27 de jul. de 2018

Por um punhado de cobres: mineração e retrocesso na Amazônia


Por um punhado de cobres: mineração e retrocesso na Amazônia



Carlos Eduardo Frickmann Young, www.ie.ufrj.br/gema

“Conheci
Um sujeito convencido
Com mania de grandeza
E instinto de nobreza
Que, por saber
Que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
Sem pensar no seu futuro”
Noel Rosa, Coração (Samba Anatômico)
O Governo Federal decretou em Agosto de 2017 a extinção da Reserva Nacional do Cobre (RENCA), uma área de mais de quatro milhões de hectares situada entre o Nordeste do Pará e o Sudoeste do Amapá (ver http://www.mme.gov.br/web/guest/pagina-inicial/outras-noticas/-/asset_publisher/32hLrOzMKwWb/content/governo-federal-extingue-reserva-nacional-de-cobre-e-seus-associados-renca- ). O objetivo da medida é incentivar a exploração mineral na área, identificada como de grande potencial para extração de cobre diversos minerais associados, inclusive ouro:
“Para o diretor-geral do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), Victor Hugo Froner Bicca, a extinção da Renca “tem um simbolismo muito grande, porque demonstra de forma inequívoca que o governo federal está dando atenção à mineração”. Referindo-se à Renca como “última fronteira de potencial geológico ainda considerável disponível no mundo, até onde o conhecimento alcança”, Bicca comemorou a abertura para a realização de estudos que possam diagnosticar o que existe na área e qual o potencial de realização da atividade extrativista. “É um dia histórico para o setor”, afirmou.” (ver http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-08/governo-extingue-reserva-nacional-do-cobre-e-associados )
O decreto não revoga a aplicação de legislação específica sobre proteção da natureza e também não faz nenhuma alteração nos limites das unidades de conservação e terras indígenas estabelecidas na região. Entretanto, é evidente que e se trata de um estimulo direto para a mineração, que é extremamente prejudicial ao meio ambiente onde ocorre a extração e traz efeitos indiretos importantes, inclusive sobre as terras indígenas e áreas protegidas, como demonstra fartamente a literatura sobre o tema (ver http://www.oeco.org.br/colunas/carlos-gabaglia-penna/20837-efeitos-da-mineracao-no-meio-ambiente/ ).
No curto prazo, o objetivo é expandir receitas extra-orçamentárias, através da venda de concessões para exploração mineral e cobrança de contribuições (ver https://oglobo.globo.com/economia/governo-vai-anunciar-aumento-dos-royalties-para-mineracao-outras-mudancas-no-setor-1-21628145 ), para financiar desequilíbrios macroeconômicos em parte aumentados por equívocos da atual equipe econômica, que aprofundaram a recessão e, logo, baixas acentuadas na arrecadação tributária, gerando recordes de déficit fiscal. No longo prazo, a meta é incentivar a expansão de atividades que são altamente lucrativas em termos privados (e parte dessas rendas acaba retornando para a classe dirigente que controla o Executivo e Legislativo e apoia esse movimento), mas com elevados custos sociais e ambientais. A decisão foi tomada por um governo altamente suspeito pelo elevado número de pessoas envolvidas em escândalos de corrupção, inclusive o próprio Presidente (que tem um pedido de investigação pelo Supremo Tribunal Federal em suspenso, a ser retomado ao fim de seu mandato).
Serão incentivadas atividades de mineração que em nada contribuem para a inclusão social (ver https://www.academia.edu/28970322/Economia_verde_no_Brasil_desapontamentos_e_possibilidades ) e com inúmeros impactos ambientais: além das áreas afetadas diretamente pela lavra, será necessário construir uma ou mais ferrovias e caminhos para escoamento com grande impacto por onde irá passar: áreas de floresta altamente preservada, e essas vias necessariamente terão que passar por. unidades de conservação ou terras indígenas. A chegada dos trabalhadores trará doenças transmissíveis e problemas associados ao deslocamento de um grande contingente de trabalhadores oriundos de outras regiões: alcoolismo, prostituição e ruptura de estruturas comunitárias nas comunidades estabelecidas (ao contrário do que se pensa, a área em questão não é um território vazio) são alguns exemplos de problemas que ocorreram em situações semelhantes na Amazônia (ver http://www.ihu.unisinos.br/531060-os-impactos-dos-grandes-projetos-sobre-os-povos-indigenas-e-as-comunidades-tradicionais-da-amazonia).
