15 de mai. de 2017

“Crise” na USP: “universidades são cada vez mais objeto de disputas público-privadas”. -Editor- é o sucateamento para a entrega a iniciativa privada.

“Crise” na USP: “universidades são cada vez mais objeto de disputas público-privadas”

Crise fi­nan­ceira na USP e ventos pri­va­tistas? Ne­nhuma no­vi­dade no front, se­gundo o pro­fessor Cesar Minto, pre­si­dente da As­so­ci­ação dos Do­centes da USP e en­tre­vis­tado pelo Cor­reio para co­mentar as ra­zões que te­riam le­vado a pro­postas de de­mis­sões vo­lun­tá­rias e, mais uma vez, co­brança por de­ter­mi­nados cursos. Antes de tudo, o en­tre­vis­tado lembra que, mesmo com o nú­mero de ma­trí­culas tendo do­brado nos úl­timos 20 anos, o sis­tema de fi­nan­ci­a­mento das uni­ver­si­dades es­ta­duais pau­listas nunca mudou.

“Em maior ou menor grau, su­ces­sivos go­vernos fe­de­rais e es­ta­duais ig­no­raram – so­bre­tudo no que se re­fere ao fi­nan­ci­a­mento – a im­por­tância das ati­vi­dades re­a­li­zadas pelas uni­ver­si­dades e ins­ti­tutos pú­blicos, res­pon­sá­veis pela quase to­ta­li­dade da pes­quisa em ci­ência e tec­no­logia no país. Isso fez com que os ‘frutos’ hoje co­lhidos ex­pres­sassem o des­man­te­la­mento de tais ins­ti­tui­ções. A Lei 13.243/2016, o Marco Legal da Ci­ência, Tec­no­logia e Ino­vação, é prova cabal”, ex­plicou.

Ou seja, o go­verno Temer apenas es­taria a ra­di­ca­lizar e ace­lerar uma ten­dência his­tó­rica, com forte con­teúdo ide­o­ló­gico ex­clu­dente e ve­ri­fi­cada em toda a gestão da edu­cação pú­blica bra­si­leira da cha­mada era ne­o­li­beral. Desse modo, o pro­fessor volta a frisar que a grande ameaça passa por sobre o tripé en­sino-pes­quisa-ex­tensão (e-p-ex). Tudo para des­locar os me­lhores re­cursos pú­blicos e so­ciais para os in­te­resses pre­do­mi­nantes de nossa com­ba­lida so­ci­e­dade.

“Este ataque se ex­pressa de vá­rias formas, re­ve­lando di­versos graus de abran­gência, mais agudos nos go­vernos FHC e, nos go­vernos Lula e Dilma, na adoção de pro­jetos como o Prouni e o Reuni que, res­pec­ti­va­mente, im­plicam no fi­nan­ci­a­mento à ini­ci­a­tiva pri­vada e na fle­xi­bi­li­zação do e-p-ex. Pro­gres­si­va­mente, tais ati­vi­dades têm sido ob­jeto de dis­putas pú­blico-pri­vadas cada vez mais cons­tantes, ana­lisou.

A en­tre­vista com­pleta com Cesar Minto pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Em pri­meiro lugar, quais as ra­zões para a crise que afeta uma das prin­ci­pais uni­ver­si­dades do país?

César Minto: Ao con­trário do que alega a Rei­toria, não es­tamos vi­vendo uma crise fi­nan­ceira na USP; es­tamos, sim, sendo sub­me­tidos a uma crise de fi­nan­ci­a­mento, de­vido à in­su­fi­ci­ência de re­cursos por parte do go­verno do es­tado. As três uni­ver­si­dades es­ta­duais pau­listas so­bre­vivem desde me­ados dos anos 90 com 9,57% do ICMS-quota parte do Es­tado, apesar da enorme ex­pansão ocor­rida de 1995 para 2015 (úl­timos dados dis­po­ní­veis).

