Ceres Hadich, uma força feminina no campo brasileiro
Ceres Hadich mora no assentamento María Lara, no Paraná, Brasil; Há 18 anos dedica sua vida à agroecologia, a partir da qual constrói relações humanas, sociais, ambientais e culturais transformadoras: entre a humanidade e a natureza.
O relacionamento de Ceres Hadich com a terra é intenso. Para ela, produzir alimentos envolve uma série de problemas sociais, políticos, humanos e ambientais.
Formado em Agronomia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e com mestrado em Agroecologia e Agricultura Sustentável pela Universidade Agrária de Havana, Ceres tem 36 anos e vive em assentamentos há 18 anos. Atualmente mora no assentamento María Lara, no Centenário do Sul (região norte do estado do Paraná), com seu parceiro e dois filhos; um de sete anos e outro de oito meses. Ceres também é membro do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e coordenador nacional do MST para o estado do Paraná.
Os alimentos produzidos no assentamento Maria Lara são comercializados e doados pelo Feirão da Resistência Agrária em Londrina. O Feirão surgiu em 2018 como uma iniciativa de movimentos populares, sindicatos e o MST, e tem como objetivo distribuir a produção de alimentos dos assentamentos da região para as pessoas nas cidades.
Deixar um mundo melhor e mais humano para as gerações futuras é o que Ceres quer mais fazer. "O que me inspira a produzir e construir agroecologia é o que me inspira a viver", diz ele.
Como é ser mulher e trabalhar na agricultura?
Você começa com uma pergunta muito desafiadora. Isso me parece uma provocação, porque certamente você está falando sobre uma disputa sobre visões de mundo e uma disputa hegemônica que existe não apenas na agricultura, mas em todo o mundo.
Se observarmos a essência, podemos dizer que ser mulher e trabalhar na agricultura é a coisa mais natural da vida e da história, porque as mulheres são responsáveis por cuidar e gerenciar a vida desde o início da humanidade e pela descoberta da agricultura. Está diretamente relacionado ao trabalho realizado por mulheres em comunidades originais em todo o mundo. Portanto, ser mulher e trabalhar na agricultura é uma relação direta, natural e próspera.
No entanto, em uma visão de mundo hegemônica, na qual o agronegócio é a força do capital na agricultura (que também é a força do patriarcado na agricultura), ser mulher é um desafio permanente. Ser mulher nesse cenário é estar em constante desafio de relacionamentos, opressão e superação dessas opressões. Trata-se de negação, violência e, especialmente, uma invisibilidade permanente e absoluta sobre o papel e o desempenho das mulheres no campo.
O Brasil é um dos países que mais utiliza pesticidas no mundo. Nesse cenário, quais são os desafios de trabalhar com alimentos orgânicos?
O campo brasileiro provém de uma estrutura agrária de relações de poder econômico e social extremamente arcaicas; com base nessa estrutura fundiária que deu origem ao agronegócio, que é o latifúndio. Portanto, essa é uma lógica que reflete essa visão mundial do abuso de pesticidas.
Também é importante lembrar que, quando falamos em agricultura orgânica, acabamos restringindo o debate a uma parte que o próprio capital aceita. A agricultura orgânica também se torna uma possibilidade ou uma alternativa ao mercado, mas dentro do próprio mercado.
Para nós, debater um contraponto ao uso de pesticidas nos coloca no desafio de ir além desse debate sobre agricultura orgânica, que tecnicamente pode basear-se simplesmente na substituição de insumos e isso permanece nas mesmas proporções agrícolas, nos mesmos métodos, as mesmas injustiças e as mesmas relações sociais e econômicas do campo. Então, as pessoas do MST entendem que isso não basta, acreditamos que para o agronegócio também é possível produzir organicamente, é até necessário, e eles buscaram alternativas.
Nesse sentido, o que construímos no movimento há pelo menos 20 anos sob o nome de agroecologia é uma perspectiva muito mais ampla, é uma perspectiva de confrontar diretamente o capital, o modelo do agronegócio. É muito mais do que trocar pesticidas por insumos biológicos, porque quando falamos de agroecologia, também falamos de relações transformadoras: relações humanas, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre nós e a natureza, entre nós e a natureza, entre nós e o mundo.
