Um capitão, os generais… e o golpe
Jaime Cesar Coelho
[Alberto Giacometti]
[Alberto Giacometti]
As pesquisas mostram um dado importante, que contradiz opiniões que para mim sempre foram autocentradas e equivocadas. Equívocos, aliás, que nos levaram à grande derrota histórica que sofremos recentemente para a extrema-direita. As pesquisas mostram um bolsonarismo vitorioso na batalha da comunicação, mostram que as crises e ataques contra Bolsonaro foram revertidos em números positivos para ele, o que faz crer que a velocidade e a abrangência das respostas das redes bolsonaristas tem sido efetivas e eficazes. As pesquisas desdizem as afirmações reiteradas dos institutos próximos ao petismo de que o bolsonarismo estava crescentemente isolado e que o antipetismo era residual, que não passava de algo como 10% da população.
Tremendo erro de avaliação. O antipetismo é amplo e tem matizes. Parte dele pode ser revertido e parte não. O que não podemos é aceitar a cômoda ideia de que o antipetismo se confunde com a parte que não será revertida, ou seja, com aquele núcleo de extrema-direita que se organiza em torno do bolsonarismo, mas não só, também dos setores hoje dominantes nas forças armadas e na sociedade civil. Aliás, é bom não subestimar estes setores, pois muitos dos seus membros estão em postos de autoridade no aparato estatal: polícias, judiciário e carreiras típicas de Estado como fiscalização fazendária. Embora minoritário em termos estatísticos, este setor não pode ser confundido com as figuras irracionais e bizarras que muitas vezes os representam. Basta olhar para Moro, para Heleno. Longe de representarem figuras bizarras, são representativos de uma extrema-direita com poder de mando, e, no primeiro caso, com grande apoio popular.
As pesquisas nos dão pistas que a tática do bolsonarismo e da extrema-direita de um modo geral é, além da óbvia missão estratégica de forças auxiliares do imperialismo na destruição completa da esquerda, desacreditar dois poderes que podem impor contrapesos: STF e Congresso. Quando o governo está acuado, sofrendo ataques, eles apontam o dedo para o STF e o Congresso, bem como para o sistema de imprensa corporativo não-alinhado, e os acusam de sabotar o governo. Esta tática está dando certo, porque ambos poderes são anti-povo, elitistas e corruptos em sua essência e prática, ou alguém da esquerda vai dizer o contrário. Ficar para a esquerda a tarefa de defender estes poderes não é uma tarefa fácil. Além destes aspectos, a vitória bolsonarista conta com a proscrição factual, embora não formal, dos meios de comunicação de massa da única força capaz de contrapor uma oposição popular ao governo, o PT. Folha, Estadão, Globo e assemelhados fazem sim um ataque seletivo ao Bolsonaro e clã e ao grupo terraplanista/olavista, mas compactuam com o governo no desmonte do estado e nas políticas neoliberais. Folha, Estadão, Globo e assemelhados trabalharam e trabalham pela destruição da esquerda e não conseguem, juntos, aglutinar o povo em torno do projeto excludente que ela e seus políticos preferenciais, como o príncipe do entreguismo, FHC, defendem.
Para mim a questão militar continua sendo chave. Os militares sem o bolsonarismo teriam que encontrar uma figura com representação popular, já que não parece que eles venham a assumir o governo por uma via clássica de golpe de estado. Seria Moro, mas para isto seria preciso criar condições populares para um impeachment, coisa que no momento não aparece nas pesquisas e qualquer movimento em falso poderia abrir as portas para um avanço da esquerda e tudo poderia cair por terra. A economia não vai bem e Guedes é o homem certo para provocar uma fuga de capitais, aliás, esta é trajetória padrão dos ultraliberais em governos periféricos.
Isto nos coloca diante de um governo que ao contrário do padrão do discurso mercadista, que defende que governos devem produzir ambientes de estabilidade, produz instabilidade constante, seja pela postura beligerante de Bolsonaro, seja pelas políticas pró-cíclicas e seja pelo falastronismo de Guedes. É o paraíso do especulador. Guedes aponta para onde o cambio vai (pra cima), e o mercado chuta pra cima. Tem sido uma constante.
Ao que me parece Bolsonaro não tem compromisso com nada, a não ser com os interesses rasteiros de seu submundo de cupinchas e milicianos, que habitam momentaneamente o palácio do Planalto. Os militares sabem disso.
Chama a atenção, neste momento em que o Brasil aparece desnudo, como duas forças fundamentais do poder no Brasil, a corporação militar e a burguesia interna, aparecem sem projeto, sem perspectiva estratégica de país. As estratégias que carregam são individualistas, subordinadas aos interesses externos e que terão impacto regressivo do ponto de vista da renda e da riqueza, além de colocar o país na vanguarda do atraso em termos de inserção internacional. É uma repetição da lógica da servidão voluntária. São representações de um Brasil pequeno, patrimonialista, rentista e curto-prazista. Tudo isto somado ao total, aviltante e deplorável servilismo aos EUA. Parece um país em fim de ciclo, um país sem nação, com representações falsas de sua própria identidade, aliás, que está em profunda transformação com o ataque ao sincretismo religioso e o avanço do neopentecostalismo, que se converte em componente importantíssimo da formação do consenso em torno da atual coalizão de poder, em função do enraizamento popular que possui.