A tí­tulo de exemplo, no caso da gra­du­ação na USP, houve au­mento de 111% dos cursos e de 76% das ma­trí­culas. Como se isto não bas­tasse, o go­verno se­quer cumpre a des­ti­nação plena desse per­cen­tual. Antes de ser cal­cu­lado, Alckmin des­conta os re­cursos para Ha­bi­tação, des­con­si­dera o que é re­co­lhido em atraso, de­vido a pro­gramas de par­ce­la­mento in­cen­ti­vado (PPI), e in­clui re­cursos re­la­tivos a pa­ga­mento de apo­sen­tados e pen­si­o­nistas.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você des­creve a si­tu­ação vi­vida por fun­ci­o­ná­rios, pro­fes­sores e pes­qui­sa­dores?

César Minto: É dra­má­tica a si­tu­ação desses ser­vi­dores, agra­vada na gestão de Marco Antônio Zago e V. Agopyan (reitor e vice, es­co­lhidos em chapa). Há anos não há con­tra­tação re­gular de pes­soal (por con­curso pú­blico de efe­ti­vação), o que so­bre­car­rega os ser­vi­dores na ativa. Se não bas­tasse, a Ad­mi­nis­tração Cen­tral adotou dois planos de de­missão vo­lun­tária (PDV) que re­sul­taram na perda de 3.500 fun­ci­o­ná­rios téc­nico-ad­mi­nis­tra­tivos.

Se vingar a nova pro­posta da Rei­toria de chegar a uma re­lação do­centes-fun­ci­o­ná­rios de 40%-60% (hoje é cerca de 30%-70%), su­pondo que não haja dis­pensa de pro­fes­sores, a USP per­deria ou­tros mi­lhares de fun­ci­o­ná­rios. Sem dú­vida, tal ce­nário co­lo­caria em risco a cha­mada “ex­ce­lência” do tripé en­sino-pes­quisa-ex­tensão, que cons­titui as ati­vi­dades-fim da uni­ver­si­dade.

Cor­reio da Ci­da­dania: Qual li­gação desta crise com a das de­mais uni­ver­si­dades, que passam por um pe­ríodo de forte ar­rocho, ocu­pa­ções e im­passes?

César Minto: Em maior ou menor grau, su­ces­sivos go­vernos fe­de­rais e es­ta­duais ig­no­raram – so­bre­tudo no que se re­fere ao fi­nan­ci­a­mento – a im­por­tância das ati­vi­dades re­a­li­zadas pelas uni­ver­si­dades e ins­ti­tutos pú­blicos, res­pon­sá­veis pela quase to­ta­li­dade da pes­quisa em ci­ência e tec­no­logia no país. Isso fez com que os “frutos” hoje co­lhidos ex­pres­sassem o des­man­te­la­mento de tais ins­ti­tui­ções.

A Lei 13.243/2016, o “Marco Legal da Ci­ência, Tec­no­logia e Ino­vação”, é prova cabal, pois per­mite a cri­ação de Ins­ti­tui­ções Ci­en­tí­ficas, Tec­no­ló­gicas e de Ino­vação (ICT) como ór­gãos pú­blicos ou pes­soas ju­rí­dicas de di­reito pri­vado “sem fins lu­cra­tivos”, in­clu­sive sob forma de Or­ga­ni­za­ções So­ciais (OS), bem como a cri­ação de Nú­cleos de Ino­vação Tec­no­ló­gica (NIT) de di­reito pri­vado no in­te­rior das ins­ti­tui­ções pú­blicas, para o de­sen­vol­vi­mento de ati­vi­dades de pes­quisa, que podem:

1) re­ceber re­cursos pú­blicos dos entes fe­de­rados e de fun­da­ções ditas “de apoio” para co­brir todas as suas des­pesas;

2) uti­lizar pes­soal e re­cursos pú­blicos em ati­vi­dades de pes­quisa para em­presas pri­vadas;

3) usar in­fra­es­tru­tura e re­cursos pú­blicos em ati­vi­dades para em­presas pri­vadas.

