22 de out. de 2017

O ovo da serpente | entrevista a Vicente Vilardaga. - Editor - 2017 E OS 50 ANOS DA PEÇA O REI DA VELA. A RESISTENCIA, COM RESISTENCIA.





O ovo da serpente | entrevista a Vicente Vilardaga


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foto: Jennifer Glass -
Matéria originalmente publicada no blog Inconsciente Coletivo, do Estadão.
O diretor José Celso Martinez Corrêa se sente mais ou menos como se sentia, há 50 anos, em 1967, às vésperas do AI-5, quando encenou pela primeira vez a peça O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, no teatro Oficina: apreensivo, cercado por forças conservadoras, temendo pelo que possa acontecer para o país, a classe artística e o teatro. Ele acha que os momentos são muito parecidos e que a peça de Oswald, que, estreia amanhã, uma remontagem histórica no Sesc Pinheiros que fica em cartaz até o dia 19 de novembro, detecta essas afinidades do insconciente coletivo entre as duas épocas.
O que Zé Celso mais teme, em suas palavras, é o avanço da repressão, do nazismo, do fascismo e da violência de Estado, que ele já vê instalados na sociedade. É hora de se preocupar. Ele acha que o ovo da serpente já se abriu e as forças do mal se alastram. “Essa peça hoje é mais forte ainda do que foi quando ela foi encenada, em 1967. A violência hoje é maior”, afirma
Zé Celso deu essa entrevista para o blog especialmente influenciado por um vídeo da atriz Fernanda Montenegro, divulgado pelo movimento 342 Artes, no qual ela faz um apelo contra a censura artística, denuncia a cultura da repressão e defende a cultura da liberdade.
Zé Celso também recebeu de Fernanda uma carta de apoio para uma luta que vem enfrentando para preservar o teatro Oficina. “É tanta porrada que todo mundo está acovardado. No maravilhoso depoimento da Fernanda Montenegro, ela se dirige aos políticos ainda honestos que existem e fala do processo de desacovardamento. Olhe o que está acontecendo e tome uma posição”, afirma Zé Celso. “Foi um golpe. Golpe! Foi um golpe pior que o de 1964 porque, além de conter os militares que já estão conspirando, é apoiado por esses partidos desses jovens que nem sabem o que é uma ditadura, como esse Kim não sei o quê.”
A encenação cinquentenária do Rei da Vela celebra os 80 anos de Zé Celso e do ator Renato Borghi, que interpreta Abelardo I. Zé Celso faz o papel transexual de Dona Popoca, uma virgem sexagenária. A cenografia está a cargo do artista Hélio Eichbauer, que recriou o palco giratório original no Sesc Pinheiros. A montagem conta com vários atores que passaram pelo grupo durante meio século. A peça foi escrita por Oswald em 1933, sob os efeitos da crise financeira de 1929 e da ascensão dos regimes totalitários na Europa. É a fábula decadente de um usurário, Abelardo I. A obra se passa em um escritório de agiotagem e o protagonista – banqueiro e rei da vela, arruinado por dívidas com os americanos, achaca clientes devedores e faz suas negociatas com Abelardo II, que depois lhe dará um golpe e o sucederá no negócio.
Zé Celso está especialmente preocupado com uma reunião que haverá na próxima segunda-feira no Condephaat, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, para se discutir e definir o destino do terreno em torno do teatro Oficina, onde o empresário Silvio Santos pretende construir três torres residenciais. Está em jogo também a preservação da integridade do projeto do teatro feito pela arquiteta Lina Bo Bardi, e listado como um dos melhores do mundo pelo jornal inglês The Guardian. Zé Celso diz que o projeto de Silvio Santos ameaça o Oficina e descaracteriza a região.
O Oficina está, atualmente, em seu terceiro projeto arquitetônico. Houve um primeiro que foi destruído pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), em 1968, um segundo projetado pelo arquiteto Flávio Império, que foi tombado pela Condephaat, e o terceiro, de Lina Bo Bardi, que modificou a construção de Flávio Império e deu a configuração atual ao projeto. O prédio atual contém um janelão, que seria coberto caso os advogados consigam aprovar o empreendimento imobiliáriário de Silvio Santos. “Eles querem que se construa as torres em torno do teatro e querem que feche o vidro que a Lina colocou lá porque eles acham que muda o projeto original”, explica Zé Celso.
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“Nunca na minha vida, mesmo durante a ditadura em que fui torturado, em que fui exilado, vivi uma situação igual. Eu me sinto diariamente golpeado”.

