O sistema internacional e o Império:
Hegemonia dos EUA e ascensão da China
17/06/2020
- Análisis
“La realidad es la unica verdad”.
J. D. Perón
“Conduzir é difícil, porque não se trata somente de conduzir. Se trata primeiro de organizar; segundo, de educar; terceiro de ensinar; quarto de capacitar e quinto de conduzir”.
J. D. Perón
“Observe os acontecimentos sobriamente; mantenha sua posição; enfrente calmamente os desafios; oculte sua capacidade e ganhe tempo; permaneça livre de ambição e nunca reivindique liderança”.
Deng Xiaoping
“Se conheces o inimigo e te conheces, não deves temer o resultado de cem batalhas. Se te conheces mas não ao inimigo, para cada vitória sofrerás uma derrota. Se não te conheces nem ao inimigo, sucumbirás em cada batalha.”
Sun Tzu
A Hegemonia Americana e a Ascensão da China
1. O fenômeno político, econômico e militar mais importante na política internacional é a firme disposição dos Estados Unidos de manter sua hegemonia mundial, seu poder de Império, face à ascensão e à competição chinesa.
2. A hegemonia em nível mundial é a capacidade de elaborar, divulgar e fazer aceitar pela maioria dos Estados uma visão do mundo em que o país hegemônico é o centro; de organizar a produção, o comércio e as finanças mundiais de forma a captar para a sede do Império uma parcela maior do Produto Mundial para uso de sua população, e muito em especial de suas classes hegemônicas e de seus altos funcionários; a capacidade de impor a “agenda” da política internacional; de ter a força para punir os governos das “Províncias” do Império que se recusem a aceitar ou se desviem das regras (informais) de seu funcionamento.
3. Diante deste fenômeno, a China executa uma estratégia de política externa com os seguintes objetivos:
a. evitar a confrontação militar com os Estados Unidos;
b. assegurar fontes diversificadas de matérias primas para a economia chinesa;
c. abrir mercados para as exportações e para os investimentos chineses;
d. não interferir em assuntos internos políticos ou econômicos dos países;
e. não impor condicionalidades políticas ou econômicas à sua cooperação;
f. fortalecer seus laços com os países vizinhos, em especial com a Rússia.
4. Oito presidentes, de Nixon a Obama, executaram uma estratégia de engajamento, baseada na convicção de que “abraçando” a China política e economicamente fariam com que ela se tornasse gradualmente mais capitalista, mais liberal e mais Ocidental.
5. A ênfase na Ásia (rebalance to Asia-Pacific), slogan da política externa de Obama, era sustentada por quatro pilares: a alocação de 60% da força naval e aérea americana para a Ásia; a negociação da Trans-Pacific Partnership, com exclusão da China; a exploração política das disputas da China com seus vizinhos; a manutenção do contato com a China.
6. A estratégia de Obama não só fracassou como fez aumentar as desconfianças do governo chinês e o estimulou a contrabalançar a ação americana com iniciativas tais como a Parceria Econômica Abrangente; a Área de Livre Comércio da Ásia-Pacifico; o projeto de um cinturão, uma rota, e a criação do Banco dos BRICS e do Banco Asiático de Infraestrutura.
7. Barack Obama foi sucedido em 2016 por Donald Trump, um “outsider” (estranho) em relação à política e ao Partido Republicano, e que provocou uma reviravolta, inclusive emocional e voluntarista, na condução da política externa americana e, em especial, quanto à China.
8. Donald Trump identificou a China não só como competidora, mas também como a principal adversária econômica, política e militar dos Estados Unidos que tem de ser tratada com firmeza.
9. A abordagem de confrontação de Trump atraiu surpreendente apoio bipartidário. Os empresários americanos passaram a se queixar de transferência forçada de tecnologia e dos subsídios às empresas chinesas que tornariam a competição impossível. E os políticos passaram a denunciar com mais ênfase prisões de ativistas de direitos humanos e de lideranças de minorias étnicas.
10. A estratégia de Donald Trump de decoupling (desconexão) da China para contenção do crescimento econômico e político chinês tem como instrumentos:
a. eliminar o déficit comercial dos EUA com a China;
b. impedir a transferência de tecnologia avançada;
c. reduzir a presença de estudantes chineses nos EUA;
d. impedir a adoção da tecnologia 5G da Huawei;
e. promover o retorno da produção industrial para os Estados Unidos;
f. expandir o orçamento e a presença militar americana na Ásia;
g. alinhar os países europeus com os Estados Unidos contra a China.