Caro(a) leitor(a): dá para en­tender o mo­tivo das ocu­pa­ções, in­de­pen­den­te­mente de con­cor­darmos ou não com essa forma de luta?

Cor­reio da Ci­da­dania: Qual o atual con­texto da edu­cação pú­blica su­pe­rior no Brasil? O que está em jogo do mo­mento em que um go­verno con­ser­vador tenta em­placar di­versas re­formas?

César Minto: O con­texto atual da edu­cação su­pe­rior no país é o do re­cor­rente ataque ao mo­delo de uni­ver­si­dade que re­a­liza, de forma in­dis­so­ciada, o tripé en­sino-pes­quisa-ex­tensão (e-p-ex). A ideia cen­tral pode ser sin­te­ti­zada no mote “edu­cação de acordo com a ‘cli­en­tela’ a ser aten­dida”, dito de ma­neira bem ob­je­tiva, prover a edu­cação cor­res­pon­dente à ma­nu­tenção da classe so­cial à qual o in­di­víduo per­tence.

Esse ataque se torna mais evi­dente no go­verno Collor, cujo mi­nistro da Edu­cação, José Gol­dem­berg (ex-reitor da USP), di­gamos, tornou “ofi­cial” a crí­tica ao mo­delo e-p-ex. Desde lá, este ataque se ex­pressa de vá­rias formas, re­ve­lando di­versos graus de abran­gência, mais agudos nos go­vernos FHC e, nos go­vernos Lula e Dilma, na adoção de pro­jetos como o Prouni e o Reuni que, res­pec­ti­va­mente, im­plicam no fi­nan­ci­a­mento à ini­ci­a­tiva pri­vada e na fle­xi­bi­li­zação do e-p-ex via exi­gência de al­cance da taxa de con­clusão de 90% nos cursos pre­sen­ciais e a re­lação de 18 es­tu­dantes por pro­fessor.

Num olhar menos atento, isso pode pa­recer de­se­jável, mas con­si­de­radas as con­di­ções es­sen­ciais para uma for­mação de qua­li­dade, seja para a for­mação de do­centes, seja para a for­mação dos de­mais pro­fis­si­o­nais, re­mete à adoção de metas, bem ao teor mer­cantil im­posto pelos se­tores so­ciais que do­minam hoje a po­lí­tica mais geral, in­clu­sive para a Edu­cação Su­pe­rior.

Cor­reio da Ci­da­dania: No­va­mente, vemos a ideia da co­brança de men­sa­li­dade em de­ter­mi­nados âm­bitos do en­sino su­pe­rior, como em pós-gra­du­a­ções. O que co­mentar a este res­peito? Trata-se de algo acei­tável so­cial e eco­no­mi­ca­mente?

César Minto: Isso é ina­cei­tável. Tal co­brança só tor­naria, à po­pu­lação mais pobre, ainda mais in­vi­a­bi­li­zado o acesso e a per­ma­nência no en­sino su­pe­rior (gra­du­ação e pós-gra­du­ação). Afora o fato de a ide­o­logia do­mi­nante in­duzir às ca­madas so­ciais mais su­bal­ter­ni­zadas a ideia de vencer na vida via es­co­la­ri­zação formal, o que é um es­te­li­o­nato so­cial, di­gamos assim, pois cabe lem­brar que tal es­tra­tégia é inad­mis­sível, entre ou­tros as­pectos, porque trans­fere a res­pon­sa­bi­li­dade do su­cesso pro­fis­si­onal ao in­di­víduo e des­con­si­dera as con­di­ções às quais está sub­me­tido.