“Toda a burguesia com o golpe apoiou a extrema direita. A burguesia não sabe o que fazer. Esta época é tão torturante quanto o AI-5.”

“Já abriu o ovo da serpente, é só você ver que a cada dia você recebe um golpe. Semana passada foi a Cármen Lúcia que, na confusão mental dela, votou a favor da liberdade desse Congresso, um bando de gente ignorante e corrupta, para salvar o Aécio. Todo dia tem alguma coisa.”

“E hoje eu saquei que o Chico Buarque para escrever Roda Viva se inspirou no Rei da Vela. Vou escrever uma carta para o Chico porque a peça, até agora, está proibida. Vou montar Roda Viva.”

“O Rei da Vela descolonizou totalmente a cultura brasileira. Hoje está havendo um processo nazista de recolonização do país.”

“Todas as peças que eu fiz foram criadas como um xamã faz sob efeito de drogas, de peyote, ayuahasca, de maconha, sempre maconha.”

“As drogas são essenciais e precisam ser liberadas para todo mundo, claro, porque é uma idiotice fazer o que fazem, a paranoia que têm com maconha. Eu fumo há mais de 50 anos, talvez. Eu fumo o dia inteiro. Antes era diversão, era percepção, agora é remédio também.”

“O Oficina tem inferno, terra e céu, é onde se pratica um teatro cosmopolíticopoético, entendeu?”

“Para a saúde a velhice é péssima, mas para a mente é ótima, você renova todo seu DNA, como se você reiniciasse o computador orgânico para ver as coisas de outra maneira. Mas ela não é igual para todo mundo. O Silvio Santos está burro, ele não percebe essas coisas, ele é grotesco, virou o Abelardo I. Ele é o Rei da Vela que atualmente me inspira.”

“O Rei da Vela foi montado no Sesc Pinheiros porque no Oficina não caberia. Talvez a gente volte a fazer no Oficina, mas como se fosse um desfile circense. Agora é igual como foi em 1967, com um grande palco giratório, mas muito mais lindo do que nunca.”

