Ensino Superior: Banco Mundial e seus
problemas com os dados
Carlos Frederico Rocha1
Este artigo se volta à análise da proposta do Banco Mundial para o ensino superior. Ao longo
do texto, argumentaremos que o relatório parte de uma análise viciada, desatualizada e,
algumas vezes, falsa dos dados sobre a educação superior pública brasileira, levando a um
diagnóstico equivocado de proposição da cobrança de mensalidades que acabará por
aumentar, em vez de reduzir, a desigualdade social.
O diagnóstico para a análise do ensino superior está baseado nos seguintes argumentos: (i) o
ensino superior público abriga apenas uma minoria de estudantes, vindo, em sua maioria, de
escolas privadas; (ii) o custo unitário do estudante de uma universidade pública é, em média,
três vezes o custo de um estudante do ensino superior privado; (iii) o desempenho do
estudante de universidades públicas não é melhor do que aquele de universidades privadas,
argumentando pela maior eficiência das universidades privadas; (iv) ao ser o aluno de
universidade público mais rico do que o aluno do ensino básico e o gasto público por aluno no
ensino superior maior do que no ensino básico, a universidade pública auxilia na
regressividade do gasto em educação; (v) os retornos privados do ensino superior são altos,
justificando sua cobrança. O Relatório propõe, então: (i) criar um teto de gasto por aluno nas
universidades públicas baseado nas universidades de melhor desempenho; e (ii) criar um
sistema de pagamento da universidade pública pelo aluno, acompanhado de um sistema de
crédito semelhante ao Programa de Financiamento Estudantil (FIES), igualando as condições
de financiamento das universidades públicas à universidade privada.
É verdade que o ensino superior público abriga apenas um em cada cinco estudantes do
ensino superior. Contudo, está longe de ser correto que afirmar que o estudante de ensino
superior vem em proporções maiores do ensino básico privado. O gráfico 1 apresenta dados
de Franco e Cunha (2017), baseado em pesquisa da ANDIFES sobre a origem dos estudantes de
Universidades Federais Públicas (IFES), de acordo com o tipo de estabelecimento em que
estudaram durante o ensino médio. Como pode ser visto, o quadro pintado pelo Banco
Mundial está longe de ser verdadeiro. Na verdade, após o estabelecimento do sistema de
cotas em 2013, uma pequena minoria dos alunos (menos de um terço) vem do ensino privado.
1 Professor do Instituto de Economia da UFRJ.
Gráfico 1 – Distribuição dos graduandos, segundo o tipo de escola que cursaram o ensino médio, por
faixa de ano de ingresso (matrículas) nas IFES
Fonte: Extraído de Franco e Cunha (2017).
A segunda constatação do relatório do BM apresenta, talvez, o maior erro entre todas as
medidas realizadas. Ao comparar o custo do sistema privado com o sistema público, o relatório
revela desconhecimento sobre o sistema de ensino superior público no Brasil.
2 O cálculo do
BM utiliza no numerador o gasto total das universidades e, no denominador, o número de
estudantes de graduação na forma presencial. No entanto, ao contrário da maior parte do
ensino privado, as universidades públicas não têm como única atividade a realização do ensino
de graduação. No que se refere ao denominador, ignora o ensino de pós-graduação. Por
exemplo, em 2014, a UFRJ mantinha 43 mil estudantes no nível de graduação. No entanto,
havia ainda 12 mil estudantes de pós-graduação (entre mestrado e doutorado) que não foram
contabilizados pelo relatório como fazendo parte do produto da universidade.3 A universidade
pública realiza ainda pesquisa e extensão. Amaral (2017) estima o custo por aluno nas
universidades públicas, excluindo-se os recursos destinados a pesquisa e extensão, chegando a
um valor médio de pouco menos de R$ 14 mil, muito próximo àquele obtido pelo BM para as
universidades privadas.
Ao analisar o desempenho dos estudantes de universidades públicas e privadas, o BM comete
mais um erro. É inegável o melhor desempenho das universidades públicas no ENADE. O
relatório alega, então, haver viés de seleção nesse resultado. A universidade pública atrairia os
melhores alunos e, portanto, o melhor rendimento no ENADE seria resultado de ter alunos
melhores e não necessariamente de ter um ensino melhor. Assim, o relatório procura medir o
valor adicionado ao aluno, comparando o seu desempenho com as notas do ENEM. O uso da
medida é tentador, mas revela um outro viés. Ao realizar a prova do ENEM, os estudantes
2
Sob esse ponto de vista, conforme aponta Schultz (2017), o relatório não tem nem o cuidado de
documentos predecessores do Banco Mundial de ressaltar que o diagnóstico e as prescrições se referem
apenas ao ensino de graduação.