11. A comparação de alguns dados referentes aos Estados Unidos (e ao Império estadunidense) e à República Popular da China indica que essa disputa pela preservação e afirmação da hegemonia americana ainda se prolongará por longo período.
12. O PIB dos Estados Unidos é de 21 trilhões de dólares e o PIB da República Popular da China é de 13 trilhões. Se forem somados o produto dos Estados Unidos aos produtos das Províncias do Império mais desenvolvidas (Japão, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Canadá) este total será de 39 trilhões de dólares, cerca de três vezes o produto chinês.
13. O PIB/hab. dos Estados Unidos é de 52.900 US$/hab. e o da China é de 9.500 US$/hab.
14. A gama de recursos naturais de solo e de subsolo dos Estados Unidos é muito mais ampla do que a da China o que torna esta última mais dependente do mercado e, portanto, mais vulnerável.
15. O orçamento anual militar dos Estados Unidos é três vezes o da República Popular. A rede de 700 bases no exterior dos Estados Unidos várias ao redor da China é muito superior ao número de instalações militares chinesas no exterior. A rede de acordos militares dos Estados Unidos nas Províncias não tem paralelo com a rede da China.
16. As terras aráveis, em hectares por habitante, são nos Estados Unidos 0.480 e na China 0.078.
17. O insumo essencial (juntamente com o carvão) para gerar energia para a indústria em geral; para a indústria de fertilizantes; para a petroquímica; para a química fina; para os transportes é o petróleo. Os Estados Unidos tem reservas de 19 bilhões de barris e a China de 16 bilhões; os Estados Unidos produzem 15 milhões de b/d e a China produz 4 bilhões de b/d.
18. A influência cultural/ideológica/política dos Estados Unidos é muito mais extensa do que a chinesa, o que é possível constatar pela presença esmagadora de produtos culturais americanos em todas as Províncias (Estados) mesmo em comparação com a presença de produtos de países de cultura avançada, como a França, a Grã-Bretanha e a Alemanha. Esses produtos culturais, divulgados pelos meios de comunicação de massa e hoje também pela internet contribuem para formar uma visão favorável aos Estados Unidos, como sociedade e como Estado. Por outro lado, a extensa rede de filiais de megaempresas multinacionais americanas faz com que haja uma comunidade de altos executivos (nacionais locais) em cada Província com vínculos profissionais com os Estados Unidos. Nada disto ocorre em relação à República Popular da China, cuja influência, todavia, tenderá a crescer à medida que sua economia se desenvolve e se expande para o exterior, assim como seu poder militar e tecnológico. As características do mandarim, escrito e falado, e do inglês, afetam a difusão cultural e a possibilidade de influência da China.
19. Tanto os Estados Unidos, sede do Império estadunidense, como a China são altamente dependentes do comércio exterior como importadores e como exportadores, além no caso americano dos vínculos financeiros, empresariais e tecnológicos, e assim uma crescente influência da China em cada Província do império viria a afetar a hegemonia e a capacidade de influir americana.
20. A disputa pela hegemonia no cenário internacional está sendo afetada pelas eleições de 2020 nos Estados Unidos, pela Pandemia, pelos conflitos raciais nos EUA, pela política americana de não-cooperação com seus Aliados (Províncias) no combate à pandemia.
21. A Pandemia será vencida com a descoberta da vacina; a solidariedade e os anseios por um novo e humano capitalismo se dissolverão; as eleições americanas passarão com a vitória de Republicanos ou Democratas, assim como os conflitos raciais nos Estados Unidos se amortecerão como no passado, mas a disputa pela hegemonia global não cessará.
* * *
O Sistema Internacional: uma interpretação
22. A disputa pela hegemonia entre o Império estadunidense e a República Popular da China não se verifica em abstrato, mas sim no contexto do sistema internacional.
23. No sistema internacional coexistem um “mundo real” e um “mundo ideal”. Com maior ou menor intensidade e escopo, os Estados, as sociedades, as economias, os organismos multilaterais, as megaempresas, as ONGs, as igrejas, todos participam desses dois “mundos” que se interpenetram, se influenciam e interagem.