*
Qual é a importância dessa montagem, dos 50 anos do Rei da Vela?
É o inconsciente que a Fernanda Montenegro despertou, eu dedico a direção a ela, exatamente ao desacovardamento não só dos políticos, mas do povo brasileiro que está sofrendo e os artistas. Então é dedicado a isso porque essa peça hoje é mais forte ainda do que foi quando ela foi encenada, em 1967. A violência hoje é maior. Lá atrás foi um momento glorioso porque durante a ditadura, ainda no tempo de Castelo Branco, a minha geração, que vinha do suicídio de Getúlio Vargas e da carta-testamento, floriu criando um movimento descolonizador com a antropofagia vinda do Rei da Vela e ligando a Tropicália. Não o tropicalismo, mas a tropicália. Tropicália antropófoga. Então descolonizou totalmente a cultura brasileira.
E como isso se relaciona com o tempo presente?
Hoje está havendo um processo nazista de recolonização do país. Essa peça foi escrita há 80 anos, que é minha idade, quando eu nasci, quando o Renato Borghi nasceu. Ela foi publicada um pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Desde 1936 ela estava sendo escrita. Então ela contém o nazismo, o fascismo, o stalinismo e a poesia. E a maneira absolutamente genial que o grande poeta, um dos maiores poetas da história mundial, Oswald de Andrade, faz cenicamente parodiando todos os teatros, todos os gêneros em três atos.
Você está vendo esse nazismo na sociedade hoje?
Já abriu o ovo da serpente, é só você ver que a cada dia você recebe um golpe. Semana passada foi a Cármen Lúcia que, na confusão mental dela, votou a favor da liberdade desse Congresso, um bando de gente ignorante e corrupta, para salvar o Aécio. Todo dia tem alguma coisa. A questão das religiões vai provocar guerra religiosa. Em vez de ter uma coisa maravilhosa que é o ensino da história das religiões em que você estuda todas elas, cada um vai ter a sua e o candomblé não vai ser permitido. Hoje, foi o Temer comprando todos os deputados. Esse conservadorismo já é nazismo. Imagina a próxima eleição. Eles vão fazer tudo para ficar no poder. A eleição está ameaçada de se tornar um novo golpe porque eles golpeiam diariamente. Eu me sinto diariamente golpeado.
Há uma repressão moral?
Moral nada, é fisica. Uma repressão que nos ameaça. Nós estamos ameaçados e no próximo dia 23 de outubro, segunda-feira, dois dias depois da estreia da peça vai ter uma reunião no Condephaat, em que vai se decidir ou não pelo projeto apresentado pelo Silvio Santos, que eu chamo de $$, contra o teatro Oficina e para construção de torres no Bixiga.
Me explica isso?
Eles têm uma visão que nós destruímos o primeiro Teatro Oficina, que era um tombamento histórico, para construir esse teatro ‘ilegal’ da arquiteta Lina Bo Bardi, que abre um janelão maravilhoso dando para o terreno do entorno e onde Lina plantou uma árvore que está enorme, depois de 24 anos, que dá sombra no terreno. Nós não temos um contrato, mas isso não tem nada a ver – eu sinto que aquela terra é nossa, que nós somos os índios de lá, a gente de lá, aí foi tombado, e agora eles estão dizendo que nós destruímos aquele teatro.
De novo?
De novo não. É novo. É mais grave do que todos. É fascista. Nunca teve essa audácia de nos colocar fora do teatro. Isso é novo. Tem uma coisa de lugar da imprensa que não dá, vocês precisam que acordar. É uma coisa terrível isso. E as pessoas estão dormindo. É por isso que estou com a Fernanda Montenegro. É o desacovardamento. A situação é muito grave.
E o que o O Rei da Vela tem a ver com tudo disso?
O Rei da Vela, inevitavelmente, reflete esse momento, mas como paródia. Reflete tanto quanto o momento da primeira montagem, em 1967, antes do AI-5. Só que agora é pior. Essa época é tão torturante quanto foi o AI-5. Porque estão torturando os corpos dos seres humanos que não pertencem ao andar de cima. O andar de cima está ileso, não paga um tostão. O andar de baixo recebe uma porrada todo dia. Os corpos das pessoas desempregadas, passando fome, as artes, o teatro, por exemplo, lutando para sobreviver. É preciso uma revolução cultural agora e Fernanda Montenegro começou a capitaneá-la para todo o teatro brasileiro. O teatro brasileiro é o grande enjeitado.
