Na Venezuela, o voto à beira do abismo
A comunidade internacional alinhada aos Estados Unidos continuará a denunciar a eleição como farsa em caso de vitória de Maduro
por Jornalistas Livres20 Maio, 2018
Por Igor Fuser, na Carta Capital
Só uma vitória do candidato opositor Henri Falcón impedirá que as autoridades dos Estados Unidos, os políticos antichavistas, a mídia internacional e os governos alinhados com Washington na Europa e nas Américas denunciem as eleições deste domingo 20 de maio na Venezuela como uma trapaça.
Nunca, em qualquer eleição venezuelana nacional ou estadual nos últimos 20 anos, verificou-se algum caso de fraude, mas os inimigos da Revolução Bolivariana antecipavam, antes mesmo da abertura das urnas, que o resultado da consulta eleitoral seria falso.
Para justificar a campanha de desestabilização do governo de Nicolás Maduro e contestar qualquer iniciativa desse presidente, qualquer acusação é considerada válida, até mesmo os maiores absurdos, como fez em 2015 o então presidente estadunidense Barack Obama ao classificar aquele país sul-americano como uma “ameaça extraordinária” aos EUA.
Quantas bombas atômicas têm a Venezuela, quantos mísseis intercontinentais, quantos porta-aviões, quantas toneladas (ou litros) de armas químicas? Quantos ataques terroristas ocorreram em território estadunidense com envolvimento das autoridades de Caracas?
Nenhum, mas com base nessa definição, o governo estadunidense iniciou uma escalada de sanções e outras restrições comerciais e financeiras que têm agravado enormemente o sofrimento do povo venezuelano. A expectativa de Washington – até o momento, vã – é a de que a escassez de produtos essenciais, como remédios e alimentos, empurre a população a se sublevar contra os governantes.
A verdade é que se alguém ameaça alguém nessa história, isso ocorre no sentido contrário ao adotado pelos EUA. Ou pode ser entendida de outra forma a afirmação do presidente Donald Trump, que, em agosto do ano passado, cogitou em voz alta a “opção militar” para depor Maduro?
Depois da desastrosa invasão do Iraque, em 2003, é improvável que os EUA despachem tropas para enfrentar diretamente os bolivarianos. A Venezuela conta com um exército profissional, equipado com modernos aparatos russos, e se mostra fortemente motivado a defender seu país e o projeto chavista. Por isso Washington prefere a opção perversa de intensificar o assédio financeiro contra a Venezuela até que, exaustos, os venezuelanos substituam seu governo por meio de um golpe civil ou militar, ou uma combinação das duas vias.
Para o caso de que esse objetivo demore muito a se realizar, existe um Plano B. O Comando Sul das Forças Armadas dos EUA planeja a intervenção externa na Venezuela por uma “força multilateral” a ser formada por contingentes militares da Colômbia, Brasil, Panamá e Guiana, com apoio da Argentina e sob o controle do Pentágono.
Essa intervenção (“humanitária”, é claro) seria antecedida por uma degradação geral das condições de vida na Venezuela e por uma intensificação do conflito político ao ponto confronto armado e, possivelmente, a ocupação de territórios por forças insurgentes.
O que não está claro nessa estratégia é o grau de disposição dos países envolvidos. A Colômbia, por exemplo. Uma vitória do candidato ultradireitista Iván Duque nas eleições (bem próximas) facilitaria as coisas, mas certamente haverá forte resistência na sociedade colombiana a um novo conflito militar, justo agora que o país, aos trancos e sobressaltos, vem tentando pôr fim a uma conflagração interna amarga e prolongada.
Para o Brasil, o Plano B dos falcões de Trump também traz complicações. Estariam os militares brasileiros, em pleno período eleitoral ou na transição para um novo governo, dispostos a embarcar numa aventura desse tipo? Na nossa história militar, um dos traços mais marcantes é baixa propensão a se envolver em conflitos externos. As Forças Armadas brasileiras – sempre muito aguerridas na hora de reprimir, torturar e massacrar opositores políticos – recusaram convites dos EUA para enviar tropas às guerras da Coreia e do Vietnã.
Uma guerra civil na Venezuela é tudo o que o Brasil não precisa. Um conflito desse tipo traria para o lado de cá das nossas fronteiras um fluxo de refugiados mil vezes superior ao dos imigrantes cujo ingresso tem causado sérios problemas. Tráfico de armas e presença de forças beligerantes em território brasileiro são outras consequências indesejáveis fáceis de prever – sem falar dos efeitos tóxicos de um conflito sangrento, polarizado no eixo esquerda/direita, nas beiradas de um Brasil em crescente processo de radicalização política.