24. O “mundo ideal”, que gira em torno das Nações Unidas, é gerado pelos intelectuais das classes hegemônicas, em especial do Império. Suas atividades são divulgadas pelos meios de comunicação, estudadas pelos acadêmicos e objeto da atenção de militantes pacifistas que, neste “mundo ideal” colocam suas esperanças de paz, de desenvolvimento e de justiça no futuro de uma humanidade harmoniosa e feliz. Esta é a expectativa para um mundo brilhante pós covid-19, onde se iniciaria a construção de um capitalismo humano e solidário.
25. No “mundo ideal” os Estados são soberanos e iguais, ainda que dispares ao extremo em suas dimensões, em sua força militar, em sua capacidade econômica, em sua influência cultural e ideológica.
26. Estados tão dispares teriam criado através de negociações “livres”, como se integrassem uma “comunidade internacional”, a Organização das Nações Unidas (ONU), na Conferência de San Francisco, em 1945.
27. Assim proclamam ser regidos em suas relações políticas, econômicas e militares pela Carta das Nações Unidas, em especial pelos princípios de respeito às fronteiras, de autodeterminação, de não intervenção, de não uso da força, de solução pacífica de controvérsias e de respeito ao Direito.
28. A Grande Depressão, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial teriam levado a que os Estados, “voluntariamente” cedessem às grandes potências a tarefa de assegurar a paz e a segurança internacionais, através do Conselho de Segurança das Nações Unidas para que a humanidade não viesse a sofrer flagelos semelhantes colocando em risco a sobrevivência da civilização (ocidental).
29. O Conselho de Segurança das Nações Unidas, organismo de natureza oligárquica, tem a responsabilidade de manter a paz e a segurança e tem o monopólio do uso da força. Nenhum Estado pode usar força, pressão ou coação em suas relações com outros Estados as quais só podem ser usadas por decisão do Conselho.
30. Os cinco membros permanentes do Conselho, Estados Unidos, Rússia, China, Grã-Bretanha e França, têm poder de veto e se encontram, de fato, acima da Carta da ONU, já que não podem ser sujeitos a qualquer sanção, e do Direito Internacional na medida em que podem impedir qualquer ação contra seus interesses e, na prática, obedecem ou não às decisões do Conselho.
31. A Assembleia Geral seria o órgão das Nações Unidas, onde os Estados debateriam, de forma democrática, os temas da atualidade. Proporiam soluções e, através da formação de uma “opinião pública mundial”, influiriam sobre as políticas, iniciativas e decisões das grandes potências. A Assembleia Geral, todavia, não pode debater temas que estejam em exame pelo Conselho de Segurança, que são os mais urgentes e importantes e suas resoluções não são vinculantes nem para os Estados que as aprovam.
32. A Corte Internacional de Justiça arbitra as questões que os Estados a ela submetem. Sua composição contribuiria para resolver tais questões por decisões jurídicas, que seriam imparciais e equânimes. Os Estados Unidos não aceitam a jurisdição da Corte.
33. As Agências Especializadas das Nações Unidas fazem o levantamento e comparação de dados nacionais, publicam informações e estudos técnicos e propõem soluções sobre temas específicos. As agências organizam a negociação de acordos para disciplinar as relações entre os Estados em questões de sua competência. Esses acordos seriam teoricamente imparciais e equilibrados, sem que nenhuma parte se beneficiasse mais que as outras.
34. O “mundo ideal” é objeto de construção e desconstrução pelas grandes potências, sob a liderança do Estado imperial, que vão criando novos instrumentos, novas teorias, para que este “mundo ideal” os auxilie em suas políticas e ações no “mundo real”. O conceito e a prática de “direito de intervir” é uma dessas “construções” recentes.
35. O mundo, descrito acima, é o “mundo ideal” da diplomacia em que os diplomatas, em especial os diplomatas dos Estados periféricos, acreditam e trabalham e no qual lutam pela paz, pela negociação de acordos e para evitar conflitos armados. Os diplomatas do Império e das potências agem neste “mundo ideal” de acordo com seus objetivos no “mundo real” e não se deixam enganar pela retórica pacifista.
36. Os ideólogos da política internacional procuram, voluntária ou involuntariamente, ocultar a existência do “mundo real”, onde operam as agências de inteligência e de subversão, inclusive utilizando todos os instrumentos da guerra híbrida, com sua perfídia, sua violência, seu desrespeito pela lei e pela ética, em auxílio de seus Estados na disputa por hegemonia, riqueza e poder.
