O Haiti virou aqui: as Forças Armadas como ‘salvadoras da pátria’
Boa parte da equipe militar que circunda Bolsonaro foi formada ou amadurecida na missão de paz brasileira que atuou por 13 anos no país da América Central
Política é como vertigem; de uma hora para outra se avoluma e pode ganhar realidade. Se tudo começou com a promessa de um “ministério técnico” e de um mandato cercado por “especialistas”, pouco a pouco temos visto o presidente Jair Bolsonaro entupir seu governo de militares.
As Forças Armadas — constituídas pela Marinha do Brasil, pelo Exército Brasileiro e pela Força Aérea — têm como função, segundo seu site oficial: “Assegurar a integridade do território nacional; defender os interesses e os recursos naturais, industriais e tecnológicos brasileiros; proteger os cidadãos e os bens do país; garantir a soberania da nação”. Também é “missão” das instituições militares “garantir a lei e a ordem, preservando o exercício da soberania do Estado e a indissolubilidade da Federação”.
Como se pode notar, dentre as atribuições das Forças Armadas, não está, por exemplo, chefiar o Ministério da Saúde, como é o caso do general Eduardo Pazuello, vice do ex-ministro Nelson Tech, que assumiu o lugar do titular de forma interina — e que, segundo declaração de Jair Bolsonaro, vai ficar muito tempo por lá. No exército, Pazuello comandou o 20° Batalhão Logístico Paraquedista e foi diretor do Depósito Central de Munição, ambos no Rio de Janeiro. Em 2014, foi promovido a general de brigada e, em 2018, a general de divisão. Atualmente, exercia o comando da 12ª Região Militar, em Manaus. Como oficial general, foi coordenador logístico das tropas do Exército Brasileiro empregadas nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. Em 2018, coordenou a Operação Acolhida, força-tarefa que atuou em Roraima, recebendo imigrantes venezuelanos que se refugiaram no Brasil. No entanto, e a despeito de todos esses atributos logísticos e militares, inegáveis, não me parece que Pazuello seja a pessoa indicada para lidar com uma crise na área da saúde desse tamanho e proporção.
Mas a crescente importância dos militares no governo Bolsonaro não se resume a um caso em particular. Tendo como base a Lei de Transparência, a Folha de S.Paulo avalia que 2.500 cargos de confiança na administração pública estão sendo ocupados por militares. Esse total poderia ser até maior se incluirmos nessa conta os familiares; por exemplo, a filha do general Villas Bôas, Adriana Haas Villas Bôas, que desde novembro de 2019 é assessora do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves, e conta com um salário mensal de R$ 10 mil.
Descontado o vice-presidente, 9 dos 22 ministros de Estado são militares. Em fevereiro deste ano, Jair Bolsonaro afirmou que havia montado um governo “todo militarizado”, e não mentiu. Quatro ministros com gabinetes no Palácio do Planalto são militares: Walter Braga Netto (Casa Civil), Jorge Oliveira (Secretaria-Geral), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Além deles, há outros ministros militares, entre os quais Fernando Azevedo e Silva (Defesa), Bento Albuquerque (Minas e Energia) e Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia).
O aproveitamento de quadros militares no governo era defendido por Bolsonaro desde a campanha eleitoral. O próprio presidente, deputado federal por 28 anos, é capitão reformado do Exército. O vice, Hamilton Mourão, é general da reserva. Bolsonaro também tratou de garantir benefícios corporativos à caserna: aumento de soldo e reforma especial da Previdência, por exemplo. Segundo o governo, 73,2 mil militares ativos, inativos, de carreira, temporários, pensionistas, dependentes e anistiados receberam indevidamente o auxílio destinado a trabalhadores informais afetados economicamente pela pandemia do novo coronavírus.
A ASCENSÃO DE NOMES QUE PARTICIPARAM DA MISSÃO NO HAITI PARA DENTRO DAS LIDES DO GOVERNO TEM SIDO VISTA COMO UM SINAL DE VALORIZAÇÃO DE MILITARES COM CARREIRA SÓLIDA E QUE ADQUIRIRAM CAPACIDADE DE GESTÃO NO EXTERIOR
A questão não é meramente quantitativa e tampouco está exclusivamente atrelada ao governo Bolsonaro — o qual, sem dúvida, aumentou exponencialmente a situação. O fenômeno que o historiador José Murilo de Carvalho chamou de “papel tutelar das Forças Armadas” foi criado desde a Guerra do Paraguai (1864-1870), quando, na falta de uma instituição regular e nacional dedicada ao controle das nossas fronteiras, foi formado o Exército brasileiro.