3 Deve-se chamar a atenção que o custo de um aluno de pós-graduação é maior do que o de um aluno
de graduação.
50
58,2
61,8 64,5
60,2
5 5,3 3,9 4,7 3,8 4,4 3,4 4,1 3,9 4,5
39,7
33,3
30 28
31,5
0
10
20
30
40
50
60
70
2009 ou menos 2010-2011 2012-2013 2014-2015 Total
Estudou apenas em escola pública Estudou parte em escola particular
Estudou a maior parte em escola particular Estudou somente em escola particular
estão competindo por uma vaga na universidade, seja ela pública ou privada. Ao fazer a prova
do ENADE, nada está em disputa. Basta a assinatura para garantir o diploma. Logo, no primeiro
caso, estamos diante de um processo de alta motivação, no segundo, de um processo de baixa
motivação. A comparação dos dois está longe de adicionar alguma informação. Deve-se dizer,
no entanto, em favor das IFES que a prova do ENADE envolve conhecimento específico, só
adquirível na universidade.
O BM alega ainda que o ensino superior público apresenta regressividade na distribuição dos
recursos para a educação, ou seja, estaria destinando mais recursos para os mais ricos. De
acordo com o relatório, os 40% de menor renda no país representariam 60% dos gastos do
ensino fundamental público. Nos ensinos pré-escolar e médio públicos, de acesso ainda não
universal, 50% dos gastos iriam para os 40% mais pobres. No ensino superior público, mais
caro, apenas 15% dos gastos iriam para os 40% mais pobres e 65% iriam para os 40% mais
ricos, de acordo com dados da PNAD. Na verdade, os dados da PNAD apresentam um quadro
ligeiramente diferente (ver gráfico 2). Nele, percebemos que os 40% mais pobres representam
22% dos alunos e os 40% mais ricos representam 60%. O gráfico 2 apresenta também uma
evolução bastante positiva da participação dos estratos mais pobres e mais ricos, no sentido
de caminhar em direção à igualdade. Essa evolução é consequência de iniciativas importantes
como o REUNI, a partir de 2007, e a criação do sistema de cotas, a partir de 2013. A total
implantação da política de cotas só se finalizará em 2018 e, portanto, o perfil dos estudantes
deve evoluir para uma ainda maior igualdade. A leitura de IBGE (2016) também mostra que os
estudantes da universidade privada no Brasil são, em média, mais ricos do que os estudantes
da rede pública.
Gráfico 2 – Distribuição percentual de estudantes da rede pública no ensino superior, por
quintos do rendimento mensal domiciliar per capita - Brasil - 2005/2015
Fonte: IBGE, PNAD, vários anos. Extraído de IBGE, Síntese de Indicadores Sociais, 2016.
O gráfico 3 apresenta a renda domiciliar per capita média, por decil da distribuição de renda e
a distribuição contribuição de cada decil para a desigualdade de renda. São nos dez por cento
superiores e inferiores que estão os maiores diferenciais de renda. A explicação da
concentração da renda no país está associada à elevada dispersão da renda dentro dos dez por
cento superiores e os dez por cento inferiores. Assim, o terceiro e o quarto decis superiores
estão distantes de representarem fatias ricas da população e têm muito menos a distingui-los
de outros decis inferiores do que a população dentro dos dez por cento superior tem de
diferença interna.
