GERAL
Reino universal do deus dinheiro
Como os pastores do bispo Edir Macedo, por meio de técnicas de persuasão agressivas, arrecadam R$1,4 bi por ano de 7 milhões de fiéis nos milhares de templos espalhados pelo Brasil e exterior
Por Flavio Ilha / Publicado em 11 de junho de 2019
O pastor Luciano Santos pede com insistência a caixa de remédios. “A caixa lá que tá cheia de remédios, meu Deus. Misericórdia! Rapidinho, Baiano!”, diz, impaciente. O obreiro se apressa e traz para o altar uma cestinha plástica, dessas de supermercado, abarrotada de caixas de medicamentos contra pressão alta, diabetes, reumatismo, males cardíacos. O pastor então continua, em tom teatral: “Pra tu ver o que Deus tá fazendo contigo, meu irmão. Não é história, não! Sabe o que é isso aqui? É as pessoas ficando curadas e dizendo: eu não preciso mais!”, explica o homem, mostrando a cesta para uma plateia de 300, 350 fiéis. “São pessoas que estão sendo abençoadas, pessoas que o cativeiro está sendo quebrado”, explana
São quase quatro horas de uma tarde chuvosa de maio em Porto Alegre, e o templo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), no Centro da Capital, com capacidade para 4.100 pessoas sentadas, está praticamente vazio. Mesmo assim, a plateia diminuta se acotovela nos degraus que levam ao altar para ouvir a mensagem do pastor Luciano, que ocupa os cultos das terças-feiras na catedral da Avenida Júlio de Castilhos. Todo trajado de preto, o religioso faz a segunda sessão do dia – à noite, realizará mais uma, em que novamente mostrará a caixa de remédios para os fiéis.
Luciano Santos, um goiano que já pregou por várias regiões do país e também do Rio Grande do Sul, é um dos 11 titulares dos cultos na catedral da IURD, a igreja evangélica do bispo Edir Macedo, que há mais de 40 anos desafia o poder aparentemente inabalável, entre os brasileiros, do cristianismo. Os últimos dados confiáveis sobre o tamanho da Universal, entretanto, desmentem esse tabu: segundo o Datafolha, 7 milhões de brasileiros se diziam seguidores de Macedo em 2017, contra um público estimado de 120 milhões de católicos. Somando todas as centenas de neopentecostais do Brasil, o número de devotos sobe a 40 milhões de pessoas.
Parece pouco, mas esses 7 milhões de seguidores garantem por ano à igreja do bispo Macedo uma arrecadação, apenas em dízimo, de R$ 1,4 bilhão em cerca de 7 mil templos espalhados pelo Brasil e outros 2.800 em cem países – do Japão aos Estados Unidos, dos Emirados Árabes à Argentina. A informação é da Receita Federal. Isso sem contar a renda das rádios e TVs, das empresas de turismo, de produção audiovisual e de parte do banco Renner, adquirido pelo bispo em 2013.
O grande filão de renda, contudo, é mesmo o varejo. O pastor Luciano, por exemplo, avisou que iria colocar um exemplar da Bíblia sobre a caixa de medicamentos que mostrou aos fiéis. “Abre teus olhos, irmão. Eu vou colocar a Bíblia em cima dessa caixa de remédio. E vou finalizar (o culto) pedindo pra você passar aqui no altar e lançar, em cima desta Bíblia, a sua maior oferta. ‘Pastor, o que eu posso dar é R$ 100. É R$ 200. Eu posso passar o cartão. Eu posso dar R$ 20. R$ 10. Uma moeda’. Não importa. Porque se a tua intenção é honrar o altar mais do que o balcão da farmácia, então Deus vai te dar saúde.”
É claro que ninguém que frequenta os cultos da Universal de Porto Alegre terá no bolso uma cédula de R$ 100 para depositar na caixa, mas logo se forma uma fila de crentes que cruza o palco em direção à saída do altar depositando notas de R$ 2, R$ 5, R$ 10, além de moedas, muitas moedas, sobre a cesta empunhada por outro obreiro – depois da procissão, o dinheiro é recolhido num saco azul com o logotipo colorido da IURD.