37. Eventos do “mundo real” são, muitas vezes, desdenhados como frutos de “teorias da conspiração”. Todavia, sabe-se que o orçamento, ostensivo, da CIA, Central Intelligence Agency, é de 15 bilhões de dólares e o da National Security Agency, a mais sofisticada e secreta das agências americanas, é de 10 bilhões. Há, pelo menos, dezessete outras agências americanas de inteligência e cada grande Estado tem a sua. Depois dos atentados de 11 de setembro, o Presidente Bush Jr. revogou leis que proibiam aos agentes americanos a contratação de criminosos e o assassinato de líderes políticos, o que revela o tipo de atividade em que essas agências se envolvem.
38. Entremeado com o “mundo ideal”, onde não se acredita haver nem espionagem nem subversão, nem conspiração, onde os grandes Estados são bons e generosos e os pequenos estados colaboram e agradecem, existe o “mundo real” do Império.
39. No “mundo real” existe o Império, com seu centro em Washington, com suas Províncias (que são Estados nacionais) e seus adversários, a Rússia e a China. No “mundo real”, os Estados travam uma luta diária, que é a política internacional, onde ocorrem pressões, retaliações, sanções, agressões, crimes, espionagem, desinformações, manipulação da opinião, articulações, traições, persuasões, subversão, cooptação em ações para as quais o ciberespaço é ampla e poderosa área de atividade e de ação cujo objetivo é contribuir para a apropriação de uma parcela maior do Produto Mundial em benefício de sua sociedade, e de poder para seu Estado, que garanta essa apropriação (e não para alcançar poder em abstrato).
40. O mundo sempre foi organizado por Impérios, nunca foi democrático nem nunca os Estados, em especial as grandes potências de cada época, aceitaram serem todos os Estados iguais e soberanos, nem abdicaram do uso de sua força para defender e promover seus interesses.
41. Tanto o “mundo ideal” quanto o “mundo real” de nossos dias foram criados pelos Estados Unidos da América e não pela “comunidade internacional”.
42. O atual Império é o Império estadunidense que começou a ser construído durante e após a Segunda Guerra Mundial e que permanece em transformação diária na estratégia americana de manter sua hegemonia.
43. Ao final da Segunda Guerra os Estados Unidos exerciam uma hegemonia militar absoluta, cujo símbolo maior era o monopólio nuclear; uma hegemonia política, demonstrada pela capacidade de organizar o sistema político mundial e de reorganizar o sistema político doméstico dos inimigos; uma hegemonia econômica e tecnológica, por terem dobrado o seu Produto Interno Bruto durante a guerra e realizado enorme avanço tecnológico; uma ampla e universal influência ideológica, em competição com a visão comunista, em que o American Way of Life, otimista, alegre e próspero, havia vencido a sombria visão nazista da sociedade.
44. No exercício dessa hegemonia global, os Estados Unidos retomaram o projeto do Presidente Woodrow Wilson de criar uma organização de Estados nacionais, a Liga das Nações, porém com dispositivos que garantissem a perpetuação de sua hegemonia.
45. Os objetivos dos Estados Unidos no pós-guerra eram:
a. obter a adesão da União Soviética, a segunda Potência vencedora, à ONU;
b. obter a adesão dos principais Aliados, Grã-Bretanha e França, ao sistema de Poder consagrado na Carta da ONU;
c. obter a adesão de todos os Estados à Organização das Nações Unidas;
d. promover a desintegração dos impérios coloniais, em especial britânico e francês, através da ONU e de sua IV Comissão, de descolonização;
e. conferir aos Estados Unidos o poder de impedir qualquer ação político-militar da ONU e manter sua independência para agir unilateralmente;
f. manter suas tropas estacionadas na Europa e na Ásia;
g. desarmar permanentemente os seus maiores competidores, a Alemanha e o Japão, através de suas Constituições nacionais;
h. impedir a difusão do conhecimento da tecnologia de fabricação da arma nuclear;
i. criar um sistema financeiro internacional com o dólar como moeda de reserva e de uso geral nas transações internacionais;
j. criar um sistema comercial mundial com base na cláusula de nação mais favorecida, no tratamento nacional, nas tarifas e em sua consolidação;
k. criar um sistema de enquadramento, de monitoramento e de fiscalização das economias nacionais através de um organismo multilateral “isento”;
l. reconstruir as economias europeias para fazer face à URSS e à influência política soviética na Europa Ocidental;
m. garantir o acesso aos meios de comunicação de todos os países para poder participar da construção do imaginário social, político e econômico em suas sociedades e Estados.