É um renascimento do tropicalismo?
‘Ismo’ não, é Tropicália. Eu sou contra todos os ‘ismos’ porque os ‘ismos’ estão nos impedindo, agora, que nosso inconsciente coletivo se junte culturalmente para derrubar esse Estado nazista. Para não deixar acontecer o nazismo, o fascismo, como está acontecendo agora, para derrubar esses fascistas, esses stalinistas, esses ‘istas’. Qualquer ‘ista’ atrapalha neste momento. Tem que sair de cena a partir da imersão do inconsciente e da dimensão maior que a cultura dá, que o cinema, que o teatro, que a literatura, que as artes, enfim, captam. São as maneiras de se captar a realidade cosmopolítica. A arte capta o inconsciente, leva a uma a imersão no inconsciente, dá uma nova percepção.
Dá para perceber um sentido de urgência no seu discurso.
A urgência com a situação em que o Teatro Oficina se encontra e eu me encontro é porque há questão de um mês atrás, o advogado do Silvio Santos veio falar com a gente. Eles criaram uma coisa chamada jurídico, uma coisa metafísica, e o jurídico não permite mais que se pise no entorno. Durante 37 anos, esse lugar esteve tombado e desapropriado para nos proteger do Silvio Santos. Em 2010, foi tombado pelo Iphan e, portanto, é tombado em todas as instâncias. E tudo foi feito para que o Oficina pudesse ter o espaço que a Lina Bo Bardi tinha imaginado. A Lina dizia “chão de terreiro, galeria do Scala de Milão dando para as catacumbas de Silvio Santos”. E o primeiro projeto que ela fez em cima do terreno foi em 1980, ano em que o Silvio Santos quis comprar o teatro pela primeira vez.
Nós temos muitos anos de ocupação, então nos tornamos posseiros daquela terra que para nós virou sagrada. Nossa situação é idêntica à da gente indígena. Hoje, os líderes deles, o Ailton Krenak, todos, se referem a si próprios como gente yanomami, gente guarani, etc, de várias tribos, como “burús” e não como índios. E nós estamos na mesma situação porque nós sagramos a nossa terra com 57 anos de ocupação. Eu estou com sentido de urgência porque nunca na minha vida, mesmo durante a ditadura em que fui torturado, em que fui exilado, vivi uma situação igual.
É uma questão de legitimidade?
Mais que legitimidade. É a terra. O Oficina produziu espetáculos que magnetizaram o lugar. Houve três teatros. Um foi queimado pelo CCC, o segundo foi superado pelo próprio Rei da Vela e a Lina fez o terceiro. Ela morreu um ano antes de ficar pronto. E ela fez no teatro o mesmo que fez na casa dela, a Casa de Vidro, que ela construiu em cima de um morro e penetrada por uma árvore ao meio. Fez o mesmo na última obra e na última casa. Quando vi aquilo eu fiquei pirado. A arquitetura naquela época era uma maravilha e hoje é um lixo. Como na última obra dela, ela rasgou um janelão de vidro. E nesse janelão ela plantou uma árvore. Ela morreu um ano antes de inaugurar o teatro. Essa árvore cresceu tanto, há 24 anos está lá, que dá sombra no terreno vizinho. Foi a nossa vanguarda. E durante 37 anos nós lutamos para legitimar o tombamento de 300 metros feito pelo Estado. O grupo de Silvio Santos, através do jurídico dele, age de uma maneira nazista.
O que eles alegam?
O advogado alega que nós não temos contrato assinado, que o Estado se quiser nos tira de lá. Ele não menciona nada do nosso trabalho, para eles não existe Os Sertões, o Rei da Vela, Pequenos Burgueses, Hamlet, Galileu Galilei, O Banquete, Bacantes. Não existe. A gente é um prédio com pessoas que estão incomodando. Eles não têm ideia do valor do teatro. É uma obra de arte. Eu comparo a atuação do Silvio Santos e dos advogado dele ao Estado Islâmico. Querem destruir. Imagina, o teatro mais belo do mundo, um teatro maravilhoso da Lina Bo Bardi, que ganhou um nome enorme no mundo inteiro. A Lina seguia um caminho totalmente divergente dessa arquitetura vagabunda de torre. É o que ela chama de arqueologia humana, como ela fez no Sesc Pompéia, que tem uma torre, mas ali ela reviveu toda uma fábrica.
