1 de jun. de 2019

Nota de repúdio à posição do Ministério da Saúde de abolição do uso da expressão “VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA”


Nota de repúdio à posição do Ministério da Saúde de abolição do uso da expressão “VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA”



Foto: Ministério Público de SC.

A Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres do Rio Grande do Sul, Fórum do Aborto Legal do Rio Grande do Sul, e demais organizações que assinam a presente nota, as quais atuam na defesa dos direitos das mulheres, repudiam o posicionamento do Ministério da Saúde adotado em despacho do dia 03/05/2019, determinando a abolição do uso da expressão “violência obstétrica”.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, internalizada no direito brasileiro pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996, entende “por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.” Contrariando tais disposições, verifica-se que o principal fundamento do despacho se ampara erroneamente na questão de intencionalidade. O Ministério da Saúde considera impróprio o uso do termo “violência obstétrica” por crer que “tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas, não tem a intencionalidade de prejudicar ou causar dano”, remetendo ao teor do conceito da violência obstétrica pela Organização Mundial da Saúde de “uso intencional de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação”. Porém, mediante simples análise textual do conceito, conclui-se que a intencionalidade está no uso da força física ou no uso do poder, em ameaça ou prática. Ou seja, a intencionalidade não precisa estar no resultado de dano a ser gerado: a intenção do profissional da saúde não precisa estar destinada a causar sofrimento à parturiente, bastando haver esse resultado. Dessa forma, pelo entendimento firmado pelo Ministério da Saúde, há uma legitimação de ações de profissionais da saúde que causem dano, desde que “bem intencionadas”.

Ora, a prática da violência obstétrica é um exemplo claro de caso em que estes profissionais, em diversos contextos, creem estar fazendo uma ação adequada e bem intencionada, naturalizando diversas formas de violência de gênero contra as mulheres. O debate da violência obstétrica é imprescindível justamente por nomear e por considerar intervenções desnecessárias, agressivas, invasivas, danosas e inferiorizantes como formas de violência contra a parturiente. Ainda que bem intencionada a conduta da equipe de saúde, esta deve ser sempre limitada à intervenção estritamente necessária no corpo da gestante, respeitando sua autonomia e sua integridade física e emocional. O principal caráter de humanização do acompanhamento obstétrico e neonatal está no respeito da autonomia e no protagonismo da gestante. Estas diretrizes foram previstas expressamente na Portaria nº. 1.067, de 4 de julho de 2005, do Ministério da Saúde, que Institui a Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal: “A Atenção Obstétrica e Neonatal, prestada pelos serviços de saúde deve ter como características essenciais a qualidade e a humanização. É dever dos serviços e profissionais de saúde acolher com dignidade a mulher e o recém-nascido, enfocando-os como sujeitos de direitos. A humanização diz respeito à adoção de valores de autonomia e protagonismo dos sujeitos, de corresponsabilidade entre eles, de solidariedade dos vínculos estabelecidos, de direitos dos usuários e de participação coletiva no processo de gestão.” Dessa forma, a nomeação, a visibilização e a responsabilização de agentes que violentem a parturiente é essencial para que haja uma conscientização dos profissionais da área da saúde. O debate fomentado por essa abordagem busca justamente a humanização do trato na obstetrícia, visando consolidar uma forma respeitosa e humanizada de acolhimento às mulheres. O Ministério da Saúde, ao dar aval à manutenção de uma mentalidade “bem intencionada” que independe dos danos físicos e psíquicos causados às mulheres que gestam, incentiva a perpetração de violências, o que viola frontalmente o artigo 7º da Convenção de Belém do Pará, que assim estabelece: “Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em:
a) abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar por que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes e instituições públicos ajam de conformidade com essa obrigação;
b) agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punira violência contra a mulher;
c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis;
[…] e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher;”

Destaca-se que o Brasil assumiu compromisso internacional de redução da mortalidade materna e neonatal, por meio dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Esta agenda mundial parte da constatação do Ministério da Saúde (MS) que “um número expressivo dessas mortes poderia ser evitado por ações dos serviços de saúde, a partir de atenção adequada ao pré-natal, ao parto, ao abortamento” (Szwarcwald et al, 2014; SOUZA, 2015). As políticas nacionais implementadas pelo MS reconhecem as práticas iatrogênicas impetradas contra as mulheres e seus bebês nas instituições de saúde e propunham um “novo modelo de atenção obstétrica e neonatal”. O modelo proposto é baseado nas recomendações das boas práticas de parto e nascimento da Organização Mundial de Saúde, embasadas nas melhores evidências científicas e na garantia dos direitos humanos, considerando, ainda, o princípio da bioética da autonomia das mulheres sobre seus corpos.

Diante disso, reafirmando a defesa dos direitos das mulheres, principalmente o direito à saúde sexual e saúde reprodutiva e as normas consagradas internacionalmente, as organizações signatárias repudiam a orientação do Ministério da Saúde de abolir o uso do termo de violência obstétrica e reivindica a manutenção da Política de Saúde das Mulheres em todos os entes federativos.  

Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos
Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres do Rio Grande do Sul

Clique aqui para assinar o abaixo-assinado se você é contra a abolição da expressão “violência obstétrica”

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