Estruturalmente hoje somos, desde uma perspectiva econômico setorial e classista: serviços, agronegócio, extrativismo e desigualdade de classes numa escala onde qualquer tipo de republicanismo é pura hipocrisia discursiva.
Nossa burguesia é de rendas, seja a renda que deita sobre a concentração da propriedade no campo e na cidade, seja as rendas obtidas nos empregos mais vantajosos do serviço público, seja na posse de dívidas contra o estado, ou na especulação financeira. Temos uma burguesia comercial, outra agrária, outra extrativista, outra bancária e financeira, e porque não dizer que temos uma pequena burguesia que vive como se aristocracia fosse, composta por altos funcionários do estado e prestadores de serviço especializados, por exemplo médicos.
Esta burguesia está contida no Congresso e contém de certa forma o poder legislativo. Há contradições entre suas frações e também há algumas que se misturam, pois banqueiros também são fazendeiros, participam de grandes projetos de extração mineral, detém patrimônio comercial (participação em ações ou controle direto), para citar o exemplo mais eloquente do sistema de intersecções do capital. É uma burguesia antinacional, entreguista. Ela se irmana na corporação militar que parece enxergar no Brasil um país atrasado por razões raciais, que odeia qualquer projeto de inclusão popular, e ao que tudo indica, desistiu de uma perspectiva de construção nacional autônoma, se é que em algum momento já teve este projeto.
Os militares dão demonstrações de que já embarcaram no que seria a terceira guerra fria, optando em nome de todo o povo brasileiro por uma submissão total ao projeto imperialista estadunidense no cone sul. Ressuscitam velhas antinomias regionais com a Argentina, demonizam a perspectiva autonomista bolivariana e fazem na prática uma aliança com os EUA ao entregarem a base de Alcântara, a Embraer e se submeterem à ressuscitada quarta frota dos EUA no Atlântico Sul. Neste projeto está a entrega total do controle sobre a cadeia de hidrocarbonetos, com destaque para o pré-sal. É preciso estar atento ao que me parece ser o surgimento de um novo ciclo de expansão do complexo-industrial militar, que se estruturou nos anos 1970 e teve sua interrupção a partir da crise fiscal dos anos 1980 e do fim do ciclo ditatorial. Pelas informações que nos chegam pela imprensa, os militares estão muito ativos no fechamento de acordos com os EUA e na expansão de projetos para a produção de equipamentos de guerra.
A atual coalizão de poder encarna o velho sonho dos liberais pré-industrialização, que enxergavam o Brasil como vocacionado a ser uma grande fazenda. São os herdeiros de Eugenio Gudin. Aliás, é interessante observar como filhos, netos e parentes das velhas elites golpistas e oligárquicas estão assumindo postos-chave no comando das agências do Estado. Se parte das oligarquias nunca deixaram de abocanhar os melhores cargos do serviço, outra parte retorna com força ao topo do comando de decisão.
Temos aí uma combinação de castas, como o exército que se converteu numa força corporativa com interesses mesquinhos de elevação de soldos e privilégios, privilegiados por herança, gente que acede aos postos do Estado com maior remuneração e poder (autoridade), e uma burguesia rentista e parasitaria. É uma pátria cuja principal característica de suas elites dominantes é o parasitismo e o rentismo. Não nos esqueçamos: o rentismo á patrimonialismo, no sentido de que há um capitalismo patrimonial predominante. Este rentismo concentra propriedade nas mais diversas formas e compromete ainda mais a histórica desigualdade de riqueza. Concentra patrimônio na urbe e no campo e se converte em força política tentando barrar todas as formas de atenuação da desigualdade por meio da regulação da propriedade e da regulação sobre a distribuição do excedente.
Juntemos a isto um ingrediente novo, que é o poder do Estado “marginal”, ou seja, de grupos que dentro e fora do Estado exercem o poder à margem da lei ou deturpando a autoridade conferida, no caso as milícias. Perigosamente o parasitismo colocou no poder um ser do limbo da política e da vida social, Jair Messias Bolsonaro. É com este representante do “inferno”, das baixas hostes do substrato putrefato da sociedade brasileira, que a “elite”, os parasitas e rentistas, salvaram-se do progressismo light do PT, que num país campeão em desigualdade e violência, representava um perigo imenso aos olhos da mentalidade colonizada e escravocrata dos “bem-nascidos”.
Neste momento, em que Helenos e Jaires, que gorilas e fanfarrões, tentam espalhar o medo, chamar o golpe, convocar a plebe ignorante e interesseira das viúvas dos quarteis contra o Congresso Nacional, é que se aproxima a hora da verdade para as forças armadas. Qual o passo que elas tomarem, será o nosso destino imediato. Pode ser que Bolsonaro seja o cavalo de Tróia para elas tomarem o poder e dele se livrarem logo em seguida.