O que pode acontecer com o Oficina?
Eles querem que se construa as torres em torno do teatro e querem que feche o vidro que a Lina colocou lá porque eles acham que muda o projeto original. Nós vivemos sob domínio do jurídico, então eles pegaram o jurídico, inventaram uma história que destruímos o teatro que foi tombado, que era projeto do Flávio Império. E construímos no lugar um teatro ilegal, que tem um vidro para o vizinho, para a vizinhança, o que é proibido por lei. O Silvio Santos está histérico.
Como ele se posiciona?
Estive com ele numa reunião com o Suplicy e o Doria. Escrevi uma carta para o Doria. Doria é um negociador, um homem de negócios. A carta foi entregue. Ele foi visitar o teatro. Na visita que ele fez ao teatro eu mostrei para ele o terreno. E fui mostrar a coisa mais linda que tinha no terreno, uma aléia, uma área verde que dava legumes, flores, tudo, uma coisa maravilhosa que eles destruíram. Eu fui mostrar para o Doria e estava tudo destruído. Eles estão destruindo tudo. Mas mesmo assim, como antropófagos que somos, nós continuamos semeando lá. Nós semeamos muito e deixamos os negócio verde. Acho que depois do golpe, a burguesia está paranóica, ela acha que os craqueiros podem tomar conta, os moradores de rua, o povo do Bixiga pode ocupar o terreno. Eles estão paranóicos porque toda a burguesia com o golpe apoiou a extrema direita. A burguesia não sabe o que fazer.
Você tem alguma ideia?
Segundo Thomas Piketty, o capital especulativo é logaritmo. Há o maior abismo social que a história da humanidade já conheceu. E essa desigualdade afeta uma população enorme. É um problema que não se sabe como resolver. Eles não querem abrir mão do dinheiro, então eles mandam a polícia em cima. Repressão, repressão, repressão. Esse golpe veio disso.
O impeachment?
Foi um golpe. Golpe! Foi um golpe pior que o de 1964 porque, além de conter os militares que já estão conspirando, é apoiado por esses partidos desses jovens que nem sabem o que é uma ditadura, como esse Kim não sei o quê. Essa situação fez com que em pouquíssimo tempo todas as conquistas sociais, da arte, da cultura, da saúde fossem destruídas. O Rei da Vela mostra isso. O Oswald escreveu a peça em 1933 e a publicou em 1937. A situação hoje é a mesma. Houve uma regressão.
Não é uma coisa só do Brasil?
É mundial. É uma coisa ligada a não saber exatamente o que fazer. A única maneira que se imagina é a repressão.
Por isso, a necessidade de desacovardamento?
É tanta porrada que todo mundo está acovardado. No maravilhoso depoimento da Fernanda Montenegro, ela se dirige aos políticos ainda honestos que existem e fala do processo de desacovardamento. ‘Olhe o que está acontecendo e tome uma posição’. E, ao mesmo tempo, se não fizerem isso, vão perder a pele. Ela também me mandou um texto maravilhoso. Nós queremos incluir o texto da Fernanda nos autos de defesa do Oficina.
O Oficina deve ser imutável?
Não é imutável. A gente pode mexer naquilo, mas eles não. Porque eles querem destruir. O teatro da Lina nasceu do Rei da Vela e do Roda Viva quando nós vimos que tínhamos que abrir uma rua com o público todo participando, com aquele janelão voltado para a cidade, com um teto móvel voltado para o infinito. O Oficina tem inferno, terra e céu, é onde se pratica um teatro cosmopolíticopoético, entendeu? Por isso é considerado pelo jornal The Guardian o melhor entre os dez melhores teatros do mundo e o mais intenso. Isso tudo o Silvio Santos ignora completamente. Para ele nós somos um bando de vagabundos.
Você acha que ele pensa isso?
