29 de mai. de 2019

Em carta a Damares, ex-presa política denuncia destruição deliberada da Comissão de Anistia pelo governo Bolsonaro e deixa órgão; leia íntegra. - Editor - O QUE NÃO É DELIBERADO NO GOVERNO PSL 17 ?

Em carta a Damares, ex-presa política denuncia destruição deliberada da Comissão de Anistia pelo governo Bolsonaro e deixa órgão; leia íntegra
Rita Sipahi: A nomeação de sete militares (na foto com a ministra Damares Alves) como conselheiros da Comissão de Anistia é a inversão da política de anistia. Fotos: Rafael Stedile, e Antônio Cruz/Agência Brasil
DENÚNCIAS

Em carta a Damares, ex-presa política denuncia destruição deliberada da Comissão de Anistia pelo governo Bolsonaro e deixa órgão; leia íntegra


28/05/2019 - 22h08
por Conceição Lemes
A advogada Rita Sipahi, uma das grandes ativistas da luta pela memória, verdade e justiça no Brasil, não é mais conselheira da Comissão de Anistia.
Na tarde de sexta-feira passada, 24/05, se concretizou o que ela havia anunciado em 20 de maio.
Em carta enviada à ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Damares Alves,  Rita solicitou em caráter irrevogável o desligamento da Comissão.
Cearense, iniciou a sua graduação em Direito, em Fortaleza, concluindo-a em Recife em 1964.
Ingressou na militância política em 1962, através da Juventude Universitária Católica (JUC) e da recém-criada Ação Popular (AP), ambas ligadas ao Movimento Estudantil.
Foi uma das vítimas da violência da ditadura militar no Brasil.
Em 1971, foi presa pelo DOI-Codi, no Rio de Janeiro, onde vivia com seus dois filhos pequenos.
Transferida para São Paulo, passou pelo DOI-Codi, Deops e, por último, no presídio Tiradentes, cuja ala feminina tinha o apelido de “torre das donzelas”.
Aí, ao lado da ex-presidenta Dilma Rousseff e de Elza Lobo, ficou presa quase um ano.
“A Elza Lobo foi a presa política que me recebeu na entrada do presídio Tiradentes, um momento do qual vou sempre me lembrar”, diz, emocionada.
Desde então é defensora incansável dos direitos humanos.
Em 2009, tomou posse como conselheira da Comissão de Anistia, representando anistiados e anistiandos, cargo sem remuneração que ocupou até a sexta-feira passada.
Ao longo desses dez anos, Rita foi uma referência. Seu trabalho é reconhecido e respeitado por todos os que atuam na área.
A carta de Rita a Damares (na íntegra, ao final), comunicando a sua saída, é um documento histórico desses novos tempos bicudos que exigem todos os cuidadis.
Um documento substantivo, factual, em que Rita põe o dedo na ferida: a nomeação de sete militares para conselheiros da Comissão de Anistia.
Para Rita, é a inversão da política da anistia:
A iniciativa de nomear, como conselheiros, pessoas que não os consideram como resistentes e perseguidos (as) políticos(as), que não reconhecem as violências – agressões, intimidações, choques, torturas de todo tipo, inclusive diferenciadas quando a vítima era mulher – significa uma inversão da política de anistia, uma violação do direito conquistado.
 Os anistiandos, protagonistas desta história, devem ser respeitados; muitos enfrentam todos os dias as lembranças do tempo da ditadura; as marcas estão impressas em seus corpos e cérebros e são indeléveis.
Em tom sereno mas muito firme, ela denuncia:
A atual gestão da Comissão de Anistia não se pauta pelos princípios constitucionais estabelecidos na Constituição Cidadã. Do mesmo modo, não reconhece os valores de transparência, de publicidade e todos os que compõem os direitos humanos como fundamento do Estado Democrático de Direito.
Rita vai mais longe e põe em xeque a nova comissão:
Sua legitimidade está comprometida e os fatos relatados demonstram que os rumos estabelecidos pelo atual Governo são contrários aos valores defendidos e às conquistas realizadas, que continuarão a ser defendidos pelas entidades de anistiados e anistiandos e seus familiares, bem como pelas mulheres e homens conscientes de seus direitos e dos direitos humanos.
A carta de Rita Sipahi a Damares é um documento de memória, verdade e justiça.
Eu entrevistei-a a respeito.
Viomundo –  O que sentiu na hora em que enviou, por e-mail, a sua carta, comunicando o afastamento definitivo da Comissão de Anistia?
Rita Sipahi  — Desde a audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara dos Deputados, em 3 de maio, ficou mais forte a preocupação do que significava continuar na Comissão .
Enviar a carta significou o momento da concretização da decisão, que se construiu com a discussão e a redação.
Momentos difíceis, uma sensação de perdas, a serem enfrentadas não mais por dentro da Comissão.
Viomundo – Você discutiu com anistiados e anistiandos a tua saída?
Rita Sipahi – Claro! A decisão é pessoal. Porém, a representação é coletiva, logo não poderia ser uma atitude pessoal.
Discuti com anistiados e anistiandos em São Paulo. Entendo que a minha continuidade seria a  legitimação da Comissão da Anistia, embora esta não fosse a posição da maioria.
A resistência no governo Temer foi um aprendizado que deu a dimensão das dificuldades. Havia na Comissão interlocutores, a disputa fazia parte.
Viomundo – Tentaram demovê-la da decisão?