Pode ser… Mas uma coisa é certa, dificilmente os militares tomarão o poder sem uma aliança com o Congresso, levando adiante um impeachment ou forçando a renúncia do miliciano em chefe. Moro é a carta popular, porém ele é o tipo de figura que não resiste a um bom e duro debate, é uma figura sem carisma, cuja aura está intacta porque tem uma máquina midiática de proteção que pouco explora suas inconsistências. Quem tem carisma é o miliciano e quem tem liderança moral institucional é o exército, como apontam as pesquisas. Não parece que esta aliança possa se desfazer sem que haja alto risco para os interesses corporativos das forças armadas, ou mesmo, sem que isto possa representar um importante risco para o projeto proto-imperialista que está em execução pelo exército de ocupação em que se converteu o exército brasileiro.
Uma saída à francesa por parte da corporação militar teria que contar com uma enorme conciliação com as forças progressistas e ao mesmo tempo levaria estas forças a assumir como ganhos as prebendas já conquistadas pelos militares, a entrega estratégica do Brasil aos EUA e a destruição dos direitos da classe trabalhadora. Seria possivelmente abraçar um projeto semi-parlamentarista, sonho de FHC, mas nem tanto dos militares, que não toleram o Congresso e a ideia de um poder executivo sem mando. A ver, pois há quem na esquerda e no campo progressista se apresse em abraçar este projeto aliancista, que é sobretudo uma forma travestida de rendição a qualquer projeto nacional e popular.
O sonho do Messias é dar uma quartelada e botar para debaixo do tapete seus crimes, e provocar um estado de exceção com forte e ampla perseguição à esquerda. A realidade pode impor freios a esta sanha, mas por enquanto as pesquisas são favoráveis aos gorilas e fanfarrões, é por isto que temos que nos preparar para uma resistência de longa duração, que implica mais que o jus sperniandi. Esta resistência precisa ser pensada com o PT, mas para além do PT e do projeto que fez 40 anos. Para já, é preciso mobilizar forças que exponham claramente, nas ruas, a contrariedade contra o fechamento do regime. Fazer isto com sindicatos em frangalhos, com trabalhadores acuados, com a maior parte do mundo do trabalho dispersa no setor de serviços e em trabalhos eventuais e precários, não será fácil. Uma grande liderança se impõe, como a de Lula, mas a sua exposição é difícil, por razões óbvias. É alguém que está livre sob o “favor” das elites no jogo de contrapesos contra o Miliciano. Lula só saiu da cadeia não foi pela reação popular, mas porque era necessário ao Congresso e ao STF colocar Lula como uma carta na manga contra os excessos de Bolsonaro.
O que fazer? Resistir, mas resistir com mais vigor, pela via civil, sempre, pois não resta a mínima possibilidade de outra forma de resistência. Cercar o bicho bolsonarista pela exposição internacional. Criar mídia, muita mídia alternativa e construir uma frente, uma verdadeira frente, que possa rearticular práticas desde a base, sem o mandonismo de burocracias ossificadas e carcomidas. Sem trazer a juventude, os movimentos sociais, e dar oxigênio para um movimento de massas com uma simbologia nova, ficará difícil. Uma frente com identidade renovada, que traga os guetos para a praça e que não leve a praça para o gueto, é isto que precisaríamos. Os projetos partidários, tal qual se colocam hoje, com sentido de sobrevivência, sobrevivência de suas burocracias, não ajudam. Os projetos partidários que nascem à sombra do PT não conseguem afirmar-se, pois em certa medida repetem algumas falhas do petismo, com a desvantagem de não contarem com a base popular que fez emergir o PT. Contudo, simplesmente desconsiderar os partidos do campo progressista é um equívoco e uma impossibilidade. É preciso reconhecer que o PT é o partido que encontra maior base popular, que isto é fundamental, mas não é suficiente.
Em termos concretos, é preciso que Lula priorize o diálogo com os Gomes, que os setores não isolacionistas do PSOL sejam também protagonistas de um projeto de frente e que haja um projeto programático e não só pragmático. No PSOL se organizam algumas bandeiras contemporâneas da luta anti-capitalista, portadores de um significado fundamental para a construção de uma nova sociabilidade, e movimentos sociais com forte penetração da juventude que tratam da questão da mulher, da diversidade e da multiplicidade expressiva da sexualidade, do racismo e da questão ambiental. Neste projeto o MST e MTST tem muito a ensinar, muito a organizar. Um projeto nacional, anti-imperialista e popular, que coloque de forma firme a perspectiva socialista no horizonte concreto, da práxis. Em termos efetivos, este projeto deveria espalhar círculos populares de convivência por todo o país, em defesa dos direitos dos trabalhadores e de propagação de práticas anti-capitalistas. Verdadeiras oficinas de práticas alternativas, de difusão de ideias, por meio de cursos, de apresentações culturais. Também espaços de convivência, de festa, de convívio. Círculos autogeridos, como bases para um projeto coletivo na prática.
Encerro esta reflexão dizendo que só quebraremos o cerco que nos foi imposto se conseguirmos romper com nossos próprios aprisionamentos no campo da esquerda.
(9 de março de 2020.)
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