Tanto que ele tentou me comprar, me ofereceu 5 milhões. Ele não vai desistir mesmo. Eu aprendi tanto com você, Silvio Santos, e você não aprendeu nada comigo. Mas ele está pirado. Ele está gagá, ele não está sabendo o que ele está fazendo. Ele está desesperado. Ele tem uma percepção maior de que essa situação é perigosa para o capital. Ele está apavorado com os sem teto, com os que dormem na rua, com os craqueiros. Eles estão acuados. Vale um trecho do Rei da Vela, aliás: “Há um momento em que a burguesia abandona a sua velha máscara liberal e se declara cansada de carregar nos ombros os ideais de justiça da humanidade, as conquistas da civilização e outras besteiras. O povo está machucado, acovardado e dividido.” Isso é o Abelardo I. Eu descobri hoje que o Abelardo I é o Silvio Santos. A peça é um circo tragicômico.
Vocês recebem algum subsídio estatal?
Atualmente não pagam mais nada. Antes ainda davam porteiros, agora nem isso. Nada. A Petrobras cortou tudo. Nada, nada, nada.
Por que o Rei da Vela não foi montado no Oficina?
Foi montado no Sesc Pinheiros porque no Oficina não caberia. Talvez a gente volte a fazer no Oficina, mas como se fosse um desfile circense. Agora é igual como foi em 1967, com um grande palco giratório, mas muito mais lindo do que nunca. O espaço do Sesc é maravilhoso. Danilo Miranda é nosso ministro da Cultura. Se não existisse Danilo Miranda (diretor do Sesc) não existiria teatro em São Paulo, só existiria musical. Graças a ele, que está com o orçamento bem limitado pela crise porque o comércio caiu e a renda do Sesc diminuiu, essa montagem aconteceu. No final eles pegaram a produção da peça e vão pagar nossa atuação. Mas é um dinheiro que dá muito justo, não é uma fortuna. Pelo menos é alguma coisa. E aí o Hélio Eichbauer fez um cenário com tudo à mostra, um boneco enorme, um caralho. É o mesmo cenário do passado que está sendo reconstruído hoje no Sesc Pinheiros. Só que o Sesc Pinheiros é muito maior que o Oficina. Então ele fez uma coisa imensa com três cenários completamente diferentes, revelando os três gêneros da peça: o primeiro ato que é uma chanchada trágica, o segundo, que é teatro de revista, e o último, que é ópera. Variam completamente os estilos da peça.
Acha que tem alguma correspondência com os acontecimentos de Brasília?
Acho que tem tudo, até demais. É o vice que dá um golpe. É um Abelardo trágico. Inclusive ele se transforma inteiramente, ele é uma entidade de um banqueiro. É um teatro de entidade, não é um teatro de personagem.
Não é bem do candomblé, é parecido, mas não é candomblé. É uma entidade dionisíaca, que ao mesmo tempo é apolínea porque todo o trabalho cenográfico de Hélio Eichbauer é apolíneo e, ao mesmo tempo, dionisíaco, tem todo um contorno, toda uma coisa maravilhosa. E hoje eu tive um insight com as iniciais de Rei da Vela, RV, adivinha? Roda Viva. As mesmas iniciais. Para mim são a mesma peça. Eu montei uma atrás da outra. E hoje eu saquei que o Chico Buarque para escrever Roda Viva se inspirou no Rei da Vela. Depois que você sair eu vou escrever uma carta para o Chico porque a peça, até agora, está proibida. Mas hoje eu saquei que as duas são uma única peça. O coro do Roda Viva é uma coisa que não existe no teatro mundial desde o teatro grego. O teatro grego tem o coro como tem o candomblé, que fazia as pessoas participarem da peça. E vários diretores tentaram reconstituir o coro. Hoje o único coro que está aí é o do musical americano. E chega aqui enlatado e é um sucesso, porque custa caro e a burguesia adora. O Roda Viva tem o coro que falta no Rei da Vela. Foi um escândalo o dia da estreia do Roda Viva. Foi o coro que me inspirou, que me deu o primeiro ácido – põe na boca porque você é super racionalista e não vai acontecer nada com você.
E a partir desse primeiro ácido o que aconteceu?
A partir daí eu passei por todas as drogas, todas as peças que eu fiz foram criadas como um xamã faz sob efeito de drogas, de peyote, ayuahasca, de maconha, sempre maconha. Depois eu tive que parar porque eu tive um infarto. Eu não posso mais tomar alucinógenos, então eu tenho que tomar vinho e fumar maconha. A minha alucinação continua só pela maconha. E eu continuo trabalhando com alucinação, como o (Davi) Kopenawa, que ditou em yanomami a queda do céu para o etnólogo francês Bruce Albert. O livro foi editado, no ano passado, no Brasil. http://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/um-xama-na-avenida-paulista/
