18 de mai. de 2020

Algumas pessoas comem animais silvestres. Não as culpe pela pandemia. - Editor - A PANDEMIA A EXTERMINAR É A PANDEMIA DOS LUCROS, DOS JUROS E DA EXPLORAÇÃO HUMANA.


Algumas pessoas comem animais silvestres. Não as culpe pela pandemia

O espectro do ecofascismo pode destruir terras e estilos de vida de povos indígenas ao redor do mundo. Español English
Fiore Longo
14 May 2020
Mulher indígena da comunidade Baka, na República Democrática do Congo
 | 
Survival International
“Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.”
– Albert Camus
Preciso fazer uma confissão. Não faz muito tempo, eu estava sentada no chão em uma parte remota da Índia quando me ofereceram um prato de arroz e carne. Como filha do mundo ocidental, não conseguia parar de indagar a origem da carne. Meus anfitriões se olharam de relance (o que nunca é um bom sinal!) antes de responder com um sorriso, "Carne tribal". Era morcego. O que para as pessoas locais era parte de seu estilo de vida, para mim, na época, era apenas mais uma história para embelezar meu status de aventureira entre amigos na Europa.
Mas há alguns meses, algo aconteceu, algo que parecia ser coisa de filme, que as pessoas comuns jamais esperavam que pudesse acontecer de verdade. Em um dos chamados "mercados molhados" (wet markets), onde produtos frescos, incluindo animais selvagens, são vendidos na cidade chinesa de Wuhan, algo deu errado para os humanos. Segundo o governo chinês, foi lá, possivelmente de um morcego, que a epidemia de Covid-19 surgiu.
Embora a história da sua origem esteja aberta à crescente dúvida, nada muda o fato de que o vírus se espalhou rapidamente, assim como os preconceitos, os equívocos e, obviamente, os falsos profetas. Os anjos do apocalipse, especialmente os conservacionistas e especialistas que nunca saem do seu escritório, exigiram rapidamente o fechamento dos mercados e o fim completo e global da "caça furtiva", do consumo e do "tráfico" de animais silvestres.
Um "detalhe" negligenciado por tais entusiastas da conservação – que normalmente têm um supermercado à disposição perto de casa e dinheiro suficiente para usá-lo como fonte de alimentos – é que animais silvestres são tanto uma fonte importante de proteína quanto uma fonte central da identidade de muitas culturas na África e na Ásia.
Um bom número de europeus e americanos também não são contrários à caça sazonal em seus pratos. Mas os gritos apocalípticas dos conservacionistas não param por aí. Atribuindo a perda de biodiversidade e urbanização à doença (embora os elos não estejam comprovados), eles também estão usando a epidemia para pressionar por mais "Áreas Protegidas", e para que o "problema" da superpopulação seja "resolvido".
Tudo isso, dizem eles, é baseado na ciência. Mas não é verdade. Na realidade, os argumentos para proibir o consumo e o comércio de animais silvestres, criar mais Áreas Protegidas e lidar com a "superpopulação", derivam de especulações, meias verdades, deturpações deliberadas, preconceitos ocidentais e o espectro do ecofascismo. A proibição poderia ser um desastre para as terras e estilos de vida de povos indígenas ao redor do mundo.

