Picanha e cerveja: farra nos quartéis expõe falta de controle civil sobre militares. - Editor - O CAMINHO É A PROFISSIONALIZAÇÃO E NÃO A POLITIZAÇÃO. FIM DO SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO E MAIOR CONTROLE CIVIL SOBRE AS FORÇAS ARMADAS.
OSTENTAÇÃO
Picanha e cerveja: farra nos quartéis expõe falta de controle civil sobre militares
Dinheiro público bancou 700 toneladas de picanha e milhares de litros de cerveja com sobrepreço de até 60%
Daniel Giovanaz
Brasil de Fato | São Paulo (SP) | 17 de Fevereiro de 2021 às 10:38
Forças Armadas cometem desvios de função e estão fortalecidas como nunca no governo Bolsonaro - Sergio Lima / AFP
Um levantamento realizado por deputados do PSB por meio do Painel de Preços do Ministério da Economia mostrou que 714,7 mil quilos de picanha e 80 mil unidades de cervejas foram comprados por militares do Exército e da Marinha em 2020.
Os parlamentares protocolaram uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o que consideram "uso de recursos com ostentação e superfaturamento" por parte das Forças Armadas.
A notícia, amplamente divulgada na última semana, foi recebida com surpresa por quem vê nos militares um antídoto para a corrupção e o uso irresponsável do dinheiro público.
Embora a maioria das compras tenha seguido à risca procedimentos licitatórios, a representação dos deputados do PSB ressalta que os militares pagaram até 60% a mais pelos produtos, em comparação com o preço médio de venda nos supermercados. As Forças Armadas não se pronunciaram sobre o caso até o momento.
Juliano da Silva Cortinhas atuou na Assessoria de Defesa da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2012 e 2013 e foi chefe de gabinete do Instituto Pandiá Calógeras, vinculado ao ministério, entre 2013 e 2016. Ele afirma que não se surpreendeu com os indícios de superfaturamento.
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“Trabalhei quatro anos no Ministério da Defesa e sei que são frequentes esses grandes eventos, recepções”, afirma. “Há uma tentativa do governo Bolsonaro de omitir dados e fazer com que haja menos fiscalização desse tipo de prática, mas ela existe e é recorrente nas Forças Armadas”, completa Cortinhas, que é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (IREL/UnB).
A ideia de que os militares seriam moralmente superiores aos civis esteve implícita em centenas de manifestações de rua desde 2013, que pediam intervenção militar contra a corrupção no país. Notícias como a da semana passada mostram que essa hipótese não se sustenta.
“Os militares fazem parte de um contexto social onde há corrupção, más práticas de gestão, e eles não estão desconectados dessa sociedade”, lembra o professor.
Para além do superfaturamento, Cortinhas chama atenção para articulações políticas dos militares para manter e ampliar suas benesses. “Não há força mais corporativista do que as Forças Armadas, e as práticas que eles utilizam para aumentar seus benefícios são diversas. No contexto atual, eles estão extremamente fortalecidos, e isso se torna ainda mais visível.”
Na reforma da Previdência de 2019, por exemplo, os militares não foram submetidos às mesmas regras dos civis e conseguiram manter seus privilégios.
Lucas Pereira Rezende, professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com estágio pós-doutoral em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), enfatiza que os militares não deveriam estar acima de nenhuma outra instituição em uma democracia.
“Essas denúncias só têm queimado a imagem das Forças Armadas e dos militares envolvidos”, diz. “E isso acontece porque as Forças Armadas jamais aprenderam a viver sob um regime democrático, jamais se entenderam e se apresentaram com transparência frente aos gastos públicos e suas próprias funcionalidades.”
Desvios de função
Mesmo com o aumento de 22% no orçamento do Ministério da Defesa no primeiro ano de governo Bolsonaro, o Brasil é o 13º país na lista de gastos militares. Em termos percentuais, o investimento é equivalente a 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB), menos que a média global de 2%.
“É claro que as ameaças que o Brasil enfrenta são menores que outros países. A América do Sul ainda é mais pacífica que outras regiões do mundo”, pondera Rezende.
Para os dois especialistas, o problema central é que as Forças Armadas extrapolam há décadas aquele que deveria ser o seu papel: a defesa nacional.
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“Existe uma série de desvios de função, em todo o governo federal. E isso se agravou no Bolsonaro, por parte dos militares, que estão dominando a gestão pública como um todo. Isso é ruim para os militares e para o país”, aponta Cortinhas.
O professor da UnB avalia que o Brasil não gasta demais com as Forças Armadas, mas gasta errado. Mais de 70% do orçamento é destinado ao pagamento de pessoal – o padrão estabelecido pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), por exemplo, é de 40%.
No Brasil, menos de 10% são investidos em equipamentos, o que reflete uma “visão da época da 2ª Guerra Mundial”, segundo Cortinhas: investe-se mais na ampliação do contingente e menos em equipamentos e inteligência.
“A partir dessas denúncias, tirar o orçamento dos militares, por vingança, não é a postura correta. O mais adequado é punir os responsáveis por esses desvios e estabelecer em definitivo o controle democrático e civil sobre as Forças Armadas”, analisa.
“Cabe aos civis definirem para que o Brasil precisa das Forças Armadas e quais são as suas responsabilidades, e cabe aos militares, atendendo ao controle civil, cumprir as funções para os quais eles foram destinados.”
O controle civil sobre os militares nunca foi estabelecido plenamente no país e se reflete, por exemplo, na obrigatoriedade do serviço militar.
“Esse debate é super bem-vindo, mas é tardio: para que servem nossas Forças Armadas, quais são os projetos estratégicos prioritários, e qual é o contingente necessário. Eu não vejo o serviço militar obrigatório como necessário", ressalta Cortinhas. "Muitos militares entendem isso como uma política de auxílio a cidadãos carentes, porque estão ensinando disciplina a eles, mas essa não é uma função dos militares.”
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Lucas Pereira Rezende considera despropositadas as críticas de que as Forças Armadas devem acabar, ou que "não servem para nada".
“Da forma como elas estão treinadas e atuando no Brasil, sim, a gente pode olhar e dizer que isso requer uma reforma estrutural urgente, quase que uma refundação das três forças – principalmente o Exército, que até hoje homenageia torturadores e ditadores”, critica.FIM A OBRIGATORIEDADE DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO MILITAR AOS JOVENS DE 18 ANOS.
“As Forças Armadas são extremamente importantes, seja na proteção de fronteiras, na proteção do espaço aéreo, mas também no alcance a áreas remotas, como parte da Amazônia. O que não está nessa lista de missões é, por exemplo, a participação ativa na política, que desestabiliza o regime democrático e fragiliza o Estado brasileiro”, finaliza Rezende.
Em 2020, segundo ano do governo Bolsonaro, a presença das Forças Armadas em cargos de primeiro e segundo escalão superou até mesmo o contingente da ditadura civil-militar (1964-1985).
https://www.brasildefato.com.br/2021/02/17/picanha-e-cerveja-farra-nos-quarteis-expoe-falta-de-controle-civil-sobre-militares
Edição: Leandro Melito
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