Como as drogas se conectam com o teatro?
Para o ritual do teatro é essencial. A droga deve ser liberada para os rituais sagrados do teatro porque eu pratico um teatro sagrado, um teatro dionisíaco, cosmopolítico. Não é um teatro só social. É social, mas, ao mesmo tempo, é cosmopolítico. Está conectado com uma coisa maior, mas que está dentro de nós. Dentro de nós está os cosmos. Tudo está dentro de nós. Como o João Gilberto chamou, é o “tudão”. As drogas são essenciais e precisam ser liberadas para todo mundo, claro, porque é uma idiotice fazer o que fazem, a paranoia que têm com maconha. Eu fumo há mais de 50 anos talvez. Eu fumo o dia inteiro. Antes era diversão, era percepção, agora é remédio também.
Como assim?
Eu estou com 80 anos e se eu sinto alguma coisa imediatamente eu fumo um baseado e já alivia. É um crime deixar isso com o narcotráfico. Tem que imediatamente liberar e ir para o Ministério da Saúde. Aí vai ter uma luta com o tráfico. E a cocaína vai ser vendida como remédio tarja preta na farmácia careta. Crack é diferente porque mata.
E a velhice como você encara?
Para a saúde a velhice é péssima, mas para a mente é ótima, você renova todo seu DNA, como se você reiniciasse o computador orgânico para ver as coisas de outra maneira. Mas ela não é igual para todo mundo. O Silvio Santos está burro, ele não percebe essas coisas, ele é grotesco, virou o Abelardo I. Ele é o Rei da Vela que atualmente me inspira. Mas digo que o Rei da Vela tem uma transformação maravilhosa. O Oswald deu para Abelardo I uma percepção trágica e ele, no terceiro ato, renega tudo, entrega tudo. Como ele está morrendo ele entrega tudo, entrega a burguesia. É tipo vida, paixão e morte do burguês lúcido.
É uma peça que elucida.
Não é que ela elucida, ela toca no inconsciente coletivo e é preciso tocar no inconsciente coletivo. Só 5% apoiam o Temer. O inconsciente coletivo, que é a maioria da população, está contra. A minoria tem dinheiro e quer resolver seus problemas sem perder privilégios, quer continuar na casa grande e botar a gente numa senzala cada vez pior. A burguesia está cagando pra gente porque eles estão lá em cima. Você sente que a função do teatro é como captar o inconsciente coletivo. E o Rei da Vela consegue captar. Roda Viva idem. Vou montar Roda Viva. Vou dizer: agora não dá para proibir. É a mesma peça. É aquela corrente de 1967, 1968. É a mesma coisa.
E a operação Lava Jato, o que você acha?
Eu acho o seguinte, o moralismo e a corrupção não são nada diante do regime capitalista na fase que ele está em si. A corrupção é um sintoma. A corrupção faz parte do capitalismo. Não existe capitalismo sem corrupção. Já é uma corrupção uma minoria de pessoas tendo uma renda maior do que toda a maioria. Isso é uma corrupção sem nome. O grande problema de hoje é a desigualdade.
No Brasil e no mundo. Mas isso é uma coisa totalmente corrupta. De onde vem, então, todo esse dinheiro? Quem produziu esse dinheiro? Quem produziu tudo, quem fez, quem trabalhou realmente e que não ficou só na especulação? Claro, os especuladores trabalham, os lobistas trabalham mas eles trabalham com um dinheiro que é estéril.
Sou a favor do comum, eu sou viado, sou a favor dos viados, sou a favor das mulheres, mas sem ‘ismo’. Sou a favor dos africanos que criaram o candomblé e deram um exemplo de resistência formando uma religião que não querem que se desenvolva, tentam proibi-la. A burguesia está incentivando a guerra das religiões. Em vez de ensinar a história das religiões, que é uma coisa maravilhosa, para você poder conhecer todas, e ao mesmo tempo poder transar com todas, estão criando limites. Oswald de Andrade dizia assim: todas religiões e nenhuma igreja. E, sobretudo, muita bruxaria.
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