Durante todo o trajeto dos fiéis, o pastor Luciano segue estimulando as contribuições, por menores que sejam: “Passa, gente, e coloca a tua oferta ali. Pra amarrar esse demônio. Vamos quebrar esse cativeiro dos infernos”, diz, referindo-se aos gastos dos fiéis com remédios – alguns relatam que usam metade da renda mensal com medicamentos. “Passa aqui o cartão e usa a tua fé!”, grita ele. Duas máquinas de débito e de crédito ficam à disposição para o dízimo, enquanto, ao fundo, um órgão entoa músicas religiosas em tom épico. Multiplique isso por 42 cultos semanais, em que o dinheiro é recolhido dos presentes pelo menos duas vezes por sessão, e teremos o potencial de receita da IURD.
Sermão para arrecadar
Esse é o ápice do Ritual Sagrado, culto que ocorre na Universal todas as terças-feiras, em seis sessões diárias, que começam às 6h e se estendem até 20h30. Às vezes, dependendo da disposição do pastor, até um pouco mais. Nos outros dias da semana, os cultos têm outros nomes – Noite da Salvação nas quartas-feiras, Jejum Coletivo aos sábados –, mas em todas elas, os responsáveis pelos rituais se esforçam para um único objetivo: arrecadar. A voracidade é tamanha que em alguns cultos, cuja duração dificilmente passa de uma hora, há três momentos distintos de cobrança.
Não é exagero falar em cobrança, já que o discurso dos pastores é impositivo. O pastor Luciano Santos evoca que os presentes escolham as terças-feiras para doar porque ele tem a fé de fazer multiplicar a doação. “Não é porque eu estou interessado no teu dízimo ou no teu voto. É porque eu tenho fé de fazer multiplicar o que você tem. Eu te garanto que o Deus que cura o físico e o emocional também cura teu bolso. Eu não estou aqui botando cabresto em ninguém, não. Mas se você vê sinceridade em mim, pega esse saquitel vermelho, da terça-feira, e põe isso dentro de você”, diz.
Na sessão do sábado seguinte, o titular da pregação, pastor Felipe Oliveira, diz explicitamente que quem não contribuir com o dízimo está “roubando” Jesus. “Se você quer tomar posse das promessas de Deus, você tem que fazer essa aliança comigo. Você tem que se tornar dizimista fiel aos sábados, não tem como eu buscar esse Deus, pedir as promessas d’Ele se eu roubo a Ele no dízimo, entende? O dízimo é santo, é sagrado.”
Em seguida, distribui um saco de feltro aos presentes, com as inscrições “pacto com Deus” e “fidelidade”, e determina: “De tudo que passar pelas tuas mãos esta semana, você vai colocar 10% aqui dentro como dízimo, neste saquitel. E no sábado que vem, em jejum, vais apresentar o nosso dízimo, a nossa fidelidade a Deus. Tá ligado, gente? Se você precisar usar a maquininha pra separar seu dízimo agora, já pode vir aqui na frente procurar os pastores”.
Na mesma sessão, os obreiros entregam aos presentes um envelope com as inscrições “eu era cego e agora vejo” e, dentro dele, um saquinho de plástico com um pouco de água supostamente retirada do tanque de Siloé, em Jerusalém. Nesse local, Jesus teria curado um cego de nascença ao pedir a ele que lavasse os olhos com a água do poço. O envelope deveria ser devolvido no jejum do dia 1º de junho, sábado, com alguma contribuição em dinheiro.
Na parte final do culto, Oliveira dá o golpe fatal: distribui um envelope de papel em forma de arca aos fiéis e estipula o dia 29 de junho como data para devolução da oferta – quando o invólucro, que representa um baú do tesouro, deverá ser entregue a ele com R$ 187 em cédulas: uma nota de R$ 100, uma de R$ 50, uma de R$ 20, uma de R$ 10, uma de R$ 5 e, por fim, uma de R$ 2, como forma de fechar o “ciclo dizimista”. Para quem preferir a comodidade da transferência bancária, o pastor distribui cartões com os números de duas contas correntes da IURD, no Banco do Brasil e no Bradesco.
Os rituais de arrecadação se repetem por toda a semana, em todos os 42 cultos. Os pastores, que não têm vínculo empregatício com a Universal, competem entre si e ganham percentuais por produtividade. A meta de uma igreja depende do seu tamanho: varia de R$ 25 mil a R$ 500 mil por mês.
