Dossiê | Filosofia e macumba
Edição do mêsCerimônia de Águas de Oxalá, Salvador (Foto: Christian Cravo)
Este dossiê nasce de cruzos de ideias e do diálogo de pessoas que querem pensar, justamente, o encontro: as encruzilhadas. E um dos lugares mais importantes para que sejam firmados é aquele onde a filosofia se cruza com a macumba. Não queremos de modo algum fazer uma filosofia da macumba, mas sim pensar o que a encruzilhada vibra, uma vez que ela versa na máxima das possibilidades, nesse arrebate pela remontagem dos seres, pela política da presença e pelo combate ao esquecimento que a macumba impõe ao saber filosófico.
Nesse sentido, a articulação entre filosofia e macumba é necessariamente política, sendo a macumba pensada como um complexo de saber codificado de maneira contínua nos trânsitos e encontros entre diferentes modos de ser e saber. Macumba como um saber em ginga, aquilo que se busca aniquilar, mas que salta de maneira tática como experiência imantada entre gerações. Enfim, aquilo que, sendo subalternizado pela cultura eurocêntrica, precisa ser invocado e afirmado em sua potência máxima.
A afirmatividade desses saberes como tarefa política do filosofar conduz a uma política macumbeira, sendo ela capaz de mobilizar o transe dos corpos destroçados pela tragédia colonial, restituindo a vida, circulando axé (energia vital) e redimensionando o sentido da existência. Além disso, essa filosofia macumbada pela política do axé tem força para enfrentar de modo legítimo a problemática do nacional, pensando o Brasil entre a inventividade do terreiro e o terror da plantation, e encarando sem medo e sem ufanismo nem xenofobia a questão da identidade nacional – questão mais do que urgente e da qual toda filosofia parece se esquivar com medo de cair nas armadilhas (eurocêntricas) do nacionalismo. A questão permanece, portanto, em como pensar de forma múltipla esse complexo de saber, ou seja, denunciando e combatendo as retóricas discursivas racistas e fugindo de qualquer espécie de celebração da identidade nacional como fetiche ou desejo de consumo das diferenças subalternizadas.
Na atualidade, quando ataques terroristas são diariamente dirigidos a territórios de filosofia, cultura, educação e religiosidade afro-ameríndias e quando povos originários são assassinados cotidianamente sem a menor visibilidade, é preciso firmar urgentemente a aliança entre o simbólico e o político. O processo de desencantamento do mundo, que se iniciou com a racionalidade moderna (universalista e colonial), parece, em épocas de neoliberalismo e neopentecostalismo, chegar a seu ápice em termos de violência corporal, epistêmica e gnoseológica.
Essa aliança entre religião, Estado e capital torna-se hiperbólica, e a lógica do inimigo fundamenta a guerra com base em seu ataque simbólico-linguístico (como o amordaçamento, a interdição de linguagens, a recusa a outros modos explicativos fundamentais por meio de uma política de regulação do ser e saber que aparece em frases tão conhecidas como: “Só Jesus expulsa o capeta das pessoas”, “Haverá de conhecer a palavra”, “A palavra de Deus salva”, “Sai desse corpo que não te pertence”…). Contudo, é justamente essa fundamentação teológico-política que, instrumentalizada pelo capital e aparelhada pelo Estado, legitima os crimes e o terror contra terreiros, aldeias e seus praticantes, sendo tais ataques parte do plano de morticínio do Estado Colonial.
No fundo, sabemos, atacam-se terreiros por serem espaços de produção de vida, que contrariam a lógica da escassez e rompem com o encapsulamento de um modo que se quer único. Os terreiros como matrizes e motrizes geradoras de vida alargam subjetividades, credibilizam outras inscrições e recuperam possibilidades de um mundo outro. Nesse sentido, contrariam a política estatal dos assassinatos, que não suporta a alegria, a criação, a celebração da vida, inclusive por aqueles que supraviveram (encantaram-se) ou cruzaram a kalunga (ancestrais). É por essa razão que esses saberes são potentes na emergência de narrativas múltiplas, encruzadas, fronteiriças e transgressoras, que esquivam e revidam tal política do achatamento simbólico do imaginário popular praticando territórios não desencantados pela política, pela ciência e pela filosofia dominante e propondo feitiços para imacumbá-los.