Portanto, as críticas à medida são procedentes, em especial pela desconfiança sobre a lisura da atual cúpula dirigente, e uma classe política (Executivo e Legislativo) que está se esforçando para reduzir as salvaguardas do licenciamento ambiental, por ora em votação no Congresso ver http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/567386-projeto-de-lei-quer-afrouxar-licenciamento-ambiental-no-brasil ). Também deve-se acrescentar o péssimo histórico do setor privado no setor, e o descaso com riscos ambientais revelado no acidente da mineradora Samarco em Mariana (MG), em novembro de 2015, mostra que a mineração continua sendo uma das atividades com maior potencial para desastres ambientais em grande escala (http://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/processos-contra-mineradora-samarco-apos-desastre-de-mariana.ghtml ).
O desprezo pelos possíveis problemas socioambientais decorrentes da decisão de abrir a área da RENCA para exploração mineral e a ausência de qualquer debate com a sociedade sobre sua conveniência estão nitidamente associados ao modelo brasileiro de especialização crescente em atividades primárias, notadamente agropecuária e mineração. Esse processo é chamado de “re-primarização” e consiste na mudança estrutural na composição do produto interno bruto (PIB) e das exportações brasileiras, com uma crescente especialização em produtos intensivos em recursos naturais e energia, e em atividades de elevado potencial poluidor. A Figura 1 mostra a evolução do PIB total e por setores selecionados, tomando como base o ano de 1995. Percebe-se que a agricultura e a indústria extrativa mineral crescem bem acima do PIB total. Em contraste, a indústria de manufatura ”transformação) tem desempenho medíocre.
Figura 1. Evolução do PIB trimestral brasileiro, total e por atividades (1995=100)
Fonte: IBGE (www.ibge.gov.br )
A especialização produtiva não ocorre apenas em matérias-primas, mas também em produtos de alto potencial poluidor em seu processo de fabricação. De fato, na indústria de transformação, as atividades com melhor desempenho são as de maior potencial de emissão de poluentes por unidade de valor produzido (ver https://www.academia.edu/19016062/Perspectivas_e_desafios_para_uma_estrat%C3%A9gia_de_crescimento_verde_no_Brasil ). Nesse processo de re-primarização da economia brasileira, a competitividade é baseada no acesso barato a matérias-primas e à energia ou na desconsideração das externalidades ambientais negativas geradas nos processos de produção. Trata-se do caminho oposto àquele proposto pela economia verde. Um modelo econômico baseado no “garimpo” de recursos naturais reforça a exclusão social, uma vez que os benefícios econômicos tendem a se concentrar em um grupo relativamente pequeno e a degradação ambiental traz piores consequências para os mais pobres.
O princípio fundamental da regulação ambiental em uma economia verde deveria ser a “internalização das externalidades”, com a adoção de instrumentos econômicos para a gestão ambiental. Segundo o “princípio do poluidor (usuário)-pagador”, deve-se incorporar as externalidades ambientais, negativas e positivas, na precificação dos produtos. Isso requer o cálculo econômico das externalidades, tornando essas variáveis relevantes para a tomada de decisão, tanto na alocação de recursos públicos quanto na de crédito privado. A resistência, porém, ainda é muito grande. Em tempos de crise econômica, costuma-se alegar que essa precificação reduz a competitividade das exportações, prejudicando o crescimento econômico e o emprego.
Na verdade, trata-se de reduzir o “custo Brasil social”, de natureza difusa, mas isso enfrenta a resistência de produtores e consumidores dos mercados afetados: o ganho social é maior, mas difuso, enquanto os custos privados para essa transição são menores, mas privados. Por isso o balanço político acaba pendendo contra o interesse coletivo. Aspectos ambientais ainda estão pouco integrados à formulação de políticas públicas. O problema é agravado pela falta de informações sobre a extensão e a relevância dos problemas resultantes da degradação ambiental, e pela redução contínua de recursos orçamentários destinados à proteção ambiental (ver http://www.oeco.org.br/reportagens/governo-corta-43-do-orcamento-do-ministerio-do-meio-ambiente/ ).