Conte-nos como é a vida em um assentamento.
22 de maio de 2002 foi a primeira vez que entrei em um acordo de reforma agrária. Foi o assentamento do Contestado da Lapa e tive meu primeiro contato real com o MST, dentro de um assentamento conquistado pela luta, pela organização dos trabalhadores. Depois disso, comecei a ter um relacionamento muito próximo com o MST. Em 2011, mudei-me com meu parceiro para o assentamento onde estou hoje.
As pessoas costumam dizer que o assentamento é um bom lugar para se viver. É um bom lugar para criar nossos filhos, um lugar onde somos felizes, onde realizamos nossos sonhos, onde podemos experimentar outra maneira de ver e viver o mundo. Assim, o assentamento também tem essa visão utópica e emocional ligada aos nossos sonhos, porque faz parte da realização de um sonho fundamental para qualquer Sem Terra (sem terra; um dos movimentos mais importantes da esquerda brasileira), que é a conquista da Terra.
A liquidação tem essa carga emocional de alcançar a materialização dos sonhos. Eu também digo que o acordo oferece um contraponto direto a esse modelo de agronegócio. O campo brasileiro é vasto, diversificado, gigantesco, mas quando você caminha pelos cantos do Brasil, pode ver onde há um assentamento de reforma agrária, porque visualmente se opõe diretamente ao agronegócio. Você vê casas, animais, pessoas, diversidade, biodiversidade, vida. E esse também é um significado de viver em uma comunidade de reforma agrária: vida, diversidade e novos relacionamentos.
Então, viver em um assentamento está experimentando um pouco do que sonhamos, um pouco do que pensávamos ser possível e que estamos construindo agora. Os assentamentos são comunidades: comunidades de reforma agrária, comunidades da vida, onde criamos nossos filhos, filhos de nossos filhos, filhos de nossos vizinhos, nossos companheiros. Vemos essas crianças crescerem em liberdade, com alegria, com a possibilidade de ter uma qualidade de vida muito alta. Temos a possibilidade de determinar nosso trabalho, produzir e reproduzir nossa própria existência a partir de nosso trabalho e nossos próprios meios de produção. Afinal, somos o fruto dessa conquista da terra.
Como é trabalhar com a agricultura familiar no meio de uma pandemia?
Sem dúvida, ficamos surpresos com essa expressão dessa crise global do capitalismo. Penso que é importante nunca desassociarmos isso: essa pandemia faz parte dessa ruptura que é o capitalismo. O capitalismo gera crise em todos os setores e estamos passando por uma profunda crise estrutural que já teve seus impactos na economia, nas relações sociais e no papel do Estado.
Os das cidades do interior do Brasil sentiram muito menos o impacto da pandemia do que os das grandes cidades. A maioria dos assentamentos está localizada em cidades do interior e está em uma condição mais isolada que a das cidades.
Mas o que essa pandemia revelou é o papel da agricultura familiar no Brasil e no mundo. É algo que já estamos alertando: a agricultura familiar é responsável pela produção de alimentos para o povo brasileiro e para a população mundial em geral. Nosso processo de manipulação de alimentos sempre foi realizado com muito cuidado, limpeza e higiene. E nesse período, reforçamos toda essa atenção ainda mais.
Como estão as ações de caridade do Feirão da Resistência nessa pandemia?
O Feirão da Resistência surgiu com uma natureza, valores e princípios muito diferentes. Portanto, não é simplesmente uma feira, é uma feira que traz diferentes valores humanos: compartilhamento e solidariedade. É importante notar que o Feirão tem uma prática permanente de doar alimentos para comunidades carentes.
Devido à pandemia, tivemos que retomar o Feirão no modo virtual. Além de vender cestas com produtos produzidos nos assentamentos da região, também doamos alimentos. A fome é um problema que sempre existiu, mas está piorando neste período de pandemia. Estávamos dispostos a doar alimentos para as famílias que nos visitam durante a entrega das cestas. São famílias carentes que procuram uma saída.
