – é a que anorexia não é vontade de autodestruição, ela é uma manifestação de uma dor extremamente forte e ela é uma tentativa de cura dessa dor. É uma forma de tentar sobreviver no mundo que te oferece poucas possibilidades de se tornar adulto.
E retomando a primeira pergunta – para retomar essa questão do poder –, a personagem vai crescendo muito próximo das instituições e a gente vai ter esse recorte de que precisamos lidar com esse mundo que é hostil, no qual temos que negociar ou se adaptar.
Essas tensões todas fazem parte disso que chamamos anorexia. Tanto que, no filme, o único momento em que a gente usa a palavra anorexia é dentro do hospital, na carta ao médico, porque quem padece de anorexia ou pelo menos para a minha experiência essa palavra fazia muito pouco sentido, ela não dava conta de descrever o que eu estava vivendo.
Há cenas muito marcantes no filme sobre o processo de tratamento para o transtorno alimentar. Como foi o teu tratamento? Tu convives com a anorexia até hoje?
A grande batalha, no meu processo, foi ter que lidar com o desejo de novo. Ter fome de coisas que não são só o alimento, porque o alimento nunca é só alimento. E, sobretudo, na anorexia ele está significando uma série de coisas.
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Então, eu acredito que as minhas questões foram se transformando e talvez a mais difícil – no meu caso – seja lidar com uma certa estrutura narcísica, que perdura e que só agora estou conseguindo me dar conta de quão intensa ela é.
Mas não tenho mais nenhuma batalha em relação a coisas que são muito típicas da anorexia como controlar alimentos, emagrecer, etc. Isso não.
O processo de criação do filme durou cerca de 10 anos. Como foi a decisão de sair do lugar onde você sequer reconhece e até mesmo esconde o processo pelo qual passa para levar ele a uma esfera em que ele se torna público?
O primeiro momento em que eu me dei conta de que era preciso fazer esse filme foi quando encontrei um amigo meu chamado Maurício Ayer, que vem da literatura e da música. Na época, ele estava fazendo uma tese de doutorado sobre a Marguerite Duras e foi um encontro em que ele me falava muito sobre a Duras e eu falava muito sobre anorexia.
De alguma maneira, a obra da Duras me permitiu ressignificar aquela experiência e eu comecei a me dar conta que tinham coisas que eu havia vivido que não eram de uma loucura individual, elas faziam parte de uma coisa maior. Isso começou a me dar a vontade de fazer esse filme.
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Eu percebi que aquele sofrimento que, aparentemente, é tão individual, na verdade, tem uma série de elementos coletivos, que são estranhamente familiares.
Isso começou a mobilizar a necessidade inclusive de comunicar o que eu havia vivido naquele tempo, porque uma das grandes batalhas que eu tive na anorexia foi ser capaz de comunicar ao outro o que eu estava vivendo. Realmente você cria um claustro para você e quando eu comecei a perceber quantas dimensões haviam nessa experiência é que eu comecei a falar: Eu preciso fazer esse filme. Eu preciso comunicar o que vivi.
Tu achas que o processo de fala – comumente um caminho de cura –, de autoconhecimento sobre o processo pelo qual passastes e do reconhecimento e aceitação da tua história para além do individual é uma forma de conversar com pessoas que passaram pelo que passastes?
Sem dúvida o filme é um instrumento de diálogo. Ele veio para abrir. Um dos grandes problemas da anorexia é que ou a gente banaliza, tratando como se fosse uma questão de ser bonita ou vira um tabu, não se fala.
Para mim, esse é um tema extremamente rico e se a gente puder olhá-lo com um pouco mais de carinho, de cuidado, talvez ele diga coisas importantes sobre a nossa cultura.
Assim como eu acho que a histeria diz muito sobre a nossa cultura, como também disse no século passado e muitos autores consideram, inclusive, a anorexia como uma forma de histeria contemporânea.
Então, tem uma série de dimensões do feminino e retornando à primeira pergunta, eu acho que a ditadura e o poder quando ele é um poder opressor, do controle, sem dúvida, em algum lugar você vai gritar. Aquilo é uma bomba relógio e você conseguir se oprimir e a tal ponto de não falar, não poder viver, não poder sentir as coisas que você sente, em algum lugar isso vai ser expresso.
Na anorexia, essa dor acaba sendo expressa nessa magreza, ela se faz visível. Esse também é um dos elementos de perturbação que a anorexia trás para a gente.
https://www.brasildefato.com.br/2020/12/13/roteirista-lanca-longa-que-relaciona-as-violencias-da-anorexia-e-da-ditadura-militar
Edição: Rogério Jordão
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