Um pastor pode receber entre R$ 2,5 mil e R$ 20 mil, em pagamentos quinzenais, além de ajuda de custo, como automóvel e aluguel, porque os bens pessoais são vedados – um pregador não pode acumular rendimentos, na medida em que isso é um mau exemplo para quem prega o desapego aos bens materiais. Os bispos, entretanto, podem ter bens. O séquito de Macedo envolve 320 bispos e cerca de 14 mil pastores.
“A eficiência arrecadadora da Universal se deve, em grande parte, à sua agressividade, insistência e incomparável habilidade persuasiva (dos pastores) nessa matéria. Quem não paga o dízimo, rouba a Deus, que, na condição de dono de todas as riquezas existentes, exige de volta 10% dos recursos que concede aos seres humanos. Para provar a própria fé, os fiéis são induzidos a realizar sacrifícios ou desafios financeiros que crescem com o tamanho da devoção”, diz o sociólogo Ricardo Mariano, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor do primeiro estudo acadêmico sério sobre a IURD, em 1999.
Habilidade na coleta de dízimos é considerada bênção divina
Para ser pastor na Universal, os requisitos são a conversão, a dedicação e o desejo de “fazer a obra de Deus”. Em alguns estados, há um curso especial e intensivo, com duração de seis meses, no qual o obreiro – que é um ajudante voluntário dos cultos – é orientado nos princípios básicos do cristianismo e da IURD para ter sua promoção aprovada. Depois de nomeado, um pastor está apto a atuar em qualquer igreja da Universal. As transferências são muito frequentes.
Segundo um ex-pregador da Universal ouvido pela reportagem do Extra Classe, o aprendizado para exercer o pastorado ocorre mediante a atuação prática e direta nas igrejas. “Para o aspirante, basta aprender a reproduzir corretamente o que os titulares fazem no púlpito, incluindo o discurso agressivo, a teatralidade, a oratória e a persuasão. Mas, para avançar na hierarquia, é preciso demonstrar muita capacidade de coletar dízimos e ofertas, habilidade que é tida como sinal de bênção divina”, narra.
Os obreiros – mais de 100 mil espalhados pelo país, nas contas da IURD – são os operários da Universal. Eles trabalham de graça, dão bênçãos aos fiéis, ajudam com a arrecadação nos cultos e são candidatos naturais a ocuparem postos hierárquicos mais cobiçados. Para se candidatar, é preciso fazer três meses de aulas virtuais no Curso Preparatório de Obreiro (CPO). O curso custa entre R$ 160 e R$ 210, dependendo da escola.
Além disso, os obreiros precisam investir em uniformes – diferentes e com regras rígidas para homens e mulheres –, que podem custar até R$ 300. Em relação às obreiras, mesmo as cores do esmalte de unhas são selecionadas, estando vedados, por exemplo, tons que não sejam variações de vermelho e rosa e também pinturas decoradas. Homens, se optarem por barba ou bigode, o que não é nem um pouco recomendável, devem cuidar da harmonia dos fios. Cabelos compridos, nem pensar.
Investigações arquivadas
O Ministério Público Federal já tentou enquadrar a Igreja Universal por sonegação fiscal, evasão de divisas, formação de quadrilha. Tudo em vão. Em 2009, Macedo e mais nove integrantes da IURD se tornaram réus na Justiça sob as acusações de apropriação indevida dos dízimos e ofertas dos fiéis. Um ano depois, a Justiça considerou as investigações ilegais e arquivou o caso.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul também abriu um procedimento investigativo contra a Universal, em 2017, para apurar suposta conduta criminosa nos rituais da Fogueira Santa – em que os fiéis são incentivados a doar tudo o que têm. O promotor Ricardo Herbstrith queria avaliar a possibilidade do crime de estelionato pelos pastores da IURD “ao prometerem uma coisa que não pode ser entregue”. A investigação não foi aceita pela Justiça estadual.
A reportagem do Extra Classe entrou em contato com a Igreja Universal no Rio Grande do Sul para questionar sobre as suas práticas de arrecadação, mas não obteve resposta. No dia 23 de maio, enviou um e-mail ao bispo Guaracy Santos, presidente da IURD no Rio Grande do Sul, com cinco perguntas sobre a situação da Universal no estado, sem obter retorno. No dia 27, tentou novo contato – dessa vez com um assessor do bispo, identificado como Ruan, por WhatsApp, também sem sucesso. No dia seguinte, 28, telefonou para o mesmo assessor por três vezes. A chamada não foi atendida, e os recados deixados na secretária eletrônica não tiveram resposta.
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