46. Seria difícil classificar os Estados Unidos da América como sede de um Império decadente quando se enumeram as importantes vitórias políticas, econômicas, militares e ideológicas que alcançou desde a Segunda Guerra Mundial:
a. a dissolução dos Impérios Britânico e Francês, a partir de 1957;
b. a vitória sobre o desafio cubano a partir de 1960, através da Aliança para o Progresso e da implantação de ditaduras militares “modernizadoras”;
c. a aceitação por todos os países de seu próprio desarmamento nuclear e de conferir aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança o oligopólio nuclear com o TNP, em 1968;
d. a abertura da China às megacorporações multinacionais, a partir de 1979;
e. a retirada das tropas soviéticas da Europa Oriental, em 1985;
f. a desintegração territorial da União Soviética, em 1991;
g. a adesão da Rússia ao capitalismo, através do Programa de Choque do FMI, em 1995;
h. o ingresso da China e da Rússia no FMI, no Banco Mundial e na OMC;
i. a adesão ao capitalismo e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) dos países ex-comunistas da Europa Oriental;
j. a inclusão na OTAN dos países da Europa Oriental e a ampliação de sua capacidade de agir além da zona definida no Tratado;
k. a participação do Vietnã nas negociações da Transpacific Partnership – TPP (2015) e a abertura de sua economia às megaempresas americanas.
* * *
47. Dificilmente o Império estadunidense, cuja dinâmica se encontra no seu complexo industrial-militar; em sua rede mundial de megaempresas; em sua posição nas organizações internacionais; em suas alianças com as classes hegemônicas de suas Províncias; em sua disposição de fazer uso da força, de que o assassinato do General iraniano Soleimani foi um episódio, assistirá, resignada e tranquilamente, sua própria decadência e substituição por um mundo multipolar que emergiria de uma nova solidariedade humana criada pela Pandemia ou por processo histórico. O fim da Pandemia se dará com a descoberta da vacina e a tênue solidariedade se dissolverá e não se deve comparar o que ocorreu com impérios no passado com a situação especial dos Estados Unidos.
48. É neste contexto que a política externa da Argentina e a do Brasil, unidas como desejaram Perón e Vargas, Kirchner e Lula, têm de agir com prudência e firmeza, para alcançar, com base em seu desenvolvimento e na redução de suas vulnerabilidades, a capacidade de exercer sua soberania.
* * *
49. A principal característica do Império estadunidense é que ele se define como anti-imperialista, pacífico, a favor da soberania e da cooperação entre os Estados. Assume, todavia, o direito a uma excepcionalidade que seria necessária, segundo Washington, para exercer a liderança e a “defesa” da comunidade internacional e, para tal, poder agir, quando considerar necessário, até contra as suas próprias normas e princípios.
50. O Império estadunidense trata como Províncias os Estados, que chama de aliados, Províncias que têm diferentes graus de importância.
51. Em um primeiro grupo de Províncias se encontram a Grã-Bretanha e a França, potências nucleares, membros permanentes do Conselho de Segurança e que participam de mecanismos de coordenação política e econômica como o G7. Desse grupo fazem também parte a Alemanha e o Japão, grandes potências industriais e tecnológicas. Esse primeiro grupo se julga merecedor de atenções especiais da Metrópole e ficam “ressentidos” quando o Império toma iniciativas sem consultá-los, porém rápido se conformam e se alinham.
52. Há uma Província que deve ser colocada em uma classe especial, que exerce grande influência sobre a política interna e externa do Império que é o Estado de Israel. O Estado de Israel é um Estado teocrático em que o povo judeu tem tratamento especial e que se considera o único povo eleito por Deus, Jeovah. O povo e os líderes americanos se identificam historicamente, muito antes da criação do Estado de Israel, com o povo judeu, pois teriam os peregrinos sido incumbidos de criar uma Nova Jerusalém, a Cidade na Colina. As seitas neopentecostais americanas têm laços estreitos com Israel.