Assim, a responsabilização individual pelo financiamento da universidade, como propõe o BM,
retiraria, na verdade, a responsabilização social de financiamento pelos dez por cento mais
ricos. Sob esse ponto, Castro e Tannuri-Pianto (2016) mostram que, com o perfil discente
presente nas universidades federais, em 2012, o gasto nas IFES representava uma
transferência de renda dos 20 por cento superiores para os demais estratos da renda. Logo, a
individualização da cobrança tornaria a distribuição do gasto mais injusto, provavelmente
dificultando o acesso de estratos inferiores de renda ao ensino superior.4
Existe, no entanto, a alternativa de cobrança apenas dos estudantes localizados nos 20 por
cento superior. Nesse caso, não se perderia a transferência de renda para os estratos
inferiores da distribuição e se reduziria a carga sobre toda a população. Além de ser apenas
uma pequena parcela do total necessário, há um grave problema nessa proposta. A cobrança
de mensalidade afastaria da universidade pública os estudantes de renda superior e os
aproximaria de um sistema privado que criaria alternativas para absorvê-lo. Isso pode implicar
a extensão da estratégia de segregação que foi seguida no ensino básico e que aprofunda as
desigualdades hoje presentes na sociedade brasileira.
Há, então, uma importante externalidade que a universidade pode nos prover: a integração
social. A Universidade é, neste momento, o único momento na fortemente desigual sociedade
brasileira em que o topo da pirâmide de renda convive com a base (ver Rocha 2017). Assim, ao
contrário do preconizado pelo Banco Mundial, há mais do que simplesmente apropriação
individual dos frutos do ensino superior.
4 A experiência internacional mostra que a cobrança de mensalidades ou anuidade reduz a matrícula da
população no ensino superior. Neil (2009) mostra que, no Canadá, para cada C$ 1000, há uma redução
de 2.5% a 5% da demanda. Dearden et al. (2011) encontram que um aumento de UK 1000 causa uma
redução de 3.9% nas matrículas. Hubner (2012) para a Alemanha.
Gráfico 3 – Níveis de renda domiciliar per capita, média por decil, Brasil, 2015.,
Fonte: IBGE, PNAD. Extraído de Oxfam – Brasil (2017).
O BM estende, contudo, o argumento da desigualdade na comparação das populações que
frequentam o ensino superior e o ensino básico públicos. Argumenta que o recurso aplicado
no ensino superior seria regressivo quando comparado ao recurso aplicado no ensino básico.
No entanto, o próprio relatório propõe a redução em 1 ponto percentual os recursos para o
ensino básico.5 Portanto, os recursos que seriam retirados do ensino público não seriam
destinados ao ensino básico, mas simplesmente seria cortado do orçamento. Assim, o que é,
na verdade, preconizado pelo relatório é a redução da contribuição dos 10% mais ricos para o
gasto em educação dos mais pobres. Ao contrário do que está afirmado no relatório do BM,
não se trata de uma proposta de justiça, mas da redução da contribuição dos mais ricos para o
bem-estar da sociedade brasileira.
Amaral, N. C. (2017) Uma análise do documento “Um Ajuste Justo: análise da eficiência e
equidade do gasto público no Brasil”.
https://avaliacaoeducacional.files.wordpress.com/2017/11/analise-critica-bm-2017.pdf.
Castro, C. R. e Tannuri-Pianto, M. E. (2016) Educação superior pública no Brasil: custos,
benefícios e efeitos distributivos.
https://www.anpec.org.br/encontro/2016/submissao/files_I/i5-
facbff91b0ec967476764cecaf05c20b.pdf.
Dearden, L.; Fitzsimons, E.; Wyness, G. (2009) The impact of tuition fees and support on
university participation in the UK.
https://www.econstor.eu/bitstream/10419/91545/1/665529252.pdf.
5 Mesmo não tendo universalizado o ensino infantil e o ensino médio, impressionando pela crueldade.
Franco, A. M. e Cunha, S. (2017) Perfil socioeconômico dos graduandos das IFES. IPEA, Radar,
49, fev.
Hubner, M. (2012) Do tuition fees affect enrollment behavior? Evidence from a ‘natural
experiment’ in Germany. Economics of Education Review, Volume 31, Issue 6, 949-960.
IBGE (2016), Síntese de Indicadores Sociais – Uma Análise das Condições de Vida da População
Brasileira, 2016, https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98965.pdf.
Neil, C. (2009) Tuition fees and the demand for university places. Economics of Education
Review, Volume 28, Issue 5, p. 561-570.
Oxfam – Brasil (2017) A distância que nos une.
https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.p
df.
Rocha, C. F. O custo da integração. http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2017/08/ocusto-da-integracao.html.
Schultz, P. (2017) O Banco Mundial contra-ataca.
http://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/11/27/o-banco-mundial-contra-ataca
http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2017/12/Artigo_04.pdf
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