Num sis­tema ca­pi­ta­lista, o setor so­cial do­mi­nante ten­tará sempre atri­buir ao in­di­víduo a res­pon­sa­bi­li­dade por sua in­serção/não in­serção na so­ci­e­dade. Esse dis­curso tem grande di­fusão na so­ci­e­dade e pre­cisa ser am­pla­mente com­ba­tido por todos aqueles que o cons­tatam e dele di­vergem.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais se­riam, a seu ver, as me­lhores so­lu­ções para fi­nan­ciar a USP, con­si­de­rando nosso con­texto de crise econô­mica?

César Minto: O con­texto atual de crise econô­mica no país apenas an­te­cipou o que ocor­reria às uni­ver­si­dades es­ta­duais pau­listas ao longo do tempo, como já am­pla­mente ex­pli­ci­tado pelo Fórum das Seis, ar­ti­cu­lação po­lí­tica que or­ga­niza do­centes, fun­ci­o­ná­rios e es­tu­dantes da USP, Unesp, Uni­camp e do Centro Paula Souza.

A “crise econô­mica” alar­deada pela pro­pa­ganda ofi­cial induz a so­ci­e­dade a de­fender a ne­ces­si­dade da adoção de me­didas aus­teras, indo ao en­contro do dis­curso dos se­tores so­ciais mais con­ser­va­dores nessas ins­ti­tui­ções. Essa re­a­li­dade pre­cisa ser com­ba­tida, por meio de de­núncia pú­blica e de dis­puta do fundo pú­blico, seja no âm­bito do es­tado (Lei de Di­re­trizes Or­ça­men­tá­rias, LDO), seja no âm­bito das ins­ti­tui­ções (di­re­trizes or­ça­men­tá­rias es­pe­cí­ficas).

Em sín­tese, a dis­puta do fundo pú­blico tem de ser re­a­li­zada de forma re­gular e sis­te­má­tica, pois tal con­dição é im­posta pela luta de classes numa so­ci­e­dade ca­pi­ta­lista, quei­ramos ou não.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como en­xerga a USP de um modo mais amplo? Quais seus prin­ci­pais de­feitos e vir­tudes es­tru­tu­rais?

César Minto: A USP tem há tempos uma es­tru­tura de or­ga­ni­zação e fun­ci­o­na­mento ex­tre­ma­mente hi­e­rar­qui­zada que, salvo me­lhor juízo, perde apenas para as ins­ti­tui­ções cas­trenses. E, cá entre nós, tal ca­rac­te­rís­tica não abona ne­nhuma ins­ti­tuição, so­bre­tudo aquelas de ca­ráter edu­ca­ci­onal. Apesar de suas pre­ten­sões nada so­ciais, pois for­jada para atender os in­te­resses da elite do­mi­nante e de sua re­pro­dução, as ati­vi­dades de en­sino, pes­quisa e ex­tensão re­a­li­zadas pela USP ao longo dos tempos con­tri­buíram para o avanço da ci­ência e tec­no­logia no país – o que é de in­te­resse do con­junto da so­ci­e­dade.

Con­tudo, pro­gres­si­va­mente, tais ati­vi­dades têm sido ob­jeto de dis­putas pú­blico-pri­vadas cada vez mais cons­tantes. En­quanto pa­trimônio pú­blico pau­lista e na­ci­onal, ela não pode ficar ex­posta aos in­te­resses par­ti­cu­lares de quem quer que seja. Suas ati­vi­dades es­sen­ciais de en­sino, pes­quisa e ex­tensão devem ser ob­jetos de cons­tante de­fesa da co­mu­ni­dade aca­dê­mica e da so­ci­e­dade pau­lista e bra­si­leira!

Leia também:



Adusp de­nuncia o do­mínio au­to­ri­tário na USP – en­tre­vista com César Minto e He­loisa Bor­sari em 2012.

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.
http://www.correiocidadania.com.br/social/12428-crise-na-usp-universidades-sao-cada-vez-mais-objeto-de-disputas-publico-privadas
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