Quanto às eleições em si, sua própria realização é uma vitória para o governo de Maduro, diante dos ataques externos e das imensas dificuldades de um país que teve uma redução de quase 50% no seu PIB em apenas três anos.
Maduro, se reeleito, relegitimará o bastão de comando que recebeu das mãos de Hugo Chávez, ganhando fôlego para medidas econômicas de alto impacto. Sem a necessidade de agradar o eleitorado para evitar o naufrágio nas urnas, ele tentará um redesenho da economia doméstica para enfrentar a hiperinflação e o descontrole cambial.
Mas o assédio estadunidense é feroz e a margem de manobra financeira, cada vez mais estreita, sobretudo se Trump cumprir a ameaça de suspender as importações de petróleo venezuelano.
Mesmo sem despertar entusiasmo como seu ilustre antecessor, Maduro ainda é visto por uma parcela significativa dos venezuelanos como uma alternativa preferível a endossar os opositores teleguiados de Washington, que no ano passado levaram o país ao caos com sua irresponsável intentona insurrecional.
O atual presidente, com todos os seus erros (o maior de todos, a hesitação perante o colapso econômico), consegue se apresentar ao eleitorado como um líder seriamente empenhado em resolver a crise e em proteger as conquistas sociais do chavismo.
Ruim com Maduro, pior sem ele – é um cálculo racional para a população beneficiada por um pacote de políticas sociais sem paralelo em qualquer lugar do planeta nestes tempos de retrocesso neoliberal.
Para se ter uma ideia, há apenas duas semanas a Misión Vivienda – uma versão local do Minha Casa, Minha Vida, só que bem melhor – entregou sua moradia número 2 milhões, num país de pouco mais de 30 milhões de habitantes. Apesar da crise.
O chavismo marcha unido para as urnas, enquanto a oposição se encontra dividida e desmoralizada após o fiasco das “guarimbas” (protestos violentos com bloqueio de avenidas e depredação de edifícios e equipamentos públicos) e o sucesso de Maduro em formar uma Assembleia Constituinte com respaldo eleitoral.
A campanha de Falcón apresenta um dilema para o eleitor “esquálido” (tradução livre de “coxinha” em venezuelanês). A abstenção – atendendo aos apelos dos principais partidos opositores e dos EUA – garante um novo mandato para Maduro. Por outro lado, o voto em Falcón, caso ele seja derrotado, só servirá para ajudar o governo a se legitimar nas urnas, com a ampliação do índice de comparecimento eleitoral.
Ainda assim, nota-se nas últimas semanas uma expressiva migração de eleitores anti-chavistas que pretendiam se abter em favor de Falcón, com sua candidatura movida a pragmatismo. Mesmo que no período recente a escassez no país tenha se amainado, os produtos chegam às prateleiras com preços inacessíveis à maioria da população. A dor dos venezuelanos é intensa, e a descrença na capacidade de Maduro em tirar o país do atoleiro se destaca como o maior trunfo da oposição.
É impossível exagerar o que está em jogo nestas eleições. O processo político na Venezuela é o que existe no mundo de mais semelhante ao que se possa chamar de revolução. Essa é a terceira vez que um país latino-americano se aventura pela busca apaixonada da superação do capitalismo e da dependência externa pela via pacífica.
A primeira vez foi no Chile sob o governo socialista do presidente Salvador Allende, tragicamente derrubado por uma aliança entre a burguesia local e o imperialismo estadunidense no golpe militar de 1973.
A segunda tentativa foi o regime sandinista na Nicarágua, iniciado com o levante vitorioso contra a ditadura de Anastasio Somoza em 1979 e encerrado, dez anos depois, com a derrota eleitoral dos sandinistas para a candidata da oposição empresarial, Violeta Chamorro, fortemente apoiada por Washington.
Nesse intervalo, o presidente Ronald Reagan e seus guerreiros frios infernizaram a vida dos nicaraguenses com as incursões dos guerrilheiros direitistas “contras”, financiados e treinados pelos EUA. A guerra civil matou mais de 40 mil habitantes e levou o governo sandinista a dedicar 75% do orçamento público à defesa do país.
Nas eleições de 1989, a opção era explícita. O voto por Daniel Ortega – o líder sandinista que, por suprema ironia, regressou à presidência nicaraguense, pelo voto, e agora sofre nova tentativa de desestabilização a partir de Washington – significaria a continuidade da guerra, da miséria e do derramamento de sangue.Já a vitória da candidata da direita, ao saciar o apetite voraz dos agressores, abriria o caminho para a paz.
Os venezuelanos atualmente são vítimas de uma chantagem similar. Resta saber qual será a sua opção.
* Doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo, professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.A comunidade internacional alinhada aos Estados Unidos continuará a denunciar a eleição como farsa em caso de vitória de Maduro
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