VOZES DA AMAZÔNIA NA TERRA DA FLATOLÂNDIA
Santo Ernulfo, rogai por nós que recorremos à voz
(apud Torero & Pimenta)
(apud Torero & Pimenta)
- Quer dizer, então, que os índios têm arquitetos e médicos melhores que os nossos?
A pergunta foi feita ao microfone por um menino de 11 anos, no final da aula-espetáculo ministrada para cerca de 400 pessoas de todas as idades que lotavam a quadra da Escola Estadual Lothar Sussmann, em Borba, nesta segunda (12). Sentado na primeira fila, ele acabara de ouvir a palestra sobre os cinco equívocos que muita gente boa comete quando se refere às culturas indígenas, um dos quais é considerá-las atrasadas e incapazes de produzir conhecimentos.
Olhei com carinho aquele menino inteligente e questionador, de voz firme e discurso fluente, que ousava peitar o palestrante, falando aquilo que estava provavelmente na cabeça de muitos adultos ali presentes, alguns responsáveis por sua formação. Não se tratava de pergunta “inocente”. A alegação de uma pretensa “superioridade” visava mostrar o “absurdo” de reconhecer o saber do “outro”. O tom de voz irônico revelava a recusa em admitir que os índios pudessem criar conhecimentos em vários campos do saber: arquitetura, medicina, arte e tantos outros exemplificados naquela aula.
O simples fato de mencionar na palestra a arquitetura dos Tukano com suas malocas monumentais, a medicina dos Sacaca com suas curas milagrosas ou a arte das mulheres Kadiweu com seu grafismo que deslumbrou a Europa, incomodou e foi interpretado como a defesa de uma superioridade em nenhum momento afirmada. É que a idéia de que o índio não é um “selvagem atrasado” desestabiliza convicções e certezas ancoradas em preconceitos seculares.
Ponte entre saberes
Expliquei ao menino inteligente e ao público que culturas não são superiores nem inferiores, mas apenas diferentes, que o diálogo intercultural permite que culturas em contato, quando tratadas com respeito mútuo, aprendam cada qual, uma com a outra. Era um convite ao diálogo, uma ponte entre saberes sem hierarquias. Atravessá-la pode melhorar a vida dos brasileiros. Foi o que fez o arquiteto carioca Severiano Porto, que viveu e trabalhou muitos anos na Amazônia e ganhou prêmio internacional com o projeto do campus da Universidade Federal do Amazonas:
- Aprendi meu ofício na Faculdade de Arquitetura da UFRJ, mas aqui no Amazonas, foram os índios que me ensinaram muita coisa. Observei como suas malocas utilizam material invisível: vento, luminosidade, relação com o sol, a chuva, o rio e a floresta. Aprendi arquitetura também com os índios – disse ele numa entrevista.
No entanto, a colonialidade se apodera dos corações e mentes do colonizado, que se recusa a jogar na lata do lixo seus preconceitos. Quanto mais nos adentramos na Amazônia, maior a discriminação. Aqui as diferenças entre índios, ribeirinhos e moradores de pequenas cidades são quase imperceptíveis na aparência e no modo de ser. É preciso, portanto, tratar mal os índios para não deixar dúvidas sobre quem é quem. É aquela dona de casa de baixa classe média que trata sua empregada doméstica com mais crueldade do que certa burguesia, porque senão ninguém identifica quem ali é a patroa.
Talvez uma das qualidades do projeto “Amazônia das Palavras” seja justamente entrar na alma do amazônida. O barco da expedição literária deixou para trás Borba, esperando haver instalado algumas dúvidas em seus moradores. Continuou subindo o rio Madeira, realizando oficinas em Novo Aripuanã na quarta (14) e Manicoré na sexta (16) onde encontramos um público entusiasmado.
Orquestra afinada
Nas três cidades, contei histórias indígenas para turmas do sexto ano do ensino fundamental. Em Manicoré estavam 10 alunos munduruku da aldeia Boca do Jauari, que viajaram mais de sete horas de barco só para participar da oficina. Vários alunos indígenas contaram historias que serão transcritas aqui na próxima semana.
O que vou relatar agora são as atividades de duas outras oficinas ministradas pelo escritor José Roberto Torero e o percussionista Bira Lourenço, que fizeram uma atividade conjunta: a recriação da conhecida história “João e o Pé de Feijão”. A mãe do João pede ao filho que vá à feira para vender a única vaquinha. No caminho, João troca a vaca por um saco de feijão mágico que a mãe, desesperada, atira pela janela. A partir daqui a história foi recriada pelos alunos.
Na versão das crianças do rio Madeira, o pé de feijão não cresce para o alto, João não rouba a galinha de ouro do castelo, a mãe não mata o gigante. Não têm ladrão nem assassino nessa história. O pé de feijão cresce para os lados, dá muito feijão, eles decidem fazer uma feijoada. Quem comesse aquele feijão mágico nunca mais teria fome em sua vida. Todos comem. Em contrapartida, passam a soltar puns sem parar. A cidade muda de nome para Flatolândia. E é aqui que entram os alunos da oficina de sons do cotidiano.
É possível enriquecer uma história com sons – assegura Bira, que levou bateia de garimpo, bola de gude, semente de seringueira, vasilha de plástico e de barro, apito com pio de pássaro. Que sonoridade tinha o lugar onde morava João? Que tipo de som registra o crescimento da árvore? E o som de fome? O burburinho dos moradores comentando a feijoada?
Mas o ponto alto foi mesmo a orquestra de puns, inspirada na história contada por Jorge Pozzobom no livro “Vocês brancos não têm alma”. As crianças se divertiram imitando os puns dos moradores de Flatolândia, que variavam de timbre, de intensidade e duração. O som baixo e profundo imita o pum do gigante. O rio Madeira, abençoado por santo Ernulfo, está rindo, alegre, com as oficinas e com o espetáculo do Palhaço engolidor de letras.
http://www.taquiprati.com.br/cronica/1424-vozes-da-amazonia-na-terra-da-flatol
0 comentários:
Postar um comentário