Os Canibais e a Civilização

"Eu não sou racista, eu estaria dizendo exatamente a mesma coisa se os hábitos alimentares da Nova Zelândia tivessem causado isso. A Ásia e a África devem ser proibidas de comer animais selvagem, e esses mercados cruéis e anti-higiênicos interditados para sempre", escreve um dos muitos tweeters, afirmando que africanos e asiáticos são sujos e cruéis por causa de seus hábitos alimentares – e convencendo a si mesmos que suas opiniões não podem ser racistas.
Não parece importar se há ou não evidência consistente vinculando mercados informais a pandemias. Não importa se muitas pandemias (alguns acham que a Covid-19 poderia ser uma) foram ocasionadas por animais domésticos que "nós" adoramos comer, como galinhas e vacas. A letal gripe aviária, por exemplo, originou em patos domesticados e a famosa doença da "vaca louca", que atingiu os britânicos nos anos 90, veio do seu querido gado.
Não parece importar que carnes processadas, como hambúrguer e cachorros-quente, resultem na morte de 60.000 americanos por ano. A "nossa" comida ainda é vista como saudável, é sempre a dos outros que é supostamente "anti-higiênica".
É espantosamente arrogante que conservacionistas ditem que tipo de alimento povos indígenas podem comer
A Wildlife Conservation Society (WCS), "a organização de conservação da vida selvagem mais abrangente do mundo", vai mais além em suas afirmações. Ela agora reivindica o direito, e presumivelmente o dever, de dizer à pessoas em todas as partes o que elas devem comer, e num tom que vai do paternalismo colonial ao absurdamente histérico. "Para evitar futuros grandes surtos virais, como o surto de Covid-19, a WCS recomenda banir todo o comércio de animais selvagens para consumo humano (particularmente de aves e mamíferos) e fechar todos esses mercados."
A WCS é uma organização mais conhecida por administrar o Zoológico do Bronx, um lugar fundado por caçadores de animais de grande porte, onde 4.000 animais são mantidos em jaulas. Em suas tentativas de proibir o consumo de animais silvestres, admite que pode haver exceções para, "Povos Indígenas e comunidades locais que geralmente não têm acesso a outras fontes de proteína, e outras pessoas que caçam para consumo próprio". Mas para aqueles que não têm alternativas, continua: "Precisamos garantir que tenham acesso a aves, peixes, invertebrados em alguns casos, e proteínas vegetais produzidos de forma sustentável".
É espantosamente arrogante que conservacionistas ditem que tipo de alimento povos indígenas, e outras populações, podem comer. Eles obviamente não se importam com o papel simbólico e cultural que a comida tem para as pessoas, desde os franceses até os habitantes da floresta tropical do Congo – ambos povos que conheço bem. Não é possível simplesmente substituir uma proteína por outra, como a própria WCS relatou em suas repetidas tentativas fracassadas de substituir a carne silvestre por carne bovina em comunidades perto de Áreas Protegidas na África.
A forma como a sociedade se alimenta, como todo estudante de antropologia sabe, tem profundas repercussões, e é influenciada pela economia social, costumes, gênero, religião, e profundas associações históricas com a terra e seus animais.
Esse não é o único problema: o que acontece se proibirmos o comércio e o consumo de vida selvagem onde não há outras fontes de proteína disponíveis? Deixamos mais pessoas passarem fome? A dependência da produção industrial de alimentos, com todos os seus enormes impactos ambientais, sanitários e financeiros, é de alguma forma "melhor" do que o consumo sustentável de animais silvestres?
O racismo latente por trás dos pronunciamentos sobre proteínas "boas" e "ruins" é semelhante à diferenciação feita entre caçadores furtivos e caçadores na narrativa tradicional de conservação. Os africanos que caçam, incluindo antílopes abundantes, são "caçadores furtivos". Europeus e americanos que atiram em elefantes e outros animais em perigo de extinção – geralmente pagando pequenas fortunas para fazê-lo – são apenas "caçadores". Não é por acaso que conservacionistas estejam explorando o vírus para exigir não só o fechamento de mercados informais, mas também mais dinheiro para sua suposta "luta contra a caça furtiva". Eles afirmam que a ciência os apoia. Na realidade, não há conexão: algumas espécies de morcegos, por exemplo, não são sequer protegidas e podem ser caçadas legalmente.
Muitos dos chamados "caçadores furtivos" que acabam torturados, estuprados e mortos por guardas-florestais financiados por organizações como a WWF e WCS são, na realidade, nativos inocentes que caçam para alimentar suas famílias. A proibição do consumo de animais silvestres inevitavelmente trará mais violência e repressão contra populações vulneráveis, condenando-as a mais fome. E, é claro, não vai deter as pandemias.