E mais: se a palavra macumba, vinda muito provavelmente do quicongo, quer dizer o encontro, a reunião (ma) de poetas feiticeiros que encantam com a palavra (kumba), essa guerra precisa ser empreendida coletivamente, por uma comunidade que pratica o encanto como política de inscrição do ser e saber no mundo. Referenciados por política cósmica e ancestral, lançamos no tempo: não há virada epistêmica que não seja também uma virada linguística e por isso poética. Assim, essa virada linguística que o feitiço invoca busca corporificar as palavras. Palavras são corpos e potencializam a presença enquanto vida em potência, e não como mortandade, escassez e desencanto.
O contrário da vida não é a morte, mas o desencanto, firma a sentença disparada em Flecha no tempo. É por isso que os ebós epistemológicos que precisam ser praticados para despachar o carrego colonial são também encantamentos de palavras e de corpos, através de uma produção textual que invoque perspectivas mandingueiras e brincantes, em um processo educativo contínuo, pois a guerra nunca termina.
Este dossiê é, portanto, um sopro que bendiz as vivacidades que se lançam na luta, uma amarração atada por muitas mãos e bocas que invocam a força do feitiço e se comprometem a responder de maneira responsável às demandas da guerra em que estamos lançados, reivindicando a inventividade e a sapiência daqueles que dobram o tempo na hora grande e respondem com vida aos assombros do terror.
Nesta trama se encruzam cinco escritos. O primeiro deles, riscado por Rafael Haddock-Lobo, trata de despachar a porteira para firmar a gira macumbística que arrebata em transe a filosofia. Luiz Rufino invoca o dono da rua, sua corte e pensamentos para encarar a batalha, que se dá nos ritos cotidianos, como instância de reivindicação da vida contra o desencante perpetrado pela guerra colonial. Wanderson Flor do Nascimento em seu escrito nos apresenta o conceito de ikupolítica como um modo de resistência à necropolítica, lembrando que a morte como trânsito da experiência vivente nutre de sentidos a comunidade e, assim, os regimes de terror miram também o aniquilamento dos ritos e sentidos que fundamentam a vida como exercício coletivo. Em diálogo com a espiritualidade da aldeia Brasil, Luiz Antonio Simas convoca aqueles que supravivem no encanto, que são vivos, pois não são esquecidos e baixam caçando os vazios; driblam e criam. Daí, a umbanda e o futebol como arte de caboclaria e prática de terreirização de mundo. Tendo como base a ciclicidade da gira – assim não há fim, mas sempre um novo início –, Katiúscia Ribeiro compartilha o axé do poder feminino nas tradições africanas apresentando caminhos da política matriarcal inscrita nas travessias transatlânticas e plantadas nos terreiros daqui.
Saravando a espiritualidade dos guerreiros que se lançam como flechas nas macumbas brasileiras, cantamos que eles são os mateiros que abrem caminhos. São combatentes, mas antes nos ensinam também o momento de observação, a estratégia e a tecnologia ancestral que diz o momento certo do bote. E não podemos nunca deixar de esquecer que a força do guerreiro, seja qual for sua carapuça, é também a força do feitiço.
Por essa razão, a encruzilhada na qual se encontram para arriar suas ofertas apalavradas esses cinco filhos de Ogun, em Ketu, ou de Nkosi, em Angola, carregados no axé dos guerreiros das aldeias daqui só poderia ser, no Brasil, uma ma-kumba.
E aqui fica o convite a todos que querem coletivamente lançar seus brados e atirar suas flechas, plantar vida, semear vida como batalha contra o desencanto!
Rafael Haddock-Lobo é doutor em Filosofia pela PUC-Rio e professor do Departamento de Filosofia da UFRJ e da UERJ
Luiz Rufino é doutor em Educação pela UERJ