Apesar da vitória final, o embate internacional acabou chamuscando a imagem do Império, que ganhou fama de genocida e praticamente esvaziou seus cofres públicos. Foi também nesse contexto que tomou força o partido republicano, assim como os ativismos abolicionistas que seriam responsáveis, no futuro, pela queda da Monarquia. Só quem lucrou, de fato, foi o exército, que saiu da guerra como instituição constituída, negando-se a assumir a antiga função de “caçador de escravos fugidos”, e com panca de “Salvadores da Nação”. É por isso, também, que o Duque de Caxias, Luís Alves de Lima e Silva, ganhou o apelido de “Pacificador” e virou patrono do exército.
O mesmo tipo de representação se manteria no contexto da Proclamação da República, quando as Forças Armadas entraram como avalistas do golpe civil paulista de 1889, e acabaram dando um golpe dentro do golpe. Diante da demissão do Marechal Deodoro, em 1891, Floriano Peixoto assume como vice e se nega a convocar eleições. Governa sob estado de sítio e, mesmo assim, mantém para o Exército a função de “bengala do sistema”; ou seja, o suposto de que somente eles poderiam realizar a transição do regime — da Monarquia à República.
Desde então, o lugar tutelar das Forças Armadas não foi mais questionado. Para se ter certeza, basta notar que a atribuição de papel político à instituição militar é sancionada em cinco das sete Constituições nacionais elaboradas após a Independência — incluindo-se a Constituição de 1988. Além do mais, somos um país que se mostra avesso a qualquer tipo de ressarcimento. Por exemplo, nunca aprovamos uma política de ressarcimento aos ex-escravizados e ex-escravizadas; na verdade, foram eles os únicos a pagar por suas alforrias, uma vez que ressarciram, com o esforço dos seus trabalhos, os seus proprietários e senhores de escravos.
O mesmo aconteceu com os militares. Enquanto outros países vizinhos fizeram comissões da verdade, julgaram e puniram os militares envolvidos nas ditaduras latino-americanas, o processo no Brasil foi muito mais brando. Até porque a Constituição de 1988 permitiu a autonomia das Forças Armadas para definir assuntos de seu interesse.
O resultado ficou latente no andamento da Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório final foi entregue à então presidente Dilma Rousseff no dia 10 de dezembro de 2014. O documento apontou 377 pessoas como responsáveis direta ou indiretamente pela prática de tortura e assassinato durante os anos da ditadura militar, entre 1964 e 1985. A indicação dos responsáveis não implicou, porém, na “responsabilização jurídica” dos acusados, já que a Comissão da Verdade não tinha poder para puni-los. O relatório fez recomendações ao governo, entre as quais a de que os apontados de cometer crimes contra a humanidade respondessem na Justiça, além de indicar o necessário reconhecimento pelas Forças Armadas de seu papel na violação de direitos humanos no Brasil. No entanto, a responsabilização criminal, que implicaria rever a Lei da Anistia de 1979, não foi unanimidade e a situação permanece intocada até os dias de hoje.
Um episódio ainda pouco estudado na história brasileira, refere-se ao papel das Forças Armadas durante a intervenção no Haiti. A “Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti”, a Minustah, durou 13 anos – de junho de 2004 a agosto de 2017. Chefiada desde o início pelos militares brasileiros, a missão de paz da ONU foi criada com o objetivo de tentar “pacificar” o Haiti. Não é correto dizer que o Haiti estava à beira de uma guerra civil, como se costuma afirmar, mas passava, sim, por uma profunda crise política e social responsável por explosões de violência e pela deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide. A criação da Minustah se deu no marco das relações internacionais legais, enquanto lideranças, intelectuais, jornalistas e políticos haitianos alertavam já naquele contexto que o Haiti necessitava não de forças de paz (pois não havia guerra), mas sim de soluções efetivas para a superação de pobreza que aflige boa parte de sua população (aliás, uma dívida histórica que o mundo tem com o Haiti). Se voltarmos os olhos para as vozes haitianas (que são muitas), percebemos que após 13 anos, as tropas da ONU exerceram muito mais tarefas repressivas, com a Missão alimentando divisões políticas locais ou mesmo as criando. Por outro lado, a onipresença de organizações internacionais não conseguiram contribuir para a luta contra a miséria, com tudo o que isto significa.