Rita Sipahi – Alguns achavam que eu devia continuar… dar um tempo. Mas com muito respeito e solidariedade, compreenderam a minha posição. Foram muitas emoções, de certeza, de dúvida.
Viomundo – Há quantos anos você atuava na Comissão de Anistia, representando anistiados e anistiandos?
Rita Sipahi – Desde 2009. Portanto, há dez anos.
Por indicação do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] e da direção do Grupo Tortura Nunca Mais, principalmente, eu fui convidada a participar da Comissão por Paulo Abrão, então seu presidente.
Um dos critérios era ter atuação reconhecida na área dos direitos humanos.
Além disso, revelou-me Paulo Abrão na época, a minha indicação acrescentava a experiência de ter sido presa política.
Seria importante ter na composição do Conselho a participação de uma pessoa que fora perseguida política, de uma organização clandestina.
Viomundo — Desde o golpe de 2016, a Comissão da Anistia vem sendo destroçada.  De lá para cá qual o momento mais difícil que você enfrentou?
Rita Sipahi – Foi no governo Temer, quando o pedido de desculpas foi subtraído dos anistiados da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).
Viomundo – Explique mais.
Rita Sipahi –  Em 7 de novembro de 1988, os 30 mil metalúrgicos da CSN iniciaram uma greve e ocuparam a Usina Presidente Vargas, em Volta Redonda (RJ).
Em 9 de novembro, tropas do Exército invadiram a empresa e assassinaram  a tiros três trabalhadores, além de ferir outras 31 pessoas. A tragédia ficou conhecida como ‘massacre de Volta Redonda’.
A ditadura militar havia acabado, mas a repressão seguia os mesmos moldes.
Pois bem, em 2018, o presidente da Comissão de Anistia do governo Temer sugeriu que o pedido de desculpas fosse eliminado no caso dos trabalhadores anistiados da CSN.
O pedido de desculpas foi então discutido na reunião administrativa da Comissão de Anistia.
O argumento era que cabia ao ministro da Justiça desculpar-se. E aos conselheiros, se os trabalhadores insistissem na responsabilização jurídica.
O Estado, através de um governo autoritário, não reconhecia o que estava escrito na Constituição Federal.
Viomundo — A eliminação  do pedido de desculpas aconteceu só no caso dos anistiados da CSN?
Rita Sipahi — Lamentavelmente, não. A partir daquele dia, o pedido de desculpas foi retirado do ritual da Comissão de Anistia. Era comum ouvirmos dos(as) anistiados(as) ser aquele momento o mais importante de todo o processo.
Viomundo — Entre os novos integrantes da Comissão de Anistia há vários militares apoiadores do golpe de 1964, defensores da  ditadura e do uso de tortura. Chegou a se reunir alguma vez com eles?
Rita Sipahi – Nenhuma. Houve uma reunião administrativa no dia 4 de maio, mas eu não compareci por problema de saúde.
Viomundo – Os militares estão de volta ao poder. Há relação entre esse retorno e o fato de a anistia ter perdoado os que perpetraram crimes lesa-humanidade na ditadura?
Rita Sipahi — Acho que os militares voltaram devido à política de esquecimento que desde sempre existiu no Brasil. A impunidade que lhe foi atribuída na Lei 6.683/79, a chamada Lei da Anistia, continuou vigorando
As tentativas de esclarecimento, através das diversas Comissões, não foram suficientes para que o conhecimento dessa história de violações dos militares chegasse a toda a sociedade.
Viomundo – O fato de a Comissão da Verdade não ter recomendado a punição dos torturadores e assassinos da ditadura contribuiu para que não se fizesse  o acerto de contas com o passado, permitindo o retorno dos militares ao poder?
Rita Sipahi — O Estado Democrático de Direito foi conquistado por uma grande mobilização das entidades da sociedade. Penso que a continuidade das articulações no sentido de assegurar as conquistas foram ou institucionalizadas ou fragmentadas. Assim, as violações de direitos humanos não foram interpretadas como consequências a serem radicalmente enfrentadas.
Viomundo — Qual a perspectiva para uma Comissão de Anistia de um governo cujo presidente aplaude torturadores, defende abertamente a tortura e a morte de ativistas de esquerda?
Rita Sipahi —  A perspectiva para a continuidade da Comissão de Anistia é hoje responsabilidade da sociedade civil através das organizações , entidades de direitos humanos e partidos, a  partir do entendimento de que a Justiça de Transição — Memória, Verdade e Justiça tem que continuar. Deve ser inscrita em todas as pautas das lutas sociais e políticas.
Um exemplo de luta imediata é a do Memorial da Anistia Política, que desde o governo Temer teve a sua continuidade suspensa e todas as investigações feitas não comprovaram irregularidades.
Os processos que constituem o acervo da Comissão de Anistia deverão integrar o memorial. Ele representa parte importante da história de violações recentes contadas pelos protagonistas, a memória dos que resistiram ao golpe civil militar de 1964.
As lutas pela continuidade da Comissão de Anistia e pela instalação do Memorial da Anistia Política, a ser concluído em Belo Horizonte, são batalhas que devemos continuar tendo como fundamentais. Pensar como fazer é ato de criação permanente.
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