53. O Estado de Israel considera ser merecedor de tratamento especial por ter sido o povo judeu perseguido durante séculos, vítima de pogroms e da solução final nazista que matou cerca de 6 milhões de judeus no Holocausto. Considera que suas fronteiras “justas” e concedidas por Jeovah são as definidas no Velho Testamento e não as definidas legalmente pelas Nações Unidas, e assim não se retira dos territórios ocupados ilegalmente, em desobediência à decisão do Conselho de Segurança. Israel tem mais de 100 ogivas nucleares, sem que haja qualquer protesto de parte do Império; Israel recebe subsídio anual de 3 bilhões de dólares dos Estados Unidos; conta com o apoio americano nas Nações Unidas e a cobertura de sua inteligência militar; mobiliza uma rede de apoio de organizações israelitas nos mais diversos países e considera anti-semita aqueles que são anti-sionitas.
54. Um segundo grupo é integrado pelos países nórdicos, a Dinamarca, a Holanda, a Suécia, a Noruega, a Finlândia, e talvez aí deva ser incluída a Bélgica. Estes Estados são de origem protestante e de etnia não-latina, tem altos níveis de renda, altos níveis de desenvolvimento humano e em suas políticas externas procuram estimular os países subdesenvolvidos a terem comportamentos “respeitáveis” em temas ambientais e de direitos humanos.
55. Um terceiro grupo integrado por Espanha, Portugal, Itália, Grécia e a Irlanda, que não é latina mas é católica. Carregam o estigma de terem sido “papistas”. Durante a crise de 2008, eram denominados pelo acrônimo PIGS (Portugal, Ireland, Greece and Spain) o que revela o desprezo pouco dissimulado dos países anglo-saxões pelos europeus latinos. Todavia, este grupo recebe atenção especial do Império devido às comunidades que existem de imigrantes e descendentes desses países nos Estados Unidos.
56. Um quarto grupo é formado pelos países da Europa Oriental, ex-comunistas e, em geral, pró-americanos, xenófobos, anti-semitas e com regimes políticos de direita.
57. Em todos os Estados (Províncias) que são membros da OTAN há bases com soldados, armas nucleares e mísseis americanos, que formam um cinturão militar em torno da Rússia.
58. O quinto grupo de Províncias é formado pelos Estados (Províncias) árabes e muçulmanos, que se divide em Províncias na região do Mahgreb e Províncias do Oriente Próximo. Esses Estados detêm as principais reservas de petróleo do mundo e são grandes exportadores para a Europa e os Estados Unidos e grandes compradores de armas de última geração americanas. Ali se encontram ferrenhos inimigos de Israel e ao mesmo tempo, monarquias absolutas, inimigas dos Estados laicos e financiadores de atividades terroristas. Há uma profunda divisão entre Estados muçulmanos de maioria xiita e aqueles de maioria sunita. A Turquia ocupa posição especial neste grupo, candidata permanente a ingresso na União Europeia e importante membro da OTAN.
59. Há um sexto grupo formado pelos Estados latino americanos, ex-colônias, subdesenvolvidos, desarmados, permanentemente queixosos de que os Estados Unidos não lhes dá atenção, não compreendem suas ânsias e não atendem às solicitações de recursos para financiar seu desenvolvimento. Os centro-americanos e caribenhos se distinguem dos sul-americanos pelas suas dimensões e por terem grandes populações de imigrantes nos Estados Unidos. O México, como membro do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), julgava ter conquistado um status especial o que não ocorreu, como o muro revelou.
60. Um sétimo grupo de Províncias, em geral objeto de ainda menor atenção e respeito de parte da Metrópole, é formado pelos Estados africanos.
61. Os Estados da Ásia formam um oitavo grupo (especial) de Províncias que têm tido relativo sucesso em seu desenvolvimento e inserção na economia global. Têm muitos deles vínculos especiais com o Império estadunidense como a Coreia do Sul, as Filipinas e a Indonésia, e com os Estados Unidos têm acordos militares. A crescente influência chinesa, econômica e política, na região os torna objeto de atenção e preocupação para os Estados Unidos mas não os retira da condição de Província. A Austrália e a Nova Zelândia tem uma situação especial neste grupo. Quatorze dos países asiáticos são vizinhos da China e entre eles há três detentores de armas nucleares.
62. A importância de uma Província para o Império varia de acordo com sua proximidade e importância em relação a conflitos, tensões e situações políticas regionais. Esta importância pode crescer muito e mais tarde, modificada a situação política, declinar e desaparecer.
- Samuel Pinheiro Guimarães foi Secretário Geral do Itamaraty (2003-09) e ministro de Assuntos Estratégicos (2009-10)
Edição: Leandro Melito
https://www.alainet.org/pt/articulo/207312
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