A Minustah se autoatribuiu a tarefa de tirar o Haiti do “caos”, mas se transformou, ela própria, numa força de instabilidade. Isso porque longe de apoiar as organizações haitianas, que há muito lutavam pela democracia, competiu com elas e promoveu um conjunto de iniciativas violentas contra supostos grupos armados, ao mesmo tempo em que desacreditava a imprensa haitiana e ignorava as denúncias de advogados e lideranças. A permanência da Minustah no Haiti deveria durar apenas alguns meses, mas o contingente militar brasileiro tomou gosto tanto pelo protagonismo, como pela impunidade, e a Missão foi prolongada diversas vezes – sempre ignorando os cidadãos haitianos, muitos dos quais destacavam o amadorismo brasileiro responsável pelo agravamento da situação do país. Por parte do governo brasileiro, alimentava-se um certo ufanismo nacional ao mesmo tempo em que se promovia esforços diplomáticos que buscavam uma maior inserção política no cenário internacional, tanto em mediação de conflitos como em órgãos mundiais. Ao comandar a Minustah, o Brasil também tentava fortalecer sua campanha no sentido de pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o principal órgão da instituição.
A longa experiência, sempre alheia às críticas, serviu como laboratório de testes, em condições reais, para uma série de táticas e também de equipamentos que foram depois empregados no Brasil. Serviu sobretudo para prever operações de Garantia da Lei e da Ordem e ações de segurança pública. E jamais se responsabilizou pelas brutalidades nos bairros mais pobres de Porto Príncipe, que incluíam ações armadas de violência desmedida e um cotidiano de violência contra as mulheres haitianas.
Vale a pena lembrar que boa parte da equipe militar que circunda Bolsonaro foi formada ou senão amadurecida no cenário do Haiti. Dos 11 brasileiros que chefiaram as tropas, ao longo de 13 anos, 5 têm ou tiveram funções relevantes no atual governo. Augusto Heleno foi o primeiro comandante da Minustah, entre 2004 e 2005; Carlos Alberto dos Santos Cruz atuou de 2007 a 2009; Floriano Peixoto Vieira Neto, de 2009 a 2010; Edson Leal Pujol, de 2013 a 14; Ajax Porto Pinheiro, de 2015 a 2017; Tarcísio Gomes de Freitas, de 2005 a 2006; Fernando Azevedo e Silva, de 2004 a 2005. O deslocamento de tropas brasileiras chegou a números impressionantes: foram 37 mil soldados enviados ao Haiti contra 25 mil na Segunda Guerra. E eram quase todos eles provenientes do Exército; a Marinha atuou, mas em números e capacidades bem menores.
Não é possível sair de uma operação como essa da mesma maneira que se entrou, e arrisco dizer que o papel de “salvadores da pátria”, de qualquer pátria, foi muito praticado nessa operação de paz, com as Forças Armadas, em especial o Exército, saindo muito fortalecidas desse cenário. O certo é que, mais do que uma coincidência, a ascensão de nomes que participaram da missão no Haiti para dentro das lides do governo tem sido vista como um sinal de valorização de militares com carreira sólida e que adquiriram capacidade de gestão e de resolução de conflitos no exterior.
O Haiti não é aqui, certamente. No entanto, ter passado pelo país da América Central chefiando as tropas da Minustah parece ter se tornado um trunfo necessário e suficiente para generais da reserva assumirem uma vaga no governo de Jair Bolsonaro.
P.S.: Agradeço a Heloisa Starling pelas ótimas dicas. Agradeço também a Omar Ribeiro Thomaz, um grande especialista em temas que envolvem o Haiti – ele é, ademais, um grande e generoso amigo.
NOTA DE ESCLARECIMENTO: Uma versão anterior desta coluna trazia a informação de que, antes da chegada da Minustah, o Haiti estava à beira de uma guerra civil, uma leitura incorreta de acordo com especialistas no país. O texto foi atualizado, com essa mudança e uma explicação mais detalhada da atuação da Minustah, às 14h30 de 4 de junho de 2020.
Lilia Schwarcz é professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
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