Muitos, muito pobres

Conservacionistas aproveitaram a crise como uma oportunidade para criminalizar os estilos de vida de uma grande parte da população mundial, com estilos de vida que eles não gostam. Isso reforça a falsa divisão entre as pessoas e a vida selvagem, e pode, potencialmente, aumentar enormemente o tamanho das Áreas Protegidas, independentemente do custo humano.
Naturalmente, as epidemias na história sempre foram momentos de medo generalizado, onde os mais vulneráveis e marginalizados pagaram o preço mais alto. Podemos acreditar que estamos passando por um momento único na história, mas na realidade, pragas e outros desastres afetam a humanidade há milênios.
A histeria nas mídias sociais que atribui o vírus à superpopulação na Ásia e na África e afirma que "os seres humanos são o vírus" não é novidade
Estima-se que a Peste Negra, que atingiu a Europa por volta de 1348, tenha matado 30-60% da população europeia. Alguns europeus culparam vários grupos pela crise: Judeus; o clero; estrangeiros; mendigos; peregrinos; leprosos; ciganos, etc. Aqueles com doenças visíveis, como acne, psoríase ou hanseníase, eram rotineiramente assassinados.
Durante a epidemia de cólera que atingiu a Europa em 1832, os medos políticos e de saúde se cristalizaram na identificação da emergente classe trabalhadora como a fonte. Os que estavam no poder concluíram que a epidemia era resultado dos hábitos sujos dos pobres; em sua nova e em expansão economia capitalista industrializada, a pobreza era vista como a doença. A histeria nas mídias sociais de hoje que atribui o vírus à superpopulação na Ásia e na África e afirma que "os seres humanos são o vírus" não é novidade.
Alguns conservacionistas afirmam que a perda de biodiversidade contribuiu para causar o vírus. Mas aqueles que culpam o comércio de animais silvestres se mantém, em grande parte, em silêncio sobre o principal motor dessa perda – o consumo excessivo. E eles parecem não ter problemas em fazer parcerias com algumas das indústrias mais poluentes e destrutivas do planeta, incluindo madeireiras e fabricantes de armas.
Mesmo que se aceitem as alegações de uma ligação entre a perda da biodiversidade e a disseminação do vírus, que é altamente discutível, culpar o Sul Global é ao mesmo tempo racista e inútil. Não nos esqueçamos que a demanda pelos recursos naturais extraídos de paisagens degradadas e por trás de desastres ecológicos é, em grande parte, impulsionada pelo Norte Global, não pelo Sul supostamente "superpovoado". E não nos esqueçamos também que muitos povos locais e indígenas, que vivem de forma sustentável em muitos dos lugares mais biodiversos do planeta, estão sendo expulsos de suas terras, despojados de sua auto-suficiência e forçados à existência marginal nas cidades, somando seus números à superlotação urbana.
Quem está por trás desse fenômeno? A resposta são os conservacionistas, as indústrias extrativistas e outros setores do Norte Global.
Culpar os mais pobres e vulneráveis, e forçá-los a um altar sacrificial para proteger nosso estilo de vida é "ecofascista", uma ideologia que, sob o pretexto de proteger o meio ambiente, procura-se assegurar a sobrevivência de apenas jeito de viver, conformado por pessoas supostamente "superiores", às custas de outros que valem menos.
O slogan "os humanos são o vírus" ignora que nem todos os humanos contribuíram para a destruição do planeta, e os que mais contribuíram são os que agora exigem a proibição do consumo de animais silvestres e mais Áreas Protegidas. Essas exigências podem destruir a vida dos povos indígenas, que são, de longe, os melhores guardiões do nosso mundo natural.
Uma resposta real aos nossos problemas ambientais exigiria trazer os povos tribais para o centro da discussão, priorizando suas vozes e reconhecendo seus direitos à terra.
Alguns argumentam que a devastação causada pela Peste Negra na Europa do século XIV provocou uma mudança de pensamento que contribuiu para o surgimento do Renascimento. O coronavírus também pode ter consequências a longo prazo para a forma como vemos o mundo e a sociedade humana.
Será que os ecofascistas vencerão e explorarão o medo e o pânico para ganhar aceitação de seus pontos de vista abomináveis? Ou haverá um novo "renascimento", em que reconheceremos que a diversidade humana é a chave para proteger nosso planeta e aceitaremos que viver de animais selvagens é crucial para muitas culturas, e a prática tem pouca ou nenhuma conexão com a extinção de espécies ou vírus mortais? A resposta, como sempre, está em nossas mãos.
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