Por outro lado, o setor privado resiste a adotar medidas de internalização dos custos socioambientais, especialmente nos segmentos que consomem mais recursos naturais, como mineração e agropecuária, e nas atividades industriais mais intensivas em energia ou mais poluidoras. Isso resulta numa visão de que crescimento econômico e preservação ambiental são essencialmente antagônicos, que ainda prevalece junto aos tomadores de decisão. O enorme lobby político, apoiado inclusive pelas principais associações empresariais, para que salvaguardas ambientais sejam reduzidas tanto no Código Florestal quanto nos procedimentos de licenciamento dos empreendimentos produtivos reflete a persistência dessa visão. Em analogia à “teoria do bolo” que sintetizou o debate sobre crescimento e distribuição de renda no Brasil, pode-se dizer que o princípio norteador tem sido: “É preciso sujar o bolo para ele crescer; depois a gente limpa.”
Os problemas decorrentes da especialização em commodities minerais, agrícolas e industriais de baixo valor agregado ultrapassam a dimensão ambiental. Do ponto de vista social, instala-se uma dupla exclusão. A primeira vem da distribuição desigual dos frutos dos “enclaves” de alta rentabilidade à custa da degradação ambiental: os mais ricos ficam com a maior parte da renda e da riqueza geradas, e ainda têm um padrão de consumo mais elevado e mais intensivo em emissões. O exemplo mais evidente está na fronteira agrícola: os agentes econômicos localizados no “topo” da cadeia do agronegócio enriquecem, mas ao mesmo tempo se criam graves desequilíbrios sociais, desde o deslocamento de populações tradicionais e agricultores familiares expulsos pela expansão agrícola, o que provoca um aumento da violência nessas áreas, até a expansão de doenças infecciosas e o aumento na concentração de poluentes, causado pelas queimadas. Observam se problemas semelhantes nos enclaves de mineração e em polos industriais exportadores.
A segunda exclusão é a ambiental, pois as camadas excluídas são as que mais sofrem os efeitos da perda de qualidade ambiental: no campo, comunidades tradicionais se veem desprovidas da base de recursos naturais essenciais ao seu sustento, e nas cidades as populações da periferia são obrigadas a viver em ambientes degradados pela poluição do ar, ausência de saneamento e outras necessidades básicas por falta de investimentos em infraestrutura. A especialização crescente em uma economia “marrom” também causa perdas especificamente econômicas. O ciclo expansivo de aumento dos preços das commodities ocultou uma discussão antiga sobre as tendências de longo prazo do comportamento dos termos de troca: as commodities tiveram um comportamento ascendente durante as duas últimas décadas, mas nada garante que permanecerão crescendo no longo prazo, em comparação com os produtos intensivos em tecnologia.
Para concluir, a extinção da RENCA não pode ser pensada de forma isolada, mas como mais um elemento que compõe o movimento geral de re-primarização. É nítido que a principal motivação para essa. decisão é resolver problemas de curto prazo (gerar receitas fiscais e aumentar a entrada de financiamento externo), deixando grandes passivos mais a frente, mesmo diante de um exemplo concreto (o evento da Samarco) que demonstra os elevados riscos e custos associados a essas atividades. Isso num contexto de desregulamentação da legislação (ver a nova lei do licenciamento ambiental) e desaparelhamento dos órgãos ambientais responsáveis pelo controle – a PEC que limitou os gastos públicos teve imediato efeito de reduzir o já famélico orçamento para a área ambiental.
Diante desse quadro, não se pode ficar “neutro” em relação a essa medida específica, e nem deixar de situar o que está acontecendo no quadro geral de “reformas” defendidas pelo atual governo, com o apoio explícito de entidades empresariais, inclusive os principais grupos de comunicação do país. Criticar a expansão do desmatamento ou a redução das Unidades de Conservação em um programa de Ciência (usualmente em horário de baixa audiência), mas insistir no apoio das “reformas” econômicas que estimulam e criam pressões adicionais sobre o meio ambiente e retiram capacidade efetiva de regular do estado através do contingenciamento das despesas operacionais dos órgãos ambientais não é apenas mau jornalismo. É principalmente hipocrisia.
https://qualidadedademocracia.com.br/por-um-punhado-de-cobres-minera%C3%A7%C3%A3o-e-retrocesso-na-amaz%C3%B4nia-2288f03b4f19
Share:

0 comentários:

Postar um comentário