Além disso, o MST tomou várias medidas no Brasil. Especificamente no estado do Paraná, realizamos uma campanha de solidariedade muito marcante e nos últimos dois meses houve mais de 200 toneladas de alimentos doados. Nosso objetivo é doar pelo menos 10 toneladas de alimentos por semana. E também gostaria de enfatizar que a solidariedade para nós não está dando o que resta, mas o que temos e o que temos hoje.
O que o inspira a produzir alimentos orgânicos?
Para fins de legislação e conformidade regulamentar, produzimos alimentos orgânicos certificados por uma rede de agroecologia, a Rede Ecovida . Então, o que me inspira a produzir e construir a agroecologia é o que me inspira a viver. Eu tenho esse entendimento na minha família. Meu parceiro e eu tentamos transmitir isso como um valor para nossos filhos. Acreditamos que o que estamos construindo com a agroecologia também ajuda a construir novas relações humanas, sociais, ambientais e culturais.
É isso que nos inspira a trabalhar com a terra, com a produção, com a vida, com cuidado e com sementes. É uma maneira de fazer diferente, de viver melhor para nós que estamos no país, para quem está na cidade, para quem vive hoje e para quem ainda não chegou a este mundo.
Precisamos tomar isso como uma missão, construir um mundo melhor, construir relacionamentos melhores, construir relacionamentos diferentes, e acreditamos que a agroecologia faz parte de tudo isso.
Qual é sua comida favorita?
Eu nunca parei para pensar nisso, sabe por quê? Porque eu realmente gosto de comer muito! E para mim e nosso movimento, comer é um ato político, é um direito. A comida conta nossa história, nossa construção cultural, social e política. Comida determina tudo. Então, comer significa muito para mim.
Mas acho que minha comida favorita é comida campestre, é comida brasileira, a que produzimos e comemos, sabe? Ou o frango que cultivamos, o milho que produzimos ou fazemos uma polenta com os temperos que temos em nosso jardim, como cebola, alho e alho-poró.
Isso para mim é sabor, história, autodeterminação e soberania. Então, minha comida favorita é a que eu posso produzir e determinar como quero comer, como vou comer e quando vou comer. Eu gosto de saber de onde veio, a qualidade e os significados que tem para mim. Esta é a minha comida favorita.
Qual é o seu maior medo?
Meu maior medo é não poder deixar um mundo melhor para meus filhos, sobrinhos, amigos e gerações futuras. Eu certamente não cresci em um mundo perfeito. Cresci na cidade, mas brinquei na rua, sem muita preocupação e com acesso à educação e cultura. Cresci com possibilidades de estudar, crescer humanamente, ter o amor da minha família, viver livremente e tomar decisões que me permitiriam ser uma pessoa melhor. E temo não ser capaz de deixar tudo quando sair daqui: um mundo mais livre, mais humanizado, mais cultural, cientificamente e tecnologicamente desenvolvido.
O que você costuma fazer quando está triste?
Na tristeza, que faz parte da vida, tento me reconectar com o silêncio. Acho interessante tentar ouvir o silêncio, o silêncio interior. Tento refletir sobre o que está me causando essa tristeza, para saber o que posso mudar, se é minha ou se não é também.
Quando estou triste, procuro o seguinte: tente ser mais reflexivo, mais calmo e procure causas para enfrentar tudo isso com serenidade, calma e respiração. Agora mais do que nunca, mas sempre como uma prática. Quando as coisas parecem mais difíceis, mais nebulosas, mais estranhas, mais difíceis de encontrar, a respiração nos ajuda a encontrar um caminho, um reflexo, uma abertura, uma alternativa para sermos mais serenos e felizes.
Que música sempre faz você dançar?
Uma música que sempre me faz dançar é forró. O forró é muito brasileiro, ele é muito nosso, ele é a nossa cultura. Eu acho que isso nos diz um pouco sobre o que somos como povo brasileiro. O samba também me faz dançar! Eu gosto muito desse tipo de música, porque elas me fazem sentir bem, me fazem feliz, me fazem sentir no Brasil, que é o território das pessoas que amo, a quem quero cuidar e cuidar.
***